quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

0709) Jackson do Pandeiro: regional e pop (26.6.2005)




Muito mais do que Luiz Gonzaga, João do Vale, Ari Lobo, etc., Jackson do Pandeiro exibia duas faces em seu repertório. 

Havia uma face regional, com temas, situações e personagens típicos do Nordeste, e uma face que podemos chamar de “pop”, voltada para assuntos urbanos ou de um universo além-Nordeste, ou então denotando uma mentalidade, uma “atitude” como se diz hoje, que é mais típica da cultura urbana e cosmopolita.

Basta pegar, de um lado, canções que celebram o coco da praia nordestina (“Coco do Norte”) ou o batuque primitivo do sertão (“Êta Baião”) e compará-las com canções que mostram esse mesmo coco chegando aos ambientes sofisticados do Rio de Janeiro (“Coco Social”) e o clássico desafio bem-humorado do Davi nordestino contra o Golias norte-americano (“Chiclete com Banana”). 

Ou pegar uma canção como “Moxotó”, documentário poético das paisagens e da cultura do vaqueiro do sertão, e comparar com “Falso Toureiro”, uma aventura totalmente ficcional onde o vaqueiro se vê num tipo totalmente inesperado de desafio contra o touro.

A sátira bem-humorada à brabeza da mulher também vem com duas faces. Em “A mulher do Aníbal”, ele brinca com a nordestina braba que pega o pobre do Zé do Angá (ou “Zé do Hangar”, segundo algumas versões) e dá-lhe uma surra de deixar quase morto. 

Um reverso moderno e cosmopolita desta situação é “A mulher que virou homem”, onde a esposa do protagonista “foi pra Hollywood fazer uma operação” e volta dizendo “de hoje em diante meu nome é João”, e que “você me paga tudo que me fez”. A primeira canção parece um folheto de cordel; a segunda é uma história em quadrinhos.

O contraste de valores entre Nordeste e Rio fica bem claro noutra parelha de canções que mostram a “aclimatação” lenta e gradual do paraíba aos costumes cariocas. Em “Xote de Copacabana”, o paraíba se confessa desconcertado e até escandalizado com o que vê na praia: mulheres de biquíni, coisa e tal. 

Em “Falsa Patroa”, ele já está dando uma de esperto e se sai com desculpas tipicamente cariocas: “Doutor Delegado, eu não tive culpa... Foi a sua criada quem me convidou, dizendo que o apartamento era dela...”

Nenhum contraste me parece tão divisor-de-águas, no entanto, quanto o que podemos ver entre um daqueles forrós clássicos (“Forró em Limoeiro”, “Forró em Caruaru”), que descrevem o ambiente típico do forró nordestino, e a obra-prima de Rosil Cavalcanti “Forró na Gafieira”. 

Ali, o paraíba vai a uma gafieira em Jacarepaguá, perde a timidez e dá um show no salão: “Eu peguei logo uma escurinha, e mandei passo de coco que foi um chuá!” O dono da casa pede à orquestra que pare, vai no meio do salão, admirado, pede ao pau-de-arara que faça aquilo de novo, e ele encerra: “Falando assim, parece brincadeira: mas num instante a gafieira virou um forró!” 

Documento histórico da miscigenação cultural entre os coquistas nordestinos e os sambistas cariocas. Um romance que ainda espera para ser escrito.







0708) As idéias de Neil Gaiman (25.6.2005)



Em seu blog pessoal, Neil Gaiman, autor de Coraline e de Deuses Americanos, comentou recentemente a pergunta que se faz aos escritores: “De onde você tira suas idéias?” Ele faz um interessante “balanço” das fórmulas preferidas por quem pratica a literatura fantástica, principalmente nos quadrinhos ou nas histórias infanto-juvenis. A mais famosa delas é “E se?...” (“What if...?”). E se um dia você acordasse e descobrisse que tinha asas? E se sua irmã virasse um rato? E se você descobrisse que seu professor estava planejando matar e comer um dos alunos da turma, mas você não soubesse qual deles? Outra pergunta eficaz é “Se ao menos...” (“If only...”). Se ao menos a vida real pudesse ser como um musical de Hollywood. Se ao menos eu pudesse diminuir até ficar do tamanho de um botão. Se ao menos eu tivesse um fantasma que viesse fazer meu dever-de-casa.

Outra pergunta que dá um bom ponto de partida, segundo Neil Gaiman, é “Fico imaginando...” (“I wonder...”). Fico imaginando o que será que ela faz quando está sozinha em casa. Outra muito boa é “Se continuar assim” (“If this goes on...”). Se continuar assim, daqui a pouco os telefones vão estar conversando uns com os outros e dispensando os intermediários, e também “Não seria interessante...?” (“Wouldn’t it be interesting...?”). Não seria interessante se o mundo tivesse sido um dia governado pelos gatos?

Perguntas assim são as que os escritores de FC se fazem constantemente. O escritor tradicional costuma começar com uma história ou com personagens. O escritor de ficção fantástica começa com uma idéia fora-do-comum; os personagens e a história vêm depois. São duas atitudes literárias completamente diversas: a primazia dos personagens e do estilo, e a primazia da história. Há pessoas capazes de saborear estes dois modos (eu me considero uma delas), mas por uma certa especialização mental que ocorre na juventude há pessoas que parecem totalmente incapazes de enxergar valor num dos dois.

Há leitores de Isaac Asimov que não suportam Machado de Assis: “Toda história do cara é igual, é só triângulo amoroso, adultério...” E vice-versa: “Esse Asimov escreve muito mal, os personagens mudam de nome mas são todos idênticos”. São os pontos extremos de uma escala de visão: um só enxerga o infravermelho, o outro só enxerga o ultravioleta. Se o livro não tiver nenhuma criatividade na freqüência de onda a que o leitor está acostumado, não adianta ser uma obra-prima em outras áreas, porque esse leitor específico nem vai perceber.

No caso de Neil Gaiman, que trabalha com quadrinhos, literatura infanto-juvenil e literatura fantástica, é inevitável que suas idéias iniciais tenham este cunho fantástico, meio absurdo. É o universo de Kafka, Lewis Carroll. Cada uma das idéias acima pode resultar num bom ou mau livro, mas alguns leitores sentem, instintivamente, que “a idéia é legal”, que tem tudo para resultar numa história diferente e que diga algo de novo.

0707) O mistério de Kryptos (24.6.2005)


(Kryptos)

Os especialistas o colocam entre os dez códigos não-decifrados mais misteriosos de nosso tempo, comparável ao “Manuscrito Voynich” (v. artigo em 14.8.2004). Ao contrário deste, contudo, Kryptos tem autor conhecido e vivo: é o escultor americano Jim Sanborn, de Washington, que contou com a ajuda do criptologista Ed Scheidt, na época chefe do Departamento de Criptografia da CIA. “Kryptos” é um conjunto de objetos espalhados pela sede da CIA em Langley (Virginia), dos quais o mais importante é uma escultura em metal com mais de 2 metros de altura, como uma folha de papel dobrada em forma de S, coberta de letras. O conjunto todo contém milhares de caracteres em código com pelo menos quatro partes distintas, e foi instalado no QG da CIA em 1990, ao preço de 250 mil dólares.

A idéia de Sanborn parece ter sido a de plantar, no meio dos maiores especialistas em códigos dos EUA, uma mensagem misteriosa para provocar sua curiosidade e pôr à prova seu talento. O próprio Sanborn confessa ter achado que eles levariam alguns meses para solver o quebra-cabeça; quinze anos se passaram, e apenas três partes foram decifradas (por David Stein, da CIA, em 1998, e depois por Jim Gillogly, em 1999), restando um bloco de 98 caracteres que ninguém sabe o que significam. Eis o trecho não-decifrado de Kryptos: “?OBKR UOXOGHULB SOLIFBBWFLRVQQ PRNGKSSO TWTQSJQSSEKZZ WATJKLUDIA WINFBNYP VTTMZFPKW GDKZXTJCDIG KUHUAUEKCAR”. Eu tenho cá uma vaga noção do que quer dizer, mas não quero estragar o prazer dos colegas.

Criptografia é um negócio meio chato, pra quem não gosta. Pra quem gosta, é mais fascinante do que contar dinheiro. Que o diga Gary Philips, um cara de 27 anos que largou sua companhia de software em Michigan para se dedicar totalmente à decifração do enigma. Diz ele: “Kryptos me trouxe de volta à minha primeira paixão. Senti-me novamente livre para enfrentar um desafio sem ninguém para me dizer faça-assim ou faça-assado”. Pessoas como Sanborn ou Philips são indivíduos que (teoria minha) têm muito desenvolvida a “faculdade letranumérica” do lado esquerdo do cérebro, pessoas que são boas com letras e números, e extraem da manipulação destes signos um prazer quase erótico. Gente como Jorge Luis Borges, Edgar Poe, Raymond Queneau, Guimarães Rosa, Ellery Queen, Julio Verne, Georges Perec e o locutor que vos fala.

Kryptos ganhou enorme publicidade quando foi revelado que Dan Brown, autor do Código da Vinci (livro recheado de criptogramas) reproduziu trechos da escultura na capa da edição americana de seu livro. Quem quiser se aprofundar vá ao saite da criptologista Elonka Dunin, que tem uma fartura de informações e fotos: http://www.elonka.com/kryptos/. E não venham me perguntar para que serve isso. É como o xadrez, as palavras cruzadas, os palíndromos e anagramas, a poesia concreta, os trava-línguas. Serve para fazer cosca num pedaço do cérebro que umas pessoas têm e outras não.

0706) O patriotismo do gueto (23.6.2005)




(A pátria de Asterix)

Alguém famoso já disse que o patriotismo é o derradeiro refúgio de um canalha. A frase é meio forte, porque conheço muita gente patriota e sincera. Mas a verdade é que costuma-se invocar o patriotismo quando se trata de fazer sacrifícios pessoais (tipo pagar impostos ou ir para a guerra) em nome de uma entidade geográfica qualquer. 

Se alguém me gritasse: “O Brasil foi invadido! Tome aqui um fuzil e uma farda!” eu diria: “Meu amigo! Eu não tenho jeito para essas coisas, mas se precisarem de alguém pra compor um hino guerreiro, é comigo mesmo!”.

Existem dois tipos de patriotismo, aos quais eu chamo de “patriotismo Júlio César” e “patriotismo Asterix”. 

O patriotismo à la Júlio César é o patriotismo arrogante, expansionista, conquistador. Amo meu país porque é o maior país do mundo, o mais bonito, o mais livre, o mais rico, o mais forte, o mais cheio de qualidades, e estou disposto a ajudá-lo nessa difícil missão de sair invadindo os países discordantes e libertando-os para que fiquem iguaizinhos a nós.

O patriotismo à la Asterix é o daqueles caras que moram num lugarejo e têm milhares de reclamações e críticas à geografia do lugarejo, à administração pública, à flora e à fauna, aos hábitos sócio-culturais, mas ao primeiro sinal de que um país de fora está querendo anexar o lugarejo, os caras bufam de raiva e vão à guerra armados de ancinhos, enxadas, foices e (para as damas) rolos de amassar pastel e cabos de vassoura. Não se iludem nem um pouco quanto às virtudes e qualidades do lugarejo onde vivem, mas lutarão até a morte para terem o direito de resolverem eles próprios os seus problemas.

Nosso patriotismo brasileiro é contaminado pela retórica vazia e pelos exageros hipócritas dos políticos, mas os poetas têm também sua culpa no cartório. Olavo Bilac, um dos maiores que tivemos, perpetrou aquele famoso poema demagógico (“Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste...”) onde nos convoca para amar a vegetação brasileira. 

Este patriotismo de livro escolar com Hino Nacional e hasteamento da bandeira teve, no entanto, seu lado positivo. Foi capaz de fixar na mentes de gerações sucessivas a importância desta ficção geopolítica chamada “Brasil”, e bem ou mal precisamos dela, não porque corresponda a uma visão muito profunda da realidade, mas porque temos ficções concorrentes batendo à nossa porta, doidas para tomar o lugar da que herdamos de nossos avós.

Pátrias são ficções. São conceitos úteis, desde que não se transformem em símbolos absolutos. 

As pátrias não têm amor maternal por nós. O Brasil não é uma mãe mamífera cuidando de nós, seus filhotinhos travessos. É uma convenção geopolítica onde grupos de indivíduos se alternam no comando do Poder. E não me refiro ao Governo eleito: o Poder é algo mais amplo, mais disseminado e mais inoperável do que o Palácio do Planalto. 

Guardem o patriotismo para o Planeta Terra, colegas. Tudo que for menor que ele é gangue de bairro.





0705) Michael Jackson é inocente (22.6.2005)



Na mesma semana em que Mike Tyson sofria um melancólico e humilhante nocaute em sua mais recente tentativa de retorno ao ringue, Michael Jackson foi absolvido da acusação de pedofilia. Fiquei tão surpreso com este resultado quanto a maioria das pessoas, mas me parece óbvio que Jackson é um cara de 46 anos com o intelecto e a sexualidade de um cara de dez. Não é um desses pedófilos frios e cruéis que se deleitam violando crianças: é uma criança ele próprio, encalhado num pequeno círculo de perversõezinhas de descoberta genital, mescladas com ternura infantil e narcisismo. Como diria Olavo Bilac, Jackson não é bom nem é mau: é triste e humano.

A absolvição, pelo que andei lendo na imprensa, se deu basicamente porque o promotor Thomas Sneddon foi com muita sede ao pote. Muitas das testemunhas da acusação acabaram dando depoimentos a favor de Jackson, às mãos do advogado de defesa Thomas Mesereau. E acima de tudo o garoto apontado como vítima e sua mãe foram vistos pelo júri como pessoas muito pouco confiáveis. A mãe, em especial, parece ter um longo histórico de tentativas de extorquir dinheiro de gente famosa. É uma tática muito comum no show-business e atividades parecidas: as pessoas conseguem acesso ao Famoso, paparicam, adulam, tornam-se íntimas, e daí a pouco aparecem grávidas, ou pegam uma briga e deflagram um processo por maus tratos, ou caem fora e escrevem um best-seller escandaloso revelando detalhes íntimos do Famoso. O mundo está cheio de gente que topa tudo por dinheiro.

Acontece que o promotor Sneddon pôs o carro adiante dos bois, na sua impaciência em condenar o cantor. Dele, disse Michael Walsh no saite “World Socialist”: “Na brutalidade demonstrada por Sneddon é possível ver em microcosmo todo o caráter da elite governante norte-americana: ignorante, irresponsável, rancorosa, perseguindo sem descanso qualquer pessoa que pareça encarnar a oposição ou a contracultura. Por que Jackson estava, de fato, sendo processado? Porque seu estilo de vida é diferente, e até bizarro; porque é visto como gay; e porque é negro”. Ocorreu o mesmo que no caso O. J. Simpson, um caso onde a condenação parecia certa, mas a polícia cometeu tantos absurdos na manipulação das provas materiais (na impaciência de condenar o Negro Famoso) que desmoralizou-se a si própria.

Jackson é um personagem trágico que parece criado numa parceria entre Shakespeare e Andy Warhol. Seu rosto de caveira, coberto por uma pele esticada e amarelecida, lembra o da múmia de Tutancamon, o faraó-menino. Emocionalmente arrasado, cheio de dívidas, isolado do mundo real por numa ilha-da-fantasia auto-imposta, parece rumar para uma decadência irremediável. Uma pena para quem o viu na época de “Beat it” ou “Billy Jean”. Sua absolvição neste processo foi uma simples trégua. Espero estar errado, mas acho que seus inimigos ainda o destruirão, e com munição fornecida por ele próprio.

0704) Destampou a caçarola (21.6.2005)


(o deputado Roberto Jefferson)

Meu vôo para o Rio fez escala em Brasília no dia em que o Deputado Roberto Jefferson prestou depoimento na Comissão de Ética da Câmara. Tivemos quase duas horas de atraso. O piloto avisou que havia mais de 15 aviões à nossa frente na lista de decolagem, e um engraçadinho lá atrás comentou: “É o pessoal do PT abandonando o barco”. Depois, outro engraçadinho comentou que de agora em diante a palavra “corruto” tem que se escrever “corrupto”, porque o PT não pode ficar de fora. E quem está divulgando estas graçolas? Eu, que voto no PT há mais de vinte anos (com ocasionais puladas-da-cerca em benefício do PSDB).

A defesa da honestidade e da ética, que o PT sempre ergueu como bandeira, foram uma pedra no sapato de muitos políticos salafrários. Esse discurso ético, se repetido com a devida insistência, acaba incomodando indivíduos que passam a vida toda mergulhados no toma-lá-dá-cá dos favores por baixo do pano, das comissões de 10%, das concorrências fajutas, das sobras do caixa de campanha, das falcatruas que todo mundo sabe e finge que não vê. Eles não ligam a mínima para honestidade. Só ficam irritados porque percebem que aqueles comunistas metidos a besta acham-se superiores a eles. E, como é sabido, o ideal do desonesto é propagar a noção de que todo mundo é desonesto. Quanto mais esta idéia se espalha, mais ele se sente acobertado e autorizado a ir em frente.

O que tem acontecido em certos setores do poder em Brasília me parece aquelas histórias em que numa turma de amigos tem um que não bebe, não fuma, não joga e não freqüenta a Zona. Na primeira chance que têm, os amigos embebedam o cara e o levam para o Cabaré de Zefa, encorajando-o a todas as patifarias. No dia seguinte, mostram-lhe as fotos: “Tá vendo, camarada? Você não é melhor do que ninguém. Você é igual à gente”.

O PT tem nobres intenções e inevitáveis defeitos; o mais recente deles é ter chegado ao Poder. No Poder, o sujeito percebe mais do que nunca que vive entre feras, e sente uma augustiana “necessidade de também ser fera”. O pessoal do PT traz consigo aquela flama incorruptível de uma esquerda que se criou lendo Gorki e Maiakóvski. Um idealismo humanista, baseado na crença (talvez ingênua) de que os seres humanos são fundamentalmente bons.

Acontece que, em política, ninguém é mais honesto do que os aliados que arranja. Fazer alianças é (para usar uma oportuna e reveladora metáfora do presidente Lula) passar um cheque em branco. Tudo que o aliado fizer, estamos assinando embaixo. E no Brasil ninguém governa se não se aliar com a Direita. Não a Direita nazistóide dos integralistas ou da TFP: mas a Direita anti-ideológica que há séculos se dedica à atividade predatória de enriquecer por todos os meios disponíveis. O Brasil é governado há 500 anos por gente que topa tudo por dinheiro, e que sussurra sem parar no ouvido de cada recém-chegado ao Palácio: “Deixa disso. Você é igual à gente”.

0703) Lugares Sagrados (19.6.2005)


(Gruta de Lourdes)

Ouvimos isto com freqüência: existem lugares sagrados, lugares onde há séculos se praticam rituais, peregrinações ou cultos, e que estes lugares encerram em si um tipo especial de energia psíquica. Estão, por assim, dizer encharcados de emoção humana , dos resíduos emocionais dos milhões de pessoas que por ali passaram – mas não “passaram”, simplesmente como quem passa por uma estação do metro. Vieram até ali com a finalidade de viver ali uma das experiências mais intensas e profundas de suas vidas; e isto deixa marcas. Eu acho tudo isto plausível, quando penso em lugares como a Gruta de Lourdes, como o Juazeiro do Padre Cícero, como Stonehenge, como o Caminho de São Tiago, como a Capela Sistina.

Os que acreditam no sobrenatural postulam a existência de um “campo psíquico” ou coisa parecida onde essa energia fica acumulada, ou pelos menos resíduos dela. Acho meio fácil póstular a existência de coisas cuja existência não podemos provar. Até indícios em contrário, o Sobrenatural e o Espiritual são para mim criações literárias: coisas que inventamos por conta própria porque convém à nossa imaginação e às nossas crenças, e se passamos a acreditar na sua existência é problema nosso.

Eu proponho uma outra maneira de ver a questão. Não existe nenhum “éter” ou “plano espiritual” onde essa energia emocional se acumula. Existe, contudo, um campo material onde a existência dela pode ser facilmente detectada, medida, pesada, manipulada por estatísticas e descrita pelas fórmulas tão ao gosto dos materialistas da Ciência. Esse campo é o da Cultura. Cultura entendida no sentido de pensamentos compartilhados, de idéias coletivamente formadas e usufruídas, de manipulação sensorial (através de palavras, sons, imagens fixas ou em movimento) das idéias e emoções. O verdadeiro “campo psíquico” que dá significação aos Lugares Sagrados não está no mundo do espírito, e sim no mundo das preces, das lendas, das histórias, das fotografias, das estatuetas, dos filmes, dos documentários, dos livros, dos souvenirs, das relíquias, de todos os objetos materiais que nos evocam um lugar de adoração (seja a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, seja a Kaaba de Meca, seja o Santo Sepulcro) e imediatamente despertam em nossa memória uma gigantesca cadeia de associações de idéias, com tudo que nossa Cultura nos injetou sobre aquele assunto, ao longo da toda a vida.

A energia psíquica dos Lugares Sagrados não está acumulada neles, e sim nas imagens deles que circulam aos milhões pelo mundo afora. É a energia emocional despertada num cristão pela simples visão de uma foto da Gruta de Fátima ou da Praça de São Pedro. Quando ele tem a chance de ir pessoalmente a estes lugares, sua emoção se intensifica, e ele pensa que é porque existe “uma energia pairando no ar”. A energia paira, sim, e muito forte: mas paira em toda a estrutura profana que deve sua existência a essa crença no sagrado. Por favor, não me chamem de cínico se eu afirmar que a maior prova da existência do mundo espiritual são os bilhões de dólares que ele movimenta por ano.

0702) A flor de Feynman (18.6.2005)



Um dos clichês mais irritantes que vejo por aí é quando alguém diz que os cientistas são indivíduos frios, objetivos, sem sensibilidade e sem emoções. “Como?! O sr. é químico, e gosta de música clássica? Mas que coisa surpreendente!” Alguém que diga coisas desse tipo perde algumas centenas de pontos em meu conceito. Um dos meus heróis no mundo da ciência é Richard Feynman, que ganhou um Prêmio Nobel de Física, e foi um dos indivíduos mais inteligentes, informais e irreverentes que a ciência americana já produziu. Recomendo com insistência sua autobiografia, Surely you’re joking, Mr. Feynman!, da qual há uma tradução portuguesa, Certamente está a brincar, Sr. Feynman! O título tem tudo a ver com o personagem. Feynman costumava dizer ou fazer coisas que chocavam, escandalizavam ou deixavam perplexas as pessoas; coisas que num primeiro instante pareciam absurdas. E que depois, bem examinadas, mostravam ser verdades límpidas, lógicas, irretorquíveis.

Falei no Prêmio Nobel para não pensarem que Feynman era um maluco-beleza, porque em seu livro ele conta como andava de quatro pelo tapete para descobrir se farejava tão bem quanto um cachorro, ou como, quando estudava em Princeton, passava dias examinando o comportamento das formigas para saber como elas tomavam decisões. Ou como fazia cálculos de cabeça que deixavam espantados os colegas, usando truques simples de substituição; ou como desenvolveu uma técnica própria para descobrir a combinação de um cofre. Feynman morou no Brasil e tocou tamborim numa escola de samba, mas... esta é outra história.

Em outro livro, The Pleasure of Finding Things Out: The Meaning of it All, Feynman se queixa de um amigo seu, artista, que diz: “Vocês cientistas não sabem entender a beleza de uma flor: vocês pegam a flor e separam parte por parte, até ela perder a graça”. Ele diz: “Ora, tudo que outras pessoas vêem numa flor eu também vejo, mas vejo muito mais. Eu posso imaginar as estruturas das células lá dentro, e ver como são bonitas. A flor tem beleza numa escala de centímetros, mas também numa escala muitíssimo menor. O fato de que a flor é capaz de desenvolver cores para atrair insetos também é interessante. Isto quer dizer que os insetos enxergam as cores. Será que eles têm também um senso estético? Como se vê, o conhecimento científico só faz aumentar a beleza e o mistério das coisas, não vejo como possa diminuí-lo”.

Eu me arrisco a dizer a Feynman que ele talvez não tenha percebido que grande parte das pessoas que elogia a beleza não se interessa por ela. Gostam das flores e dos crepúsculos como um enfeite para seu lazer, como algo que está ali com a função de proporcionar-lhes deleite. Grande parte da apreciação estética não tem nada dessa curiosidade desinteressada de Feynman. É apenas uma fruição egoísta de um prazer socialmente encorajado. Um sujeito só acha mesmo que uma flor é bonita no instante em que admitir que a flor é tão importante quanto ele.


terça-feira, 30 de dezembro de 2008

0701) O Raio da Silibrina (17.6.2005)



Me perguntam tanto que resolvi escrever um artigo encerrando esta questão de uma vez por todas. Quando alguém vier me perguntar: “Mas o que diabo quer dizer O Raio da Silibrina?...”, atacho o presente texto e estamos conversados.

Este termo surgiu para mim na infância. Tia Anunciada (que chamávamos Tia Nunum), minha tia mais jovem pelo lado materno, estava passando férias lá em casa. Meus pais foram ao cinema ou a um jantar, e ela juntou os sobrinhos para inventar uma travessura. Preparamos um boneco sentado no sofá da sala: um terno velho de meu pai, recheado de jornais amassados, sapatos, uma máscara de carnaval na cara, um chapéu, um copo na mão. Parecia uma pessoa de verdade. Como remate final, ela pendurou-lhe no pescoço um papel onde escreveu: “O Raio da Silibrina”. Quando meus pais chegaram e acenderam a luz da sala, tiveram um susto, e a gente morreu de rir.

Usei esse nome para batizar um personagem duma peça minha, com canções e tudo: Trupizupe, o Raio da Silibrina. Aí, já fiz uma mistura com o termo “trupizupe”, que é um dos diabos chamados para enfrentar Lampião no folheto de José Pacheco A Chegada de Lampião no Inferno. A música com o mesmo título acabou ficando conhecida, e alguém me disse que a origem do nome “silibrina” era um tipo de farol de carro que existia antigamente, “Sealed Beam”, que significa mais ou menos “brilho selado”, ou “farol blindado”. Quando um carro com este tipo de farol aparecia ao longe, de noite, nas estradas do interior, o raio de luz se via a quilômetros de distância, e os matutos diziam: “Eita, olha só o Rai do Silibim!” E aí ficou. Na década de 1960 houve um grupo de rock paulista, só de mulheres (acho que eram Rita Lee, Lúcia Turnbull, essa turma) que se chamava “As Cilibrinas”, o que levantou a interessante questão da grafia do nome – que continuo a preferir com “S”.

Recentemente minha irmã Clotilde levantou a questão mais uma vez, lembrando a lendária figura da “Sibila de Cuma”, uma daquelas pitonisas gregas que adivinhavam o futuro, e cuja história é contada num livro com o título “Oracula Sybyllina”. Pode ser mera coincidência que isto lembre o som de “O Raio da Silibrina”, mas é de se ficar pensando, devido aos pendores místicos, transcendentais, proféticos e ininteligíveis de ambas as entidades.

Em todo caso, devemos lembrar que no linguajar popular paraibano a expressão “o raio da silibrina” é aparentada a “o cão chupando pena”, “o cão chupando manga”, e semelhantes. Quando Ronaldinho Gaúcho arranca da intermediária, passa um pitu em três zagueiros e encaçapa a bola na gaveta de cima, a torcida brada: “Eita, que o cába hoje tá o raio da silibrina!” -- ou, em mais uma expressão equivalente, “tá virado num traque”.

Quanto a mim, prefiro considerar que se trata de uma operação fonético-numerológica, uma conta de somar com letras em vez de números: “SILIBRINA = sabedoria + livraria + adrenalina”. E estamos conversados.

0700) A prova do crime (16.6.2005)


Num crime recente em Nova York, um Blog na Internet ajudou a resolver um assassinato. Simon Ng era um rapaz de ascendência chinesa que morava num apartamento no bairro de Queens com sua irmã Sharon. Em 12 de maio, o namorado de Sharon ligou para a casa dela, e ela atendeu o telefone dizendo que estava ferida, e que ele pedisse ajuda depressa; não disse quem a tinha atacado. O rapaz chamou a polícia, mas quando esta chegou tanto Sharon quanto Simon estavam mortos, esfaqueados.

A polícia revistou a casa à procura de pistas, e acabou ligando o computador do rapaz (que ficava no quarto, no andar de cima). E encontrou no Blog dele, na Internet, uma última anotação datada das 5 horas da tarde em que o crime foi cometido. Dizia ele: “Ainda há pouco, às 3 horas, tocaram a campainha, e era o chato do Jin Lin, ex-namorado de Sharon, que pediu para ficar esperando por ela. Agora o cara está lá embaixo, fumando e andando de um lado para o outro, e eu não estou gostando nada disso”. Procurado pela polícia, Jin Lin negou que tivesse ido à casa das vítimas. Mas é aquela coisa – bastaram um apertinho e o testemunho da vítima para ele admitir que esperou a moça chegar, brigaram, e ele acabou matando os dois.

Vi a história no jornal e fui lá no Blog do cara (quem quiser conferir, é em: http://www.xanga.com/item.aspx?user=ToTo247&tab=weblogs&uid=261268578). Por ser um caso real, é comovente você ler as últimas palavras que um sujeito de 19 anos escreveu poucos minutos antes de ser morto a facadas. Quando olhei hoje no Blog, havia 255 comentários a este derradeiro “post” do garoto, a maior parte deles com mensagens de “R.I.P.” (Descanse em Paz).

Já falei aqui sobre o que Kurt Vonnegut Jr. chama de “wampeters”, objetos que tornam-se o ponto focal da atenção e das emoções de pessoas que não se conhecem entre si. A Internet pode fabricar essas coisas da noite para o dia, pela multiplicidade e instantaneidade das conexões (em forma de email e de chats). Pode também criar situações imaginárias e ver como as pessoas reagem a elas; fazer uma espécie de laboratório sociológico ao vivo e em tempo real, para avaliar tendências de idéias e de comportamento.

Alguns anos atrás, alguém me mandou uma URL indicando uma notícia num jornal americano sobre um viajante do Tempo que tinha sido preso pela polícia em Nova York. Fui lá, vi as fotos, li a matéria: o sujeito tinha vindo numa máquina do tempo e estava deixando a polícia perplexa com uma série de pequenas predições sobre fatos irrelevantes, que provavam sem sombra de dúvida que ele sabia o que ia acontecer nos dias seguintes a sua prisão. Pulei para umas três homepages diferentes, mandei o endereço para alguns amigos, até que de repente parei – e pensei: “Rapaz, tu tás ficando maluco? Viajante no Tempo?!” Durante meia-hora, o poder da Internet me convenceu. (O fato de eu já ter lido mil livros sobre viagens no Tempo deve ter ajudado um pouco)

0699) Deuses Americanos (15.6.2005)



Recomendo a quem gosta de literatura fantástica o romance de Neil Gaiman Deuses Americanos, lançado recentemente pela Conrad Editora. Gaiman é mais conhecido como roteirista da série de quadrinhos Sandman, mas de dez anos para cá tem publicados vários romances. Coraline, uma história de terror para crianças, é muito bom. Este American Gods também. A premissa do livro é que os antigos deuses e criaturas mitológicas européias se transportaram para a América do Norte durante a colonização, mas estão decadentes e sem poder. Eles andam pelas ruas, transformados em pessoas de carne e osso; têm uma enorme longevidade, mas podem morrer, tanto de morte-morrida quanto de morte-matada. E estão travando uma batalha feroz contra os Novos Deuses: os deuses da Mídia Ambiente, ou seja, da publicidade, do cinema, da TV, etc.

Gaiman é um escritor fluente e ótimo contador de histórias. Uma espécie de Stephen King sem a morbidez doentia que King muitas vezes tem, uma vontade de espremer até o fim o suco de terror e repulsa que uma cena pode fornecer. Gaiman oferece uma boa quantidade de imagens arrepiantes, mas concede apenas uma dúzia de linhas a elas, não mais, e segue em frente – o que me parece literariamente mais eficaz. O livro conta a história de Shadow, um sujeito que ao sair da prisão depois de uma pena leve por assalto vê sua vida familiar destruída e logo depois é contratado como guarda-costas de um sujeito que parece ter poderes sobrenaturais e está sendo perseguido por mafiosos igualmente estranhos.

A humanização dos deuses nórdicos, eslavos, africanos, etc. é um dos aspectos mais interessantes do livro, porque o autor consegue nos dar a idéia de que esses personagens têm poderes imensos e ao mesmo tempo são tão frágeis, complicados e indefesos quanto nós. Eles podem muita coisas que não podemos; mas não podem tudo. Eles também têm que “ir à luta”, têm que “batalhar pelo seu espaço”, etc. O mundo sobrenatural é tão competitivo quanto um escritório ou um mercado financeiro. Gaiman (que é inglês) tem um olho crítico muito arguto para certos aspectos da vida americana: os museus e atrações surrealistas de beira-de-estrada, a cidadezinha pacífica mas cheia de terrores sob a superfície ao estilo Twin Peaks, os golpes e falcatruas dos vigaristas profissionais. Tudo isto é misturado à narrativa sobrenatural com a mesma eficiência de um Tim Powers.

Cultura pop e mitologia milenar são duas galáxias em lenta colisão nos últimos cem anos da Literatura. São dois universos que à primeira vista não têm nada a ver um com o outro, mas que são gerados pelo mesmo impulso humano: o de fantasiar, criar um panteão imaginário de seres excepcionais, que nos servem de espelho, modelo, farol, alerta ou ameaça. O livro de Gaiman deveria interessar a quem gosta de ler sobre mitos. É o mesmo universo de Câmara Cascudo, Joseph Campbell, Mircea Eliade, J. G. Frazer, Umberto Eco (cultura medieval + cultura de massas).









0698) O gangsterismo musical (14.6.2005)



A palavra “gangster” nos evoca, por associação fílmica de idéias, a imagem de um sujeito de sobretudo empunhando uma metralhadora e executando desafetos à luz do dia. “Gang”, no entanto, significa quadrilha, e um gangster é qualquer sujeito que forma uma quadrilha, ou seja, reúne um grupo de pessoas para a prática de atos contra a lei. Em alguns casos, são bandidos que executam rivais à luz do dia (embora com um AR-15 em vez de metralhadora, e T-Shirt em vez de sobretudo). Em outros casos, os gangsters são sujeitos normais como eu e você, não usam armas, são incapazes de fazer mal a uma mosca, são bons maridos e bons pais, excelentes companheiros numa mesa de bar ou restaurante – mas fazem parte de um grupo que pratica atos contra a lei e contra o interesse público.

No mundo da música as opções para se tornar um gangster são muitas e variadas, como em qualquer atividade que produza rios de dinheiro, mordomias, notoriedade, capa de revista, rosto na TV. Não é segredo para ninguém que as multinacionais do disco investiram rios de dinheiro no país, e para cada amazonas investido receberam de volta um oceano-atlântico. Como a fórmula-um das multinacionais é uma disputa ferrenha pela pole-position, pela liderança da corrida, pelo podium no domingo e pelo título no fim do ano, as empresas recorrem a todos os artifícios, legais ou ilegais, para se manterem no topo. Ou, no jargão delas, “otimizar custos e maximizar resultados”.

Todo mundo sabe que no Brasil existe o “jabá”, a propina ou suborno que é paga às emissoras de rádio e aos titulares de programas, para que as músicas A e B sejam executadas e as músicas X e Y não toquem de jeito nenhum. É uma queda-de-braço entre empresas, onde o subornado faz leilão entre os subornadores para ver quem lhe paga melhor, em dinheiro ou favores. Num ambiente onde esta situação predomina, a disputa mais importante não é entre música estrangeira e música nacional, e sim entre música economicamente imposta e música livremente escolhida. Promulgar leis obrigando a tocar música brasileira nas rádios significa apenas que os gangsters, em vez de pagarem para que se toque um cantor americano de seu catálogo, vão pagar para que se toque um cantor brasileiro do mesmo catálogo.

O grande problema disto é que ter uma programa de música numa rádio tornou-se uma atividade muito lucrativa, devido ao jabá, e vai ser difícil convencer essas pessoas a abrirem mão do “depósito em conta”, da “verba de divulgação”, do contracheque por “serviços prestados”, dos convites para congressos com-tudo-pago, das mordomias, dos camarotes por conta da produção, dos presentes de fim de ano, e outros desfrutes de que já ouvi falar mas recuso-me a crer. O grande problemas das leis é que elas só existem para os que concordam em cumpri-las. Os que não concordam passam na frente deles, fazem o que querem, enchem os bolsos de dinheiro, e são quem manda de fato na história da música popular brasileira.

0697) O fim dos EUA (12.6.2005)




Como será que vai acontecer o fim dos Estados Unidos da América? Não digo que seja para breve, e é bem possível que não ocorra no meu tempo de vida, mas acho que vai acontecer com nossos sorridentes irmãos do Norte o mesmo que aconteceu com a União Soviética, a Iugoslávia, a Tchecoslováquia e outros países que, no meu tempo de estudante, eram tão reais (e pareciam tão para-sempre) quanto o Brasil. 

Quebrar os EUA em pedaços não vai ser fácil, e na verdade a metáfora está incorreta, pois não é alguém de fora que vai fazer-lhe isto: é a própria erosão interna que irá fazê-lo esboroar-se como um dente cariado.

Os países não são eternos. Cem anos atrás, quem mandava no mundo era o Império britânico “onde o sol nunca se punha”, ou seja qualquer parte do globo iluminada pelo sol tinha território pertencente aos bisavós do Príncipe Charles. Por isso o nariz dos ingleses ainda se ergue tão alto. 

Hoje, só resta o país-mãe (a própria Inglaterra), e algumas tias velhas que moram na vizinhança: a Escócia, a Irlanda, o País de Gales, etc. E assim passa a glória do mundo.

Países com nome coletivo, nome agregativo, estes me parecem os mais fáceis de desmanchar, porque nunca chegaram a uma síntese final, a uma fusão definitiva. Do ponto de vista químico, diríamos que os EUA não são uma solução, são uma mistura, que se reflete no próprio nome. 

Quando se diz que aqueles são alguns Estados que se uniram, continua a haver algo de provisório nessa união, como se os Estados pudessem se ver desunidos assim que fossem modificadas as condições iniciais de temperatura e pressão.

Philip K. Dick, em O Homem do Castelo Alto imaginou os EUA tendo perdido a II Guerra Mundial, e sendo dividido entre os alemães (que ocuparam a Costa Leste pelo Atlântico) e os japoneses (que ocuparam a Costa Oeste via Pacífico). 

Eu imagino que quando um dia torar-a-viga-do-meio, inviabilizando a possibilidade de um Governo central (digamos: um colapso total e simultâneo da economia e das telecomunicações, coisa mais fácil de ocorrer do que vocês imaginam) os Estados irão se agrupar por critérios de proximidade geográfica e de vínculos históricos e culturais.

Um país ao Nordeste, pegando toda a Nova Inglaterra, região dos lagos até Chicago, englobando New York e Washington. 

Outro a Sudeste, pegando das Carolinas à Flórida, e daí a Oeste com todo o país do “blues” (Mississipi, Louisiana, etc.). 

Tenho pra mim que o Texas será um país à parte, fechado em si mesmo, defendendo-se contra as hordas de mexicanos que começarão a penetrar pelo buraco onde ficam hoje o Novo México e o Arizona. 

E a Costa Leste será o local dos Estados Unidos da Califórnia ou coisa parecida. 

Não é viagem minha, colegas. A ficção científica americana vem trabalhando com cenários assim há décadas. A questão não é adivinhar exatamente como vai ser. É saber que pode acontecer, e que, num certo sentido, já começou.







segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

0696) O rico, o pobre e o sábio (11.6.2005)



O rico gasta o que quer; o pobre gasta o que pode; o sábio gasta o que precisa. 

Quem disse isto foi o Budista Tibetano, entre uma baforada e outra de seu narguilê árabe (e não me perguntem o porquê desta salada étnica: são os mistérios do Oriente). 

Um grande erro que cometemos é julgar que mais dinheiro é sempre uma coisa positiva. Dinheiro só resolve alguns tipos específicos de problemas, e os efeitos colaterais que muitas vezes traz consigo não valem a pena. 

Dinheiro em excesso é como açúcar em excesso, antibiótico em excesso. Tudo demais é veneno, já dizia minha mãe, que entendia dessas coisas melhor do que o Oriente inteiro.

Tem gente que, mal começa a ganhar dinheiro, joga seu patamar de gastos lá pra cima. Não é um patamar 50% maior não, é coisa de duas ou três vezes mais. Ocorre muito no meio artístico, no qual muitos anos de sofrida ralação sem resultado algum parecem de repente ser premiados com um sucesso estrondoso da-noite-para-o-dia. 

O sujeito sente-se enfim recompensado de tantas noites passadas em claro, tantos chás-de-cadeira em salas-de-espera, tanta peregrinações pelas redações de jornal com duas fotos e um relise, tantos malabarismos para fazer no fim do mês o rodízio entre as contas que vão ser pagas e as que vão ser acumuladas.

Quando menos se espera, começa a entrar dinheiro a rodo! O trabalho decola, o cara não sabe mais onde botar tanta grana. Um cara me disse uma vez: “Abri contas em três bancos, velho, porque um banco só não comporta”. 

O cara aluga outro apartamento no mesmo andar, para transferir seu escritório e seus cinco mil livros. Ou compra um carro para a mulher e dois para os filhos, no espaço de três meses. Conheço um que fez uma festa de aniversário e pagou passagem de avião e hospedagem para uns quarenta amigos de infância.

Uns continuam a ganhar dinheiro, outros não; estes regridem para o estágio anterior e mergulham em depressão. Acharam que as vacas gordas tinham vindo para sempre; quando se deram conta, estavam todas no Spa do Brejo. 

E não tem coisa mais sofrida do que ter experimentado o gostinho do dinheiro e depois ficar sem ele. Me lembra a frase de Fellini, referindo-se à época em que A Doce Vida (1960) estourou no mundo inteiro: 

“Pensei que o sucesso tinha finalmente chegado, que dali para a frente minha vida seria outra. Mas nenhum filme meu voltou a dar tanto dinheiro, nenhum chegou nem perto. Eu pensava que aquilo era o começo do meu sucesso, e acabou sendo o ponto mais alto de minha vida”.

O alívio de quem começa a ganhar “um dinheiro legal” é tão grande que muitas vezes não lhe ocorre que aquilo seja passageiro, e que daí a alguns anos ele vai voltar para a boa e velha pindaíba. É o drama de quem toda vida foi proibido de gastar muito, e de repente sentiu-se na obrigação de gastar demais. 

É como dizia o Budista Tibetano: “Não adianta dar um milhão de dólares, a um mendigo: um ano depois, ele vai estar te pedindo dinheiro pro cafezinho”.










0695) Não perdoaremos teu sucesso (10.6.2005)



De vez em quando, ao folhear os jornais (ou melhor: ao clicar através de suas telas) paro para ler alguma coisa sobre o processo de Michael Jackson, acusado de pedofilia. Tenho uma pena danada desse rapaz. Jackson era um daqueles menininhos chatos do Jackson Five, com cabelos de arapuá e vozes de “castrati”, que cantavam coisas adocicadas como “Music and Me” e “Ben”. Esta, curiosamente, é uma canção de amor de um rapaz para um ratinho, e foi composta por Alex North para a trilha sonora do filme Willard de Daniel Mann (1971), em que o dito rapaz, um sujeito meio sociopata, comunica-se mentalmente com ratos e os utiliza para vingar a morte de sua mãe (Elsa Lanchester), eliminando o cara que perseguiu sua família (Ernest Borgnine). É um filme tão impressionante que escrevi por causa dele o poema “Calafrio”, publicado em meu livro Sai do Meio que lá vem o Filósofo. (Foi refilmado em 2003, com Crispin Glover no papel título).

Sempre tive uma simpatia instintiva pelos desajustados, pelos excêntricos, pelos que não se encaixam. E sempre tive um medo mórbido de psicopatas, tarados e serial-killers, por saber que é muito tênue a linha que separa os dois grupos. Willard é um sujeito imaturo, inadaptado e com ódio à humanidade, e o fato de Jackson, então um garoto, cantar a música-tema do filme sempre me pareceu uma premonição do seu futuro. Jackson estourou pra valer nos anos 1980 com dois videoclips arrasa-quarteirão, no tempo em que video-clip era uma novidade estética, e não a burocracia obrigatória de hoje. “Beat It” e “Thriller” mostraram um Michael Jackson que ninguém esquece, compondo, cantando e dançando com uma fúria criativa que o fez quebrar todos os recordes.

Eu acho, no entanto, que nos EUA existe uma organização secreta composta de homens pálidos, gordos, milionários, com frios olhos azuis, que se reúnem às vezes na biblioteca de uma mansão, fumando charutos caríssimos e tomando uísque mais caro ainda, os quais ficam olhando para uma TV, mudando de canal, à procura de um negro que esteja fazendo muito sucesso. Quando o sucesso é grande demais, eles murmuram uns para os outros: “Não perdoaremos”. Daí em diante, é só uma questão de tempo. No primeiro vacilo, o reinado do crioulo cai por terra. O que está acontecendo com Jackson é o mesmo que aconteceu com Mike Tyson: um negro que se ofusca com a própria glória, perde a noção da realidade, e começa a cavar a própria cova. É tudo que os graves senhores de terno precisam para transferi-lo do “Hall of Fame” para a vala comum.

Jackson é um excêntrico, um maluco, sexualmente infantil, emocionalmente retardado, possivelmente um pedófilo. Deve ter cometido, por desajustamento e imaturidade, a maioria dos delitos de que é acusado. É uma das figuras trágicas de nossa época, porque nada nele foi “normal”, nada nele foi comum. Jackson é uma caricatura, uma exceção, uma colagem de distorções e exageros. É a cara do sistema que o produziu.

0694) Ritmo e Poesia (9.6.2005)



A primeira vez em que vi a palavra norte-americana “rap” ser usada para descrever uma canção da MPB foi quando Caetano Veloso lançou “Língua”: “Gosto de sentir minha língua roçar na língua de Luís de Camões...” 

Foi uma música de alto impacto, não só por ser (sob qualquer ótica) uma canção poderosamente poética, mas porque a imprensa nacional pôde registrar com alacridade o desembarque triunfal de mais um modismo americano em solo pátrio. 

Todas as vezes que um brasileiro consegue fazer com um mínimo de competência alguma coisa que os americanos criaram e lançaram, vemos nisto um sinal de maturidade estética e independência cultural. Paciência; há coisas piores.

Coisa pior, por exemplo, é quando os americanos começam a fazer algo que já fazíamos há séculos, e nós por aqui ficamos de queixo caído com a inventividade deles. É o caso do “rap”, sigla que já diz tudo: “Rhythm And Poetry”. Este estilo de cantar consta basicamente em criar uma base rítmica qualquer e fazer fluir por cima dela um discurso verbal que segue a sua cadência, mas com flexibilidade bastante para adiantar, retardar, fazer saltos e síncopes, parar aqui e pular para encaixar mais adiante. 

É uma demonstração de habilidade musical e verbal, porque mesmo que o teor harmônico e melódico seja deste tamanhinho (geralmente é), é a “levada” produzida pelos instrumentos (ou bases eletrônicas, ou palmas-e-estalos-de-dedos) que impõe a moldura rítmica onde as frases têm que se encaixar.

Nossos emboladores de coco fazem isto há pelo menos um século, com os pandeiros ou os ganzás fornecendo a base rítmica, e a Poesia Barroca Ibérica fornecendo os modelos básicos (quadra, décima, verso setissílabo) em cima dos quais eles criam variações. 

Tanto o Coco quanto o Rap podem servir para cantar versos decorados ou para improvisar versos na hora. A principal distinção a se fazer entre os dois é que existe mais música, mais melodia do Coco do que no Rap, assim como existe no Coco mais rigor métrico, pois o Rap em muitos momentos vira uma mera prosa ritmada, sem a presença de “cortes” regulares que correspondam às linhas de uma estrofe.

Generalizações assim são perigosas, porque cada artista traz um pequeno desvio em relação a qualquer regra que um teórica venha a identificar. A própria canção de Caetano citada acima tem um formato muito mais criativo, ritmicamente mais solto, do que a maioria dos Raps brasileiros, que em geral se limitam a um “patatí-tatí-tatá”. 

Há muitas canções com momentos de “Ritmo e Poesia” na MPB, no sentido de que contêm trechos puramente falados mas que não se afastam da base rítmica. Entre elas, “Ouro de Tolo”, de Raul Seixas; “Nem vem que não tem” com Wilson Simonal; “Avohai” de Zé Ramalho, “O Calhambeque”, com Roberto Carlos; “Deixa isso pra lá” e “Zig-Zag” com Jair Rodrigues; “Sá Marica Parteira” e a longa introdução de “Respeita Januário” com Luiz Gonzaga.





0693) O Oceano Mental (8.6.2005)




Há um conto de Greg Egan em que um grupo de astronautas embarca numa missão que deve levá-los além dos limites do Sistema Solar; é a primeira vez que uma tal viagem está se concretizando. Tudo vai bem, eles atravessam a órbita da Lua, seguem rumo a Marte, rumo aos planetas exteriores. 

De repente, coisas inexplicáveis começam a acontecer. Alguns astronautas desmaiam e ficam numa espécie de coma ou estado catatônico. Outros começam a perder a memória, ficam conscientes mas incapazes de pensar, de fixar sua atenção no que quer que seja. Um a um vão baqueando, até que a única alternativa é abortar a missão e regressar à Terra.

A resposta (que surge nas páginas finais do conto) é que essa missão demonstrou uma verdade inesperada: a consciência humana não é alguns bilhões de consciências individuais vivendo lado a lado, mas um único oceano pensante, dentro do qual cada um de nós tem direito a percepção diferenciada, devido aos órgãos dos sentidos, mas deve a maior parte de sua existência mental a esta enorme e invisível camada pensante em que nascemos e passamos a vida mergulhados. 

Mal comparando, é como um arquipélago no mar, onde as ilhas, vistas de longe, dão a impressão de serem porções soltas de terra, boiando na água, mas se olharmos por baixo veremos que ela são apenas os picos de uma cordilheira submersa. 

Ao se afastar da Terra, o ser humano perde esta parte submersa, fica restrito à conscienciazinha individual que bruxuleia em seu minúsculo cérebro. Daí para a extinção é um passo, do mesmo modo com uma brasa retirada da fogueira e colocada à distância logo se apaga.

Das inumeráveis metáforas produzidas pela ficção científica sobre o que é a nossa espécie, no Universo, poucas me parecem tão plausíveis quanto esta. Não tenho a menor prova concreta a respeito, mas intuitivamente pressinto uma verdade-verdadeira por trás deste fantasioso conto publicado numa revistinha mensal. 

Esta história tem pontos de contato com outras teorias, como a Teoria de Gaia, segundo a qual nosso planeta é um organismo vivo e uno, só que de uma espécie muito mais complexa que as espécies que conhecemos (animais e vegetais); também se liga à teoria do Inconsciente Coletivo, de Jung, segundo a qual nossa consciência individual tem por baixo de si imensas camadas ocultas de recordações armazenadas em nosso DNA ou coisa parecida.

A metáfora criada por Greg Egan nos ajuda a aceitar que só somos o que somos e só pensamos o que pensamos porque estamos mergulhados neste oceano mental, neste mar humano e invisível. É pela presença dele que nossa mente é ativada, e que conseguimos fazer sentido das coisas que vemos. 

Somos como um rádio que só reproduz o que capta, e se for levado para um lugar onde não cheguem as ondas das transmissões, ele ficará mudo. Ficção científica, “por suposto”, mas talvez seja esta a minha maneira de acreditar cientificamente na existência da alma.






0692) Mangue não, companheiro (7.6.2005)


Anos atrás eu estava viajando a trabalho pelo interior do Nordeste, e quando almoçava no restaurante do hotel, no meio da tarde, comecei a ver um jogo decisivo entre seleções da Europa, acho que era Holanda contra Alemanha. Tinha outro hóspede na mesa ao lado e começamos a torcer pela Holanda. Eu estava torcendo porque isto era na época em que a seleção holandesa tinha dois craques absolutos, o crioulo Gullitt e o branquelo Van Baasten (acho que o atual técnico do Barcelona, Rijkaard, jogava nessa mesma equipe). Durante o jogo (que a Holanda acabou ganhando) percebi que o cara da mesa ao lado ia se exaltando cada vez mais. E na hora em que a Holanda fez um gol, ele vibrou muito, olhou em redor, e soltou essa pérola: “É pena que não tem nenhum alemão por aqui!”

Neste breve episódio está encapsulado um aspecto interessante do futebol, que compreendo, mas que me é absolutamente estranho. Grande parte das pessoas gosta de futebol meio a contragosto; eles não gostam muito do jogo em si, eles gostam é de tripudiar do adversário. Passam o jogo inteiro sem prestar atenção ao campo: tomam cerveja, fumam, contam piada, consultam o relógio... O jogo em si é-lhes indiferente. A arte futebolística, as jogadas fenomenais, as defesas impossíveis, os gols de placa... tudo isto passa pela sua alma sem deixar rastro. Mas na hora em que seu time marca um gol ou que o juiz encerra um jogo que eles ganharam, correm de imediato para o local mais próximo da torcida adversária, e tome palavrão.

Eu sou o contrário disto. Não, não quero me achar melhor do que ninguém, e penso até que esse pessoal está exercendo uma forma barata de psicoterapia que, dentro dos limites, acaba tendo uma função catártica e terapêutica. Mas eu assisto futebol em busca da grande jogada, da odisséia de auto-superação do atleta e do time, em busca das extraordinárias façanhas. Para mim, o adversário não é um inimigo a ser espezinhado: é um mero coadjuvante, cuja presença ali é necessária para a honra e glória do Meu Time.

Mangue não, companheiro. O torcedor adversário, no momento da derrota, deve ser tratado com compunção e respeito, como o sujeito que acabou de perder um ente querido. Nossas emoções devem ser no sentido da elevação do nosso Clube: sua bandeira, seu escudo, seus gloriosos símbolos. Devemos celebrar nossas vitórias porque elas exprimem a realização do nosso Destino, daquilo que viemos cumprir na Terra. Mangar de quem perdeu é pecado; Jesus fica triste.

Mas se tiver mesmo que mangar, mangue numa boa. Não queremos o fim dos nossos adversários. Que proveito teríamos se eles decretassem falência, dispensassem os plantéis, cerrassem as portas? Sobre quem iríamos tripudiar? Diante de quem desfilaríamos com a bola nos pés, que redes teríamos para estufar e fazer a terra tremer com nosso brado vitorioso? Longa vida aos nossos adversários. A presença da torcida adversária, afinal, é um dos ingredientes mais saborosos das nossas vitórias.

0691) A volta do “Catatau” (5.6.2005)



Já falei aqui no JPb (“O Catatau”, 17.8.2003) sobre este livro de Paulo Leminski, que teve duas edições em 1975 e 1989. A Travessa dos Editores, de Curitiba, lançou em 2004 uma terceira edição crítica e anotada, estabelecida pela Fundação Cultural de Curitiba, sob a supervisão de Décio Pignatari. Capa dura, papel branco, o livro traz até a página 269 o texto do assim-chamado romance, e daí até a 425 um respeitável pacote complementar: iconografia, índice onomástico, análise dos procedimentos neológicos, plano geral da obra, resumo biográfico e fortuna crítica do autor. É o lado bom da cultura acadêmica, coitada, a quem tanto vilipendio nesta coluna. Mas, é como dizia o próprio Leminski à página 26 da 1a. edição: “Comprou um tamanduá, recebe um tamanduísta para explicar-lhe o funcionamento”.

O bom de Leminski é sua salada de erudição e coloquialismo, irreverência hippie e abstração zen, e um pendor trocadilhista daqueles de confundir lacanianos: “Isso é presente que se apresente a um legítimo representante do daqui-pra-frente em nome do tudo-vai-diferente?” (p. 97) O “Catatau” não é um romance, daqui de onde o enxergo. É um monólogo poliglota, um Ur-texto, um plasma verbal primevo, ainda indiferenciado em gêneros, prévio ao Big Bang em que a Literatura se retalhou em rótulos. “Cai fora, Pai dos Burros, há carnaval aí que não previste nem preveniste!” (p. 193)

Um livro cheio de dificuldades e delícias, livro para poucos e felizes leitores, e que tem como pré-requisito o “caba” ser apaixonado pela arte da palavra. Como diz Pignatari no texto da orelha, “obras difíceis e intrigantes, em culturas progressivas e não apenas sucessivas, sempre acabam por atrair mentes perscrutadoras, que põem em causa os critérios vigentes de avaliação”. Ou, mais precisamente: “Muito comum isso de jogar um anel em alto mar e achá-lo dentro de um peixe pescado na véspera!” (p. 169). É um livro para quem já conhece o Leminski letrista, o Leminski poeta de Caprichos & Relaxos e outros livros, e que pode se imiscuir entre as linhas do Catatau sabendo que aquela amazônia toda foi plantada por um cara só. “De que vale fazer as coisas bem se ninguém está olhando?” (p. 39)

Leminski morreu aos 44 anos em 1989. Bebia pra caramba, fumava maconha, tocava violão, era um tumulto ambulante e divertido, embora carregasse encravado na vida um nódulo de tragédia. Sua biografia, escrita por Ademir Assunção, se intitula “O bandido que sabia latim”. Foi judoca, redator de TV, roqueiro, tradutor, concretista, publicitário. “Outra vida, que esta não está dando para o gasto!” (p. 82) A Travessa dos Editores fica à Rua Des. Hugo Simas, 107, Bom Retiro, Curitiba-PR, 80520-250, fone (41) 338-9994, websaite em: http://www.travessadoseditores.com.br/. Não sei o preço do livro, mas seja quanto for, tá barato. “Pergunta tão rica precisava ficar por aí mendigando respostas?” (p. 127)

0690) Ufologia e FC (4.6.2005)



Como leitor e escritor de ficção científica, muitas vezes me vejo diante de perguntas bem intencionadas mas que demonstram uma confusão muito freqüente na cabeça das pessoas. Chega alguém e me diz: “Por que você acredita em discos voadores?” Muita gente confunde a ficção científica com a Ufologia, o estudo dos objetos voadores não identificados. Existe um certo parentesco, concordo; mas são duas coisas tão diferentes quanto escrever romances policiais e pertencer à Polícia Civil.

A ficção científica é a literatura que explora as situações produzidas por inovações científicas e tecnológicas. Aborda uma ilimitada variedade de temas e situações, dentre as quais a existência de civilizações alienígenas que espionam a terra é apenas uma percentagem mínima. Não custa lembrar que a FC é uma Literatura, um tipo de narrativa essencialmente literário. Foi a literatura, e não o cinema ou a TV, quem criou e desenvolveu todos estes temas. O fato do cinema ser hoje o rosto mais visível da FC é mais uma dessas ironias da História. A literatura de FC (infelizmente pouco traduzida no Brasil) é incomparavelmente mais rica, mais profunda e mais variada do que esse samba-de-uma-nota-só que são os seriados tipo “Guerra nas Estrelas”, “Jornada nas Estrelas” etc.

A Ufologia, por outro lado, não é literatura. Ela se propõe ser uma ciência, ou pelo menos uma atividade de pesquisa e análise de fenômenos que tem a ver com a ciência. Na verdade, a Ufologia de hoje já se divide em duas vertentes: a Ufologia Científica, que tem muito a ver com a astronomia, a astronáutica e o jornalismo investigativo, e a Ufologia Mística, que é uma espécie de religião informal com extraterrestres no lugar de anjos e de demônios.

Curiosamente, nenhum dos dois grupos (Ufologia e FC) gosta de ser confundido com o outro. Os ufólogos afirmam estar trabalhando com assuntos sérios, reais, fatos importantes para o destino da Humanidade, e não querem ser confundidos com o pessoal da FC, que está apenas inventando histórias fictícias sobre situações imaginárias. Já o pessoal da FC considera que está fazendo literatura, praticando uma forma de arte, sem outro objetivo senão o objetivo artístico, e que deve ser julgada artisticamente. Para estas pessoas, um romance sobre discos voadores é um objeto sério e real, mesmo que um disco voador não seja.

As pessoas que escrevem sobre alienígenas em geral não estão preocupadas em saber se eles existem ou não: querem apenas explorar as possibilidades narrativas que essa hipótese oferece. Quem escreve livros sobre vampiros, fantasmas, sereias, saci-pererê, centauros e outras criaturas semelhantes também não acredita em sua existência no mundo real, mas precisa de sua existência no mundo da narrativa. A diferença entre a FC e a Ufologia é que a FC cria histórias imaginárias sobre seres cuja existência é irrelevante, e a Ufologia busca provar ou desmentir, de forma factual, a existência desses seres.

0689) O evangelho segundo Lucas (3.6.2005)



Se eu fizesse uma lista dos melhores diretores de cinema de ficção científica, George Lucas só iria aparecer lá pelo 20o. lugar, e mesmo assim só por critério técnico. Não gosto dos seus filmes. São mecânicos, vazios, sem dramaticidade, especialmente estes dois últimos A Ameaça Fantasma e A Revolta dos Clones (ainda não vi este que saiu agora). Roteiros banais dirigidos sem emoção, bons atores interpretando mal, diálogos ridículos, um clichê atrás do outro. Na série de “Star Wars” salvam-se os dois primeiros filmes; o resto, se passar no liquidificador e coar não dá um curta.

O número de maio da revista Wired traz um matéria sobre Lucas que dá o que pensar. Ele confessa que está de saco cheio de super-espetáculos com efeitos especiais, e diz que agora quer dirigir e produzir os filmes que sonhava fazer quando era um estudante de cinema na Califórnia. Filmes experimentais, vanguardistas, cujo destino é passar em salas especiais para pequenos públicos (“pequenos públicos” para Lucas deve ser coisa de 400, 500 mil pessoas). Lucas foi um estudante de cinema como tantos outros, que se deslumbrava com os truques e as inovações técnicas de Norman MacLaren, e com as colagens de imagem e som de Stan Brackhage. Para quem se formou nessa escola, o cinema era acima de tudo um conjunto de equipamentos (câmera, iluminação, laboratório, moviola) com os quais era possível fazer combinações de imagens e sons que tendiam, idealmente, a se aproximar da pintura abstrata. Uma espécie de ultracinema.

Não admira que tenha sido Lucas o cara que de certa forma inventou o cinema digital. A lista das inovações técnicas que ele patrocinou não cabe nesta coluna (e a descrição delas não caberia neste jornal inteiro). Isso, no entanto, acabou esvaziando seus filmes de conteúdo humano, um conteúdo que ele mostrou de forma tão promissora em Loucuras de Verão (American Graffitti), que continua a ser até hoje um estranho-no-ninho dentro de sua filmografia. Talvez não seja: pelo que sabemos é o relato do que foi sua juventude pré-cinema: carros, garotas, sorvetes, rock-and-roll, molecagens inconseqüentes.

A matéria da Wired diz, com bom-humor, que Lucas começou no cinema como Luke Skywalker, cheio de ideais e de juventude, e hoje tornou-se Darth Vader, o poderoso chefão de um império, o guerreiro do Bem que se vendeu ao poder econômico. É uma ironia apropriada, mas ao mesmo tempo é algo meio injusto com um cara que revolucionou o cinema. Queiramos ou não, técnica é uma coisa fundamental, e o que Lucas e seu grupo fizeram é comparável às invenções do cinema sonoro e do cinema colorido. Para conquistar isto, vale a pena o cara sacrificar uma carreira de bom cineasta. Não faz falta! De bons cineastas o Brasil está cheio, mas não é todo dia que um sujeito cria um império tecnológico e possibilita se fazer cinema do jeito que um pincel faz uma pintura a óleo.

0688) Uma pintura de graça (2.6.2005)


(O quadro de Steve Keene)

Tem coisas que a Internet não cria, mas encoraja, pelo seu poder de minimizar as relações Espaço e Tempo. Uma bobagenzinha torna-se um fato social relevante: é tudo rápido, não se arrasta por semanas e meses. Tem um cara chamado Steve Lodefink que está oferecendo em seu saite (http://www.finkbuilt.com/blog/?p=30) um quadro do pintor Steve Keene, de graça, a quem der a melhor justificativa para ficar com ele. Basta isto: “Eu acho que mereço ganhar esse quadro de graça porque...” – e aí cada um dá a melhor razão que lhe vier à cabeça. Lodefink ainda se oferece para remeter o quadro de graça pelo correio – infelizmente, só dentro dos EUA, embora ele garanta a concorrentes estrangeiros um abatimento de 10 dólares no frete.

O quadro não é de se jogar fora, e o dono o conseguiu por apenas três dólares. Pelo que vi no saite, Steve Keene é um desses artistas cuja proposta é pintar uma quantidade absurdamente grande de quadros, cada um levando apenas poucos minutos. Uma espécie de repentista da pintura a óleo. Isso lhe possibilita botar muitos quadros em circulação. Barateia o preço. E dá origem a concursos como este.

Tem gente que manda qualquer tipo de motivo. “Eu pedi primeiro”, diz o primeiro cara que escreveu. Outro diz: “Meus pais me espancavam, eu tive que fugir de casa, e colei uma pele de animal sobre minha pele para poder trabalhar num circo”. Outros descrevem a horrível (e certamente fictícia) decoração atual de seus apartamentos. Outro diz que vai vender o quadro e gastar o dinheiro com garotas de programa. Outro diz que a pintura lhe lembra a bela silhueta industrial de Detroit, onde passou a infância.

Enfim: são até agora, quando escrevo estas linhas, 229 respostas, e não me interessa quem vai ganhar. O interessante é que a instantaneidade proporcionada pela Internet faz surgir, como que do nada, uma pequena comunidade de troca de informações, confissões, piadas, provocações, etc., tudo em função de uma oferta casual de um objeto cuja existência era totalmente desconhecida para todas estas pessoas até instantes atrás.

O quadro de Steve Keene é um “wampeter”, um objeto, segundo Kurt Vonnegut, em volta do qual forma-se uma comunidade de corações e mentes que se relacionam através dele e em função dele. A Internet proporciona velocidade e visibilidade de comunicação, e isto passa à frente de critérios como “importância” “significado”, “valor”, etc. Tudo isto vem depois, gerado pela própria mecânica da troca de informações. A Internet é uma usina permanente de wampeters, de banalidades que num piscar de olhos se transformam num objeto relevante. É este o espírito dos blogs, dos fotologs, das homepages pessoais, dos saites, das comunidades Orkut tipo “Eu adoro sorvete de graviola” ou “Eu vi o jacaré do Açude Velho”. O lado bom disto é que nunca foi tão fácil tornar visível algo que você, caro leitor, ache realmente importante. Acha que tudo que tem aí é bobagem? Então vá à luta.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

0687) Wampeters, foma e granfalloons (1.6.2005)

(Kurt Vonnegut Jr.)

O escritor Kurt Vonnegut Jr. tem um livro intitulado Wampeters, foma and granfalloons. É uma coletânea de ensaios, artigos de jornal, conferências, etc. As palavras do título foram tiradas do seu romance Cat´s Cradle. Elas mostram como nossa língua (e aqui se incluem a língua inglesa e a língua portuguesa) não é de jeito nenhum um sistema completo. Existem idéias para as quais não temos palavras, ou melhor, ainda não temos uma palavra específica.

O que é um “wampeter”? Não, amigo, não tem nada a ver com Vampeta, o bravo meio-campista da Seleção, que passou por tantos clubes e hoje joga no Brasiliense. Um “wampeter”, segundo Vonnegut, é um objeto em volta do qual giram as vidas de pessoas que não têm nada em comum além deste fato. Ele dá como exemplo o Santo Graal, um objeto mítico que tem sido procurado, estudado e discutido por pessoas de todos os países e de todas as épocas. Outros exemplos de wampeters poderiam ser, talvez, o monstro do Lago Ness e a “Pedra do Reino” de Belmonte. O grupo de pessoas cujas almas giram em torno de um wampeter é chamado de “karass”, e “assim como não existe uma roda sem um eixo, não existe um karass sem um wampeter".

“Foma” (e aqui eu fico em dúvida se a palavra é masculina ou feminina) são mentiras inofensivas destinadas a confortar os espíritos simplórios. Como exemplo de foma, Vonnegut cita frases do tipo “a prosperidade está ali na esquina”. Nossas coleções de provérbios e frases-feitas estão repletas de fomas: “Deus ajuda a quem trabalha”, “Antigamente era muito pior”, etc. Já um “granfalloon” é, segundo Vonnegut, um agrupamento pomposo e sem sentido de pessoas, uma associação irrelevante que serve apenas para dar um senso de importância àqueles que participam dela. Muitos dos nossos clubes sociais e associações culturais e políticas, sem dúvida, se enquadram nesta categoria.

Palavras assim podem até dar trabalho a um tradutor. (Eu as traduziria com “um vampeta”, “um(a) foma” e “um granfalão”) Mas elas são necessárias à língua, porque exprimem conceitos nítidos que antes tínhamos que referir por aproximação. É como “ciberespaço”, criada por William Gibson para definir o espaço virtual por onde passeia a mente conectada a uma rede de computadores. É curioso que o maior criador de palavras novas em nossa literatura, Guimarães Rosa, não tenha conseguido transportar nenhuma delas para nossa linguagem cotidiana. Não consigo me lembrar de nenhuma palavra rosiana que tenha passado a fazer parte do vocabulário, se não das pessoas da rua, pelo menos da comunidade literária. Usa-se “nonada”, mas esta, pelo que sei, era uma palavra já existente que ele trouxe de volta à circulação. Parece até que as pessoas têm pudor de usar criações tão personalizadas quanto as de Rosa. A maior homenagem que se poderia fazer a ele seria incorporar ao dicionário os milhares de pequenas invenções que ele nos deixou.