quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

5032) Há dez mil anos atrás (15.2.2024)




Existe no mundo de hoje uma “Polícia do Idioma” que George Orwell não foi capaz de imaginar quando escreveu a sua distopia 1984, há mais de 70 anos atrás. 
 
É uma polícia – ou melhor dizendo uma milícia, porque eles mesmos resolveram sair prendendo e arrebentando, sem que ninguém os contratasse – que cismou de encontrar erros em tudo que vê pela frente. São as Palmatórias do Mundo, cuja especialidade é castigar quem comete erros. Na verdade, não são fanáticos do acerto, são fanáticos do castigo. 
 
Eu cometo meus erros de português a três por dois, e em geral é por desconhecimento mesmo: eu não sabia que o certo era dizer X e dizia erradamente Y.  Me refiro a erros factuais, indiscutíveis (do meu ponto de vista). Quando me cutucam, corrijo e procuro me lembrar na próxima vez. 
 
Outras vezes são erros que se devem ao que chamamos de pensamento contra-intuitivo. Eu escrevo um errado que me parece certo, e vem uma pessoa e explica que devo escrever um “certo” que ao meu ouvido é errado. Até me esforço, mas não acostumo. Vida que segue. Escrevo como acho melhor. Podem me tirar um ponto na prova. 

O que eu gostaria de comentar agora é um dos termos mais escorregadios da nossa língua, que é o famoso “a’. Nós temos: 
 
1)      O “a” que serve como artigo definido: a porta / a janela / a parede. 

2)      O “a” que serve como preposição: Entreguei o prato a Fulano / minha casa fica a uma quadra do shopping / pergunte isso a minha mãe. 

3)      O “à” com acento grave, indicativo da crase, quando os dois “aa” anteriores se misturam num só: vamos à praia / andar à toa / viagem à França.

4)      E como se não bastasse, temos o “há” do verbo haver, que se pronuncia igual aos três anteriores: escrevi isto há um ano / há muita gente esperando / isto é tudo que há na gaveta. 
 
Uma maioria respeitável da população brasileira, comigo no meio, de vez em quando escorrega ao lidar com esses sósias. 
 
Uma coisa que sempre me incomodou foi redigir frases assim: Gosto de computador, mas também gosto de escrever a mão. Penso logo que esse “a” tem função de artigo. Eu estou escrevendo alguma mão? Mão de quem? Estou desenhando uma mão? Por isso prefiro escrever, para deixar tudo mais claro: Gosto de escrever à mão.  Mesmo que não haja nenhuma razão gramatical para esse acento. 
 
É o mesmo caso da expressão “à distância”: Fiquei observando tudo à distância, sem ser percebido. Tecnicamente falando, esse acento só deveria aparecer se eu estivesse me referindo a uma distância clara, precisa: Observei tudo à distância de vinte metros.  Mas continua parecendo estranha, aos meus olhos e ouvidos, uma frase assim: Não tenho muita simpatia com o ensino a distância. 
 
Transcrevo a explicação (que bate com a minha impressão pessoal) do websaite Língua Brasil, com o respectivo link:
 
https://www.linguabrasil.com.br/nao-tropece-detail.php?id=43
 
--- Tenho certa resistência em grafar ensino a distância, sem o acento grave indicativo de crase, como é comum encontrar nos documentos exarados pelo MEC. Alguns autores classificam tal ocorrência como crase facultativa. Podia comentar? Prof. José T. B. Neto, Umuarama/PR 
 
RESPOSTA – Não está errado o Ministério da Educação. Mas eu, assim como o professor, prefiro usar o acento – nessa e em outras locuções adverbiais femininas que indicam circunstância. O motivo é que a ausência do acento pode deixar o texto ambíguo. Em “ensinar/estudar a distância”, por exemplo, fica-se com a impressão de que é a distância que está sendo ensinada ou estudada. É o mesmo caso de viu a distância, escreveu a distância, curou a distância, fotografe a distância, permanece a distância [= a distância permanece] e assim por diante, que parecem melhor quando craseadas: viu à distância, escreveu à distância, curou à distância, fotografe à distância, permanece à distância. 
 
Em casos assim (vejam como a Língua é uma coisa curiosa) o acento grave não indica a crase – indica apenas que aquele “a” é uma preposição. Intuitivamente, o brasileiro vê o “a” sozinho como artigo (“convidei a comadre Sebastiana”), e quando sente que o “a” é preposição tem o impulso (geralmente equivocado) de mandar um acento grave: “já expliquei isso à você”. 
 
Outro caso que me deixa desconfortável é o de expressões como “há um ano atrás”. A regra básica a respeito disto é que quando é uma coisa situada no passado, usa-se “há”: Comprei este carro há quatro anos.  E quando é uma coisa situada no futuro, usamos “a” (preposição): Vou trocar de carro daqui a dois meses. 
 
Segundo os defensores da pureza da língua, esta regra já basta para esclarecer tudo, e portanto é errado dizer: Comprei este carro há quatro anos atrás. É desnecessário juntar na mesma frase a forma “há” e o termo “atrás” – ambos indicam passado, portanto um dos dois é desnecessário. 
 
Quando me cobram isto, eu digo: “É pleonasmo, é reforço, eu estou reafirmando de maneira inequívoca que é um fato passado; é um exagero normal da linguagem, como dizer ‘vi com os meus próprios olhos’.” 



Neste caso, contudo, me parece que a raiz do problema está na linguagem falada. A linguagem escrita, pela diferença gritante de grafia, nos permite distinguir entre “há” e “a”. Mas na linguagem falada, os dois sons são idênticos. Eu digo em voz alta: Comprei este carro há quatro anos, mas, no momento mesmo em que digo, tenho (até eu, o dizente) a sensação de estar dizendo: Comprei este carro a quatro anos. E aí, para reforçar minha intenção correta, coloco o “atrás”, para que não fique nenhuma dúvida de que me refiro a um fato passado. 
 
Certo? Errado?  O critério de certo-e-errado é essencial para a Língua, e se eu não pensasse assim não quebraria tanto a cabeça tentando acertar. Mas há momentos em que mais importante do que o rigor gramatical é a clareza na informação. A comunicação sem mal-entendidos e sem solavancos. A possibilidade do entendimento imediato sem digressões e sem pausas para explicar um detalhe. 
 
O verbo “haver”, tão simpático, é um verbo danado de irregular. Parece ter sido inventado por M. C. Escher – é cheio de esquinas abruptas, desvios inesperados de som, de grafia e de sentido, e todas as vezes que a gente bota ele na conversa se arrisca a ir parar num beco sem saída. Não e de admirar que o brasileiro, em geral, prefira substituí-lo pelo seu primo-pobre, o verbo “ter” quando lhe veste o sentido. Tem muita gente que faz assim, e se safa. 



(M. C. Escher, "Relativity")
 
 




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