Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 21 de fevereiro de 2010
1681) “Encarnação do Demônio” (1.8.2008)
Fui à pré-estréia carioca deste novo filme de José Mojica Marins, o retorno triunfal de Zé do Caixão, que nos anos 1960 foi o grande personagem do nosso filme B de terror com filmes como À Meia Noite Levarei Sua Alma (1963), Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967), O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1967) e outros. Perseguido pela censura e pela igreja, Zé do Caixão dividia a crítica. Uns o achavam violento, tosco, de mau gosto. Outros (como Glauber Rocha) o consideravam um talento bruto, bem brasileiro, e com aquilo que Borges chamava de “fulgor satânico”.
Mojica fez inúmeros filmes menores na Boca do Lixo paulistana, inclusive filmes pornô. Participou como ator de filmes alheios (como no extraordinário, e esquecido, O Profeta da Fome de Maurice Capovilla) e agora retorna de forma triunfal. O projeto de Encarnação do Demônio existia há mais de quarenta anos, antes mesmo do nascimento de seus atuais produtores, Paulo Sacramento e Fabiano Gullane, como eles lembraram antes da sessão.
O filme de Mojica tem de tudo: câmaras de tortura, terreiros de macumba, chacina policial, rituais violentos que nada devem a Hannibal Lecter ou ao Massacre da Serra Elétrica. Neste sentido, a evolução técnica e a produção cara (1,8 milhão de reais, quando o próprio Mojica confessa que teria feito o filme com 120 mil) deixam o filme mais parecido com os filmes de terror norte-americanos de hoje e menos parecidos com os filmes toscos, desajeitados, mas visceralmente pessoais, que Mojica fazia. Em 1970, não havia ninguém no Brasil cujo cinema parecesse com o dele. Hoje, continua a não haver, mas seu filme corre paralelo ao cinema de terror “gory” que enche hoje as nossas telas.
O lado positivo dessa mudança é que os antigos filmes de Zé do Caixão eram uma espécie de viagem pessoal, delírio particular do cineasta. Trechos deles aparecem em “Encarnação do Demônio”: em preto-e-branco, mostrando um Mojica jovem, magrinho, de barba preta. Era o tempo em que Zé do Caixão sentava à janela, vendo passar a procissão da Sexta-Feira Santa e devorando um blasfemo pedaço de galinha. Seu filme atual, contudo, está visceralmente misturado à violência e ao terror de São Paulo: crianças que cheiram cola, policiais que fuzilam favelados, garotas góticas que freqüentam cemitérios. Os filmes de Mojica nos anos 1960 eram contemporâneos dos porões da tortura na ditadura militar; o filme de hoje tem o seu próprio porão de tortura, no meio de uma favela miserável onde Zé do Caixão vive seu pesadelo de super-homem maligno.
As cenas de violência são para espectadores de estômago forte. Outras cenas insólitas mostram o talento selvagem do diretor, como a cena da mulher enforcada num galho de árvore que abre os olhos, volta à vida, corta a corda com uma faca e cai de pé, para perseguir Zé do Caixão. Uma imagem de pesadelo, mais forte que as cenas de tortura, e típica da imaginação “uncanny” de Mojica.
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