Este filme multi-premiado e muito debatido tem uma porção
de qualidades que bastam para justificar esse trelelê todo. Direção (Justine
Triet), fotografia, elenco, tudo muito competente, e para mim a prova disto é
que comecei a ver o filme às 3 da manhã e só fui dormir quando acabou. Se um
filme me prende desta forma, alguma qualidade ele tem. Muitos clássicos e muitos
blockbusters já me mandaram para o travesseiro após 15 minutos de teste.
Sandra (Sandra Hüller) e Samuel (Samuel Theis) são um
casal de escritores que mora nas montanhas, no interior da França, perto de
Grenoble. Ela é acusada de assassinar o marido, que
caiu-ou-se-jogou-ou-foi-jogado de um terceiro andar, no chalé isolado em que
vivem com o filho, um garoto de 11 que ficou cego após um acidente.
Segue-se uma longa batalha de tribunal, um promotor (Antoine
Reinartz) altamente disposto a conseguir uma condenação, uma porção de provas
circunstanciais que apontam todas para a culpa de Sandra, e o esforço do seu
advogado (que é super na-dele, mas salta aos olhos que é perdidamente
apaixonado pela cliente) para tirá-la do buraco.
(Swann Arlaud, o advogado, e Sandra Hüller, a acusada)
O filho do casal, Daniel (Milo Machado-Graner) é o
vértice dessa história toda, e o terror calmo e lúcido do garoto diante dessa
ominosa possibilidade (“minha mãe assassinou meu pai”) ajuda a manter toda a
narrativa equilibrada sobre esse fio-de-aranha de indecisão. Assassinou? Não assassinou?
Essa é a grande questão do filme (há outras, menores, importantes), mas vê-se
que desde o princípio (ao que tudo indica) os roteiristas (a própria diretora
Triet, com Arthur Harari) decidiram não “bater o martelo”. Não tem resposta
final. Eles deixam a interpretação a cargo do público.
Eu tenho um gosto especial por filmes que não dão
resposta final, não solucionam o mistério, não carimbam um desfecho dizendo
“foi assim, não foi assado”. Por que? Talvez porque quando isso acontece o
filme nunca se fecha em nossa mente, a gente leva o filme para casa, dorme com
ele, acorda pensando nele... Aos poucos ele vai cedendo lugar a novos
acontecimentos, mas sempre que alguma coisa faz barulho aquela luzinha na
memória se acende.
Uma luzinha que se acendeu na minha memória foi Dois São Culpados (“La Glaive et la
Balance”, André Cayatte, 1962). Este é um dos mais curiosos filmes de tribunal
já feitos. Há um sequestro e assassinato cruel de um garoto. Os dois
sequestradores, mascarados, são perseguidos pela polícia e se escondem num
farol. A polícia cerca o local, e prende três rapazes que encontra lá dentro
(interpretados por Anthony Perkins, Renato Salvatori e Jean-Claude Brialy).
Cada um dos três diz mais ou menos a mesma coisa: “Eu estava
aqui no farol, passeando, e de repente apareceram esses dois caras, fugindo de
alguém”. Nenhum tem álbi. Todos precisam de grana. O roteiro consegue encaixar
bem os detalhes, e cria um ótimo suspense com essa situação inusitada: dois são
culpados, um é inocente. Mas qual?
A obra de André Cayatte tem uma porção de filmes de
tribunal, e merece uma atenção sob este aspecto: a dificuldade de se saber a
verdade quando tudo que temos são testemunhos, impressões pessoais e
depoimentos de segunda mão. Como decidir sobre a vida e a morte de uma pessoa,
com base no que outras pessoas dizem sobre ela?
Cayatte dirigiu um díptico que nunca assisti, mas parece
interessante: Jean-Marc ou La Vie
Conjugale (1964) e Françoise ou La
Vie Conjugale (1964). Os dois filmes contam a história de um casal sob o
ponto de vista do marido (Jacques Charrier) e da esposa (Marie-José Nat).
É sempre isto: a versão de cada um, a narrativa de cada
um, a interpretação de cada um. O sistema judiciário ergue as mãos para o céu
quando lhe trazem impressões digitais, imagens de câmeras de segurança, mancha
de pólvora ou de sangue na mão do suspeito. Sinais mais ou menos inequívocos de
que Fulano é culpado. Mas, o que fazer quando não se tem certezas físicas, e é
preciso recorrer ao que outras pessoas acham que pode ter acontecido?
Um dos grandes trunfos do roteiro de Anatomia de Uma Queda é seu multi-lingüismo. A esposa é alemã, o
marido morto era francês, os dois se comunicam em inglês. Cada palavra pesa. De
tempos em tempos o debate se cerra em torno do significado de uma palavra, que
o promotor que ouvir de um jeito (como “sedução”) e a testemunha insiste em
interpretar de outro. A acusada, Sandra, recebe a determinação de falar em
francês, já que o julgamento ocorre na França, mas volta e meia ela pede
licença e pula para a língua inglesa para explicar melhor o que sente – e isso
bota em atividade os tradutores simultâneos. Quem sai ganhando com a mudança? É
golpe? É estratégia?
Acabei me lembrando de um postulado meio radical de
George Steiner, citado por Douglas Hofstadter em Le Ton Beau de Marot (1997):
Deste modo, um ser humano pratica um ato de tradução, no pleno sentido
da palavra, quando recebe uma mensagem verbal de outro ser humano. (...)
Resumindo: no interior de uma língua, ou mesmo entre duas delas, qualquer
comunicação humana é sinônimo de tradução. Um estudo da tradução é um estudo da
linguagem. (trad. BT)
Neste filme, uma mulher alemã é acusada de matar o marido
e tem que se defender em duas línguas estrangeiras, seja o inglês que usava
para conversar com ele, seja o francês que é a língua falada pelo juiz, pelo
promotor, pela corte em geral.
Para tornar ainda mais movediço esse terreno, tanto ela
quanto o marido eram escritores profissionais, inventavam histórias,
manipulavam personagens, escreviam coisas que não necessariamente reproduziam
seus sentimentos e seus pensamentos.
Um sub-tema acusatório que surge durante o julgamento é o
de que ela teria plagiado um livro do marido, livro que ele jogou no lixo por
desgosto, mas do qual ela salvou uma idéia “de umas 20 páginas” que desenvolveu
mais tarde, criando outra narrativa, um romance de 300 páginas, que foi um
sucesso, elogiado pela crítica... E o marido acabou se sentindo prejudicado. Com
razão? Sem razão?
(Antoine Reinartz, o promotor)
Anatomia de Uma
Queda é um mistério criminal, é um drama de tribunal, é a história do
naufrágio de um casamento, mas a costura que une todas estas dinâmicas é a palavra, o modo como se usam as
palavras, como elas são cuidadosamente escolhidas para produzir efeitos
específicos nas pessoas, e como elas têm que ser exaustivamente analisadas para
que alguém possa tomar decisões a partir delas.
Tribunais se fundamentam na palavra, no que é
irremediavelmente pronunciado. Vale o que foi dito em voz alta. E gravado em
fita magnética. E registrado pelas estenógrafas. Mas (como diz a ré a certa
altura) nem sempre o que a gente grita em voz alta numa discussão é a
totalidade do que a gente sente. Como diz o bolero: “A gente briga... Diz tanta coisa que não quer dizer...” O que a gente diz é sintoma do
inconsciente, mas o consciente está justamente à procura de um antídoto para
isto, está tentando convencer o inconsciente de que ele está errado.
O filme é mais um que mostra como réus e testemunhas se
preparam para enfrentar a Corte: sendo interrogados de modo exaustivo pelos
próprios advogados, para não serem apanhados de surpresa, para escolherem bem o
vocabulário, para evitarem termos que podem servir de “gatilho” para deflagrar
uma acusação.
A mescla entre palavra e realidade é mostrada nos trechos
em que vemos em flash-back a vítima, Samuel.
Primeiro, na briga que ele gravou
no celular e que é reproduzida para os jurados e o público – só nesse momento a
narrativa mostra o marido e a esposa “em carne e osso”, discutindo. No momento
da briga física, porém, a imagem volta ao tribunal; ouvimos os baques, as
pancadas, mas não temos certeza de quem está batendo em quem, e mais uma vez
temos apenas a palavra dela quando diz que o marido, em desespero, estava dando
socos no próprio rosto, na própria cabeça.
Depois, é o depoimento do filho, relatando a conversa que
teve com o pai no carro, quando o pai lhe aconselhou a ficar preparado para a
morte do cão, que era inevitável – e o garoto percebe que era sobre a própria
morte que o pai falava. Mas nesta cena ouvimos apenas a voz do garoto. A imagem
do pai, em sincronismo labial perfeito, diz o que o garoto nos disse que ele
disse. Podemos confiar no garoto? As
“aspas”, as frases atribuídas a outra pessoa, nunca foram tão bem relativizadas
como nesta cena.
Acreditar é um ato da vontade, não da razão. Anatomia de Uma Queda mostra que, na
ausência de provas físicas, científicas, incontestáveis, temos o direito de
acreditar no que nos convém, ou, mais precisamente, no que se harmoniza melhor
com as nossas experiências prévias, e com as nossas expectativas futuras.
O filme nos acompanha para casa, após a sessão, e nega a
resposta confortável que a maioria dos filmes nos oferece: “Fulano é inocente”,
“Fulano é culpado”. Em quantos casos de culpa e inocência, na vida real, temos
certeza da verdade? Em quantos casos não acabamos acreditando naquilo em que,
para nós, é mais seguro acreditar?
(Swann Arlaud, a diretora Justine Triet, Sandra Hüller, Milo Machado-Graner)
Assisti hoje , muito boa a resenha, acompanha a qualidade do filme. Assim como acho que Capitu botou a alhada no chato do Bentinho, eu tenho certeza que foi assassinato.
ResponderExcluir*galhada
ResponderExcluirExcelente, Mestre! Chamou-me a atenção a dificuldade também de comunicar palavras, expressões e modos de dizer que seriam de algum modo "aceitáveis" na intimidade de um casal e o que podem parecer agressivos quando expostos numa situação pública, sem o envolvimento afetivo e um contexto muito próprios. Se não me falha a memória a ré numa passagem é inquirida se o que ela disse revelado pela gravação era verdade e ela hesita e contrariada diz: Sim, mas não é bem assim ou algo similar. Enfim, é um filme que pode ser retalhado pelas ciências humanas em vários temas para discussão
ResponderExcluirBraulio, comentário aleatório aqui, mas vi na internet uma foto que me lembrou de ti:
ResponderExcluirhttps://www.reddit.com/media?url=https%3A%2F%2Fpreview.redd.it%2Fo-iceberg-da-paraiba-v0-g2gb1yr0afzb1.jpeg%3Fwidth%3D1952%26format%3Dpjpg%26auto%3Dwebp%26s%3D123049e14a9dd64d04cabd413f97f69c53bcc657
(o link da foto)
Piadinhas a parte, alguns desses causos daria uma boa FC paraibana. Tenho certeza que tu deve conhecer um tanto de história maluca desse tipo kkkk