Uma frase famosa de Jorge Luís Borges diz: “Sempre
imaginei o Paraíso como uma espécie de biblioteca”.
Borges tinha a inteligência de repetir de tempos em
tempos suas melhores frases, para diferentes públicos e em diferentes
contextos, pois sabia que esta é a melhor maneira de dar à frase uma vida
longa.
Em todo caso, o texto mais confiável e mais conhecido, no
presente caso, é o seu comovente “Poema de los Dones”. Os poemas de Borges são
republicados em diferentes livros. Tenho versões deste em El Hacedor (1960) e em El
Otro, El Mismo (1969).
No poema, ele diz:
Lento en mi sombra, la penumbra hueca
exploro con el báculo indeciso,
yo, que me figuraba el Paraíso
bajo la especie de una biblioteca.
(“Poema de los Dones”,
1955)
Ao poema é atribuída a data de 1955. Ele parece ter sido
escrito em função de dois eventos: a cegueira definitiva em que mergulhou o
escritor, e a sua nomeação para a Biblioteca Nacional, após a queda do ditador
Perón, que tanto perseguiu sua família. Ele se refere assim a este período em
suas anotações memorialísticas Perfis:
A por-tanto-tempo-esperada revolução veio em setembro de 1955. Depois
de uma noite de ansiedade e insônia, quase toda a população saiu às ruas,
aplaudindo a revolução e gritando o nome de Córdoba, onde a maior parte da luta
ocorrera. Estávamos tão empolgados que por algum tempo nem percebemos a chuva
que nos encharcava até os ossos.
(Perfis, Ed. Globo/MEC, 1971, trad. Maria da Glória Bordini,
p. 112)
Todos conhecemos essas noites e dias de êxtase cívico, e
mesmo o sarcástico Borges experimentou estas felicidades quase infantis de tão
sinceras. Talvez seja a isto que ele se refere em seu “Outro Poema dos Dons”, uma
espécie de “Gracias a la Vida” em que o poeta agradece as coisas que lhe deram
alguma alegria, e diz a certa altura: “Gracias
quiero dar... (...) por ciertas vísperas y días de 1955”.
(...) Duas amigas minhas, muito estimadas, Esther Zemboraim de Torres e
Victoria Ocampo sonharam com a possibilidade de eu ser indicado para a direção
da Biblioteca Nacional. (...) Poucos dias antes, minha mãe e eu andáramos até a
biblioteca à noite para dar uma olhada no edifício, mas sentindo-me
supersticioso, recusei-me a entrar. “Não antes de conseguir o emprego”, disse. (p.
112-113)
(A antiga Biblioteca, na Rua México)
Borges foi nomeado, exerceu o cargo (na antiga sede da
BN, na Rua México), mas já estava cego. Estava no Paraíso e fora dele. Como
talvez ocorreu com Dante Alighieri, que encontrou no Paraíso a sua amada
Beatriz, mas quem sabe, talvez tivesse preferido encontrá-la aqui mesmo, na prisão
carnal.
Não escapou ao autor de O Aleph a ironia dessa dádiva contraditória, o recebimento
simultâneo de “oitocentos mil livros e a
escuridão”. Ele abre o poema citado dizendo:
Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
esta declaração da maestria
de Deus, que com magnífica ironia
deu-me a um só tempo os livros e a noite.
(trad. Josely Vianna Baptista)
É típica da serenidade que Borges procurava manter essa
expressão “Ninguém rebaixe a lágrima”:
esse “a” não é artigo, é preposição (como em “Foi promovido a diretor”). Desmanchado em prosa vulgar, o verso
diz: “ninguém apequene, a ponto de transformar em choro, isto que me
aconteceu”.
O detalhe interessante é que “biblioteca”, em inglês, é
“library”, e como Borges é abundantemente citado em inglês, muita gente entra
em contato com essa frase via língua inglesa ou então via o
“inglês-traduzido-ao-pé-da-letra”, essa planta daninha que está invadindo a
nossa língua brasileira como a algaroba invadiu o Sertão e o eucalipto invadiu
a África do Sul.
Em A Personal
Anthology (Grove Press, 1967), a estrofe é traduzida assim:
Within my darkness I
slowly explore
the hollow half light
with hesitant cane,
I who always imagined
Paradise
to be a sort of
library.
E em consequência de tudo isto as pessoas atribuem ao
argentino a frase: “Sempre imaginei o
Paraíso como uma espécie de livraria”.
E isto produz um espelhamento interessante dessa idéia,
porque livraria e biblioteca são duas coisas muito próximas e ao mesmo tempo
opostas.Tirando por baixo, a biblioteca é para quem precisa ler livros de
graça, e a livraria para quem pode pagar para ler um livro.
Há uma certa tentação em ver nessa dicotomia uma oposição
entre “comercialismo x não-comercialismo”. Sempre que vejo essa transcrição
fico imaginando como seria a livraria do Paraíso. Quem estabelece os preços? E
qual o critério? Qualidade? O livro de Borges será vendido por mil dólares, e o
meu por cinco?
Livraria e Biblioteca não são empresas antagônicas, antes
são complementares, e se ajudam mutuamente. O que há de interessante neste
deslize tradutório é o fato de alguém – um leitor de Borges, ou jornalista, ou
professor, ou cristão sincero – ser capaz de imaginar o Paraíso como um
estabelecimento comercial, onde as recompensas espirituais, da indulgência à
beatificação, estão sempre disponíveis, mas é preciso antes dar uma passadinha
no caixa.
Afinal, é a isto que está se reduzindo a experiência
religiosa entre nós. (Resisto a imaginar que a Borges, o rei do duplo sentido,
não terá passado despercebido logo este.)
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