domingo, 14 de dezembro de 2008

0669) Ser e parecer (11.5.2005)





Certa vez o imperador Julio César passou um tempo fora, invadindo países alheios, e ao voltar para Roma soube que sua esposa tinha dado uma festinha em casa, ou convidado um amigo para um jantar a dois, algo assim. Nada demais, mas ele pediu-lhe que não fizesse de novo. 

Ela disse: “Ave, César! Estareis por acaso imaginando que não sou uma esposa honesta?!” E ele, político veterano, explicou: “Minha filha, a mulher de César não precisa apenas ser honesta: ela precisa também parecer honesta”. 

César sabia que a população nunca tem acesso à verdade, e sim às versões. Como não presencia os fatos acontecidos, fica conhecendo apenas o que se conta deles. Portanto, não basta fazer o que é certo, é preciso produzir versões que convençam as pessoas de que não se fez o errado.

Uma vez li uma matéria sobre indústria fonográfica, e soube que na fabricação de discos de vinil era preciso colocar tinta preta na matéria-prima, para que os LPs ficassem pretos. Por que? Porque no começo da indústria os discos eram feitos com matéria-prima preta, inclusive cera de carnaúba. Todo mundo se acostumou. Quando o vinil, que é transparente, foi introduzido, era preciso pintar os discos de preto para que o consumidor continuasse confiando no produto. Mas nada, afora isto, obrigava um LP a ser preto. Para quem se lembra, os disquinhos “compactos” infantis eram coloridos, Zé Ramalho fez um disco verde, Egberto Gismonti fez um disco branco, e assim por diante.

Não basta um produto ser autêntico, ele tem que parecer autêntico. Aqui no Rio, a via expressa chamada de Linha Vermelha é ladeada por uma longa estrutura de vigas metálicas, quando cruza os bairros de Bonsucesso e São Cristóvão. As vigas são cinza, mas quando cruzam a Avenida Brasil, a via mais movimentada do Rio, elas aparecem pintadas de vermelho. Para quê? Para que todo mundo saiba que aquela é a “Linha Vermelha”. É um nome que vem da cor do traçado na planta urbanística original, que levou décadas para sair do papel, e se todo mundo se acostumou a chamar de “Linha Vermelha” ela não pode ser cinza.

Este mecanismo de “não só ser, mas parecer”, é um dos ingredientes que geram, por exemplo, os clichês étnicos. Um baiano louro e de olhos azuis pode ter nascido em Salvador, de família tradicional local, mas “não parece baiano”. Aqui no Rio, todo mundo diz que eu “não pareço nordestino”, porque sou branquelo. Fora do Brasil, “não pareço brasileiro”, pela mesma razão. 

Dias atrás, quando o Treze derrotou o Coritiba pela Copa do Brasil (dá-lhe, Galô!), o “Globo Esporte” mostrou a comemoração da torcida e... um grupo de forró. Que relação tinha o forró com a vitória do Treze? Para mim, muito pouca. Mas jornalistas e público são grupos que se condicionam mutuamente. Se a matéria mostra a Paraíba, tem que ter forró, se não “não parece que foi na Paraíba”. Devia haver uma cadeira nas faculdades de Jornalismo só para estudar durante um semestre este fenômeno.





0668) Grandes pequenas canções (10.5.2005)




Conversando, num grupo de amigos, sobre canções da MPB que marcaram época, falei: 

“Vejam o caso de Asa Branca, por exemplo. Não é uma grande canção, mas virou um símbolo, uma espécie de hino”. 

Foi o que bastou para que alguns se sentissem pessoalmente ofendidos. Como é que é -- “Asa Branca” não é uma grande canção? Senti o bafo das fogueiras da Inquisição, e apressei-me a fazer minha defesa.

Vejam bem: “Asa Branca” é de uma simplicidade musical franciscana. Baseia-se num tema folclórico, que Gonzagão apenas pegou e deu uma ajeitada. Muita gente idosa já me garantiu que conhecia aquela melodia muito antes de Gonzaga nascer. 

São uma meia dúzia de notas que se repetem em meia dúzia de versos, e não mais. Melodia de tal simplicidade que ainda hoje é a música preferida pelos jovens que se iniciam nos mistérios da flauta-doce ou da sanfona. Sem os versos de Humberto Teixeira, seria apenas um temazinho instrumental agradável.

O que fez “Asa Branca” foi uma combinação feliz de melodia acessível a todos, mas com uma ressonância atávica de profundas raízes no passado folclórico, somada a um poema vigoroso, de imagens simples e fortes, uma interpretação carismática, e acima de tudo, o momento histórico em que a música surgiu, e o impacto de novidade que trouxe a um mercado fonográfico estagnado e repetitivo.

Quando digo que não é “uma grande canção”, é porque ela está bem atrás de outras músicas do próprio Gonzaga, do ponto de vista musical e poético. Comparem a música de “Asa Branca” à música de “Que nem jiló” (“Se a gente lembra só por lembrar, o amor que um dia a gente perdeu...”) ou “Algodão” (“Bate a enxada no chão, limpa o pé do algodão...”). 

Estas são grandes canções do ponto de vista da técnica musical, canções que trazem em seu desenvolvimento melódico e harmônico uma proposta nova para a música nordestina.

“Asa Branca” é folclore puro, canção de estrofe única, sem sequer um refrão para intercalar. Nada tenho contra isto. Que conhece minhas composições sabe que este é meu modelo preferido de compor: canção de estrofe única, um bloco melódico que se repete recursivamente, mudando apenas a letra. É um formato clássico, tradicional, mas limitado. 

Se quiserem perceber a contribuição musical de Gonzaga, ouçam a sucessão de idéias melódicas em “Algodão”, vejam como cada fraseado parece emergir do anterior, novas idéias brotando a cada passo, sem se repetir.

Novidade musical, novidade poética, novidade na interpretação ou no arranjo, são elementos que isoladamente fazem boas canções. Quando estão todos presentes ao mesmo tempo, fazem grandes canções – do ponto de vista musical. Se esta grande canção vai se transformar numa obra importante ou não, é outra história. 

“A Volta da Asa Branca”, por exemplo, também é uma canção mais complexa, mais trabalhada e mais criativa do que “Asa Branca”. Com todo respeito a esta pequena canção, que a História transformou em grande Obra de Arte.







0667) A vantagem do fracasso (8.5.2005)



A vantagem do fracasso é que você pode zerar tudo e começar de novo, de preferência fazendo uma coisa completamente diferente. A desvantagem do sucesso é que você não pode mais voltar atrás, tem que continuar fazendo aquilo, porque é o que todo mundo agora espera (ou exige) que você faça. O fracasso liberta. O sucesso escraviza.

Vocês acham que se Gauguin fosse um bancário bem sucedido ele poderia ter largado o escritório e ido para o Taiti, viver da pintura? Vocês acham que se a firma em que Raymond Chandler era executivo não tivesse falido, jogando-o no desemprego, ele teria virado escritor? Machado de Assis dizia que quando a Providência fecha uma porta abre uma janela, e foi pela janela da Arte que indivíduos como estes voltaram a fazer parte do mundo. Cuidado com aquilo que você pede a Deus, porque pode ser que ele atenda. O fato de desejar algo com muita intensidade faz com que às vezes a gente acabe tendo um retorno muito maior do que esperava. Já vi muito cantor de bom senso olhar uma música meio comercialesca, meio debilóide, e dizer: “Não, não vou gravar isso. Esse troço vai tocar pra caramba, vender pra caramba, e eu vou ter que gravar essas coisas pelo resto da vida”.

O sucesso é um avião que decola com você dentro, e nunca mais aterrissa. Poucas pessoas viam o sucesso de forma tão amarga quanto John Lennon e George Harrison, os dois maiores responsáveis pelo fim dos shows ao vivo dos Beatles de 1966 em diante (se fosse pelos eternamente otimistas Ringo e Paul, eles estariam tocando em estádios até hoje). Os Beatles, num gesto aparentemente suicida, interromperam uma carreira onde tudo estava dando certo. Pareciam estar matando a galinha dos ovos de ouro, mas na verdade acabaram com o circo insensato e rendoso que tinha se criado à sua volta, e foi somente depois disto que decolaram de fato como artistas. Há duas carreiras dos Beatles: um grupo pop cheio de talento, entre 1962-1966, e um grupo de músicos que revolucionaram as técnicas de estúdio e o próprio conceito de canção popular, entre 1966-1970. Há raros exemplos que uma quebra tão radical (e tão bem sucedida) com o próprio sucesso.

Por outro lado, o sucesso tardio serve como um bálsamo para quem já tinha se resignado ao fracasso. Os músicos septuagenários do “Buena Vista Social Club” passaram a vida mastigando um chiclete, e de repente ele começou a ficar cheio de açúcar. Em casos assim, qualquer incômodo, qualquer cansaço se esvai. O sujeito pensa: “Ora que diabo, passei 70 anos lutando para ter um décimo disto, e agora que me chega isto tudo vou afracar? Nem que a vaca tussa!” Deveria haver uma lei (refiro-me a uma Lei Cósmica, e não a esses irrelevantes documentos federais) estabelecendo que qualquer sujeito teria direito à fama e a fortuna em seu ramo de atividade, desde que o tivesse praticado por 50 anos ininterruptos sem obter nenhuma vantagem material. Talvez até já exista, e a gente é que não percebeu.

0666) Lendas urbanas campinenses (7.5.2005)



São esses personagens tão lendários que às vezes eu desconfio que eu mesmo os inventei. Estou brincando, claro. Suas histórias povoaram minha infância e a de muitos outros em Campina. Acreditei nas histórias sobre Engole Trave e Seu Alegria como acreditei durante muito tempo na existência de Papai Noel, e continuo acreditando ainda hoje na existência de gente como o Rei Artur ou Zumbi dos Palmares. Lendas são lendas, e repeti-las gera o oxigênio que as mantém vivas na memória de todos.

Algumas lendas são apenas um nome cercado por uma nuvem de pressentimentos e sentidos ocultos. Quando eu era pequeno, por exemplo, havia duas figuras que eram uma ameaça permanente, dois personagens ominosos cuja mera menção fazia as crianças tremerem de terror e entrarem em casa mais cedo para tomar banho e jantar. Havia “João Cabeludo”, que era um bandido, e havia “Barba Rala”, que era um tarado. A gente não sabia a diferença entre uma coisa e outra, ou pelo menos quem não o sabia era eu, na minha inocência de marcelino-pão-e-vinho. Sabíamos apenas que havia um bandido e um tarado à solta na cidade, e ai de quem saísse do raio-de-ação protetor dos olhares da mãe.

Ameaça ainda pior era a do Papa-Figo. Muitas e muitas vezes desci do Babilônia até em casa, depois da sessão das 7, olhando para todos os lados, por saber que estava cruzando o território do Papa-Figo – que não era a Rua Miguel Couto, mas a Noite. Quando cresci e me dediquei a leituras criminológicas, fiquei sabendo que a mesma lenda existia, tintim por tintim, em dezenas de cidades. O Papa-Figo é um velho rico que sofre de lepra, e a quem recomendam comer o fígado cru de uma criança. Há uma lógica monstruosa nisto; o fígado tenro da criança pode ter propriedades regenerativas, etc. E um empregado do Papa-Figo sai com um saco às costas, caçando crianças para alimentar o patrão. O corpo da criança é achado no mato, dias depois, com o fígado extraído e – este é o detalhe mais cruel – algumas notas de dinheiro enfiadas no ferimento, em pagamento pelo órgão arrancado. Já escrevi um curta-metragem (dirigido por Cláudio Barroso) inspirado no relato que Gilberto Freyre faz desta história.

Outra lenda campinense é a do Castelo da Prata (que ainda existe, segundo fui informado). O dono começou a construí-lo mas sonhou que morreria se a construção acabasse; o Castelo ficou incompleto desde então. Nos anos 1960 estava abandonado, invadido por mendigos. Eu tocava nos Sebomatos, a melhor banda de rock da Paraíba (eu, Marcelo, Bolívar e Sérgio), e lá no Castelo fizemos algumas fotos de que ainda hoje tenho cópias. É uma lenda semelhante à da Mansão Winchester, em San Jose (Califórnia), que passou décadas sendo construída. É cheia de excentricidades arquitetônicas, porque a proprietária tinha medo de terminar a casa, que tem 160 aposentos, 47 lareiras, e pode ser admirada em: http://www.winchestermysteryhouse.com/tours.html.

0665) Daniel Ellsberg (6.5.2005)



Vi na TV Segredos do Pentágono, a história de Daniel Ellsberg, o sujeito que abalou a administração Nixon, revelando segredos militares do Pentágono. Em 1970, os EUA estavam mergulhados na guerra do Vietnam, uma situação em alguns aspectos muito parecida com a de hoje no Iraque, só que aquela América era menos obscurantista do que a de hoje. Havia uma resistência muito forte à guerra, mas ao mesmo tempo havia aquele espírito patriótico, bem norte-americano, de que “nosso país está em guerra e devemos todos nos unir em torno do Governo, nos apoiar mutuamente”, etc.

Ellsberg trabalhava na Rand Corporation, uma espécie de instituto de futurologia e estratégia: analistas altamente treinados que examinam para o Governo alternativas de ação política, econômica, militar, etc. Ele percebeu que todo mundo sabia, desde o início, que era impossível ganhar a Guerra do Vietnam. As pesquisas encomendadas pelo Pentágono tinham revelações arrepiantes sobre o uso da guerra como instrumento para ganhar eleições. Ellsberg pressionou políticos, mas ninguém teve coragem de bater de frente com o Presidente Nixon, que era uma espécie de George W. Bush mais antipático e mais inescrupuloso.

Ellsberg passou meses xerocando em segredo 7 mil páginas de relatórios, e as repassou para os principais jornais americanos. Foi descoberto e preso, mas o governo enredou-se cada vez mais em problemas, porque na mesma época estourou o escândalo de Watergate, em que ficou comprovado que o Governo invadia de forma stalinista a privacidade de entidades e indivíduos. Ellsberg foi solto, e Nixon renunciou para não sofrer “impeachment”.

Guardo desta época uma imagem inesquecível, um cartum que saiu no jornal “Opinião”: Ellsberg de pé junto a uma pia, com uma caixa de sabão em pó, lavando a bandeira dos EUA. (Creio que esta imagem estava em meu subconsciente quando, no Carnaval de 1993, fiz com Lenine, para o bloco Suvaco do Cristo, um samba falando do impeachment de Fernando Collor, “Bundalelê”, que dizia: “Valeu lavar o verde e o amarelo; valeu atravessar 92”)

O interessante em tudo isto é o drama de Ellsberg. Ele considerava aquela uma guerra imoral, que não levava em conta as mortes de soldados americanos ou de civis vietnamitas; ele acusou o cinismo e a indiferença dos políticos para com a opinião pública, preocupando-se apenas em serem reeleitos. E ao mesmo tempo, ele hesitou durante anos. Por que? Acho que os americanos têm uma espantosa fé na lei, na legalidade, nos procedimentos juridicamente corretos. Aqui no Brasil, quando Fernando Collor extrapolou todos os limites da corrupção (que já eram largos, amplos, perdiam-se no horizonte), ninguém quis saber da Lei. Juntaram-se contra ele a Direita, a Esquerda, a Imprensa, o Congresso e o Judiciário. Cumpriram um mínimo de formalidades legais, e enxotaram o intruso. Restabeleceu-se o parâmetro anterior. Mas não sei o que Ellsberg pensaria de seus seguidores tupiniquins.