sábado, 6 de maio de 2023

4939) Nick Cave e a coroação do Rei Charles (6.5.2023)




No próximo sábado (estou escrevendo na 4ª. feira, dia 3) o Rei Charles da Inglaterra vai ser coroado, e o Reino Unido fervilha de piadas, memes, debates, fofocas.  Para isso servem as monarquias, afinal – para tirar dinheiro dos turistas, e para aquecer as fantasias-de-poder das multidões. 
 
A monarquia é puro espetáculo. O Império brasileiro, por exemplo, teve um imperador playboy, pegador e voluntarioso. Foi substituído pelo filho – intelectual, conciliador, severo, mas que mesmo assim não abominava o espetáculo. O Baile da Ilha Fiscal não foi apenas o símbolo do fim de uma era, foi o adeus à pompa e a frivolidade do reino para dar lugar à rudeza e ao suor da caserna. 
 
E os dois não estão assim tão distantes um do outro, porque as monarquias são construídas no fio das espadas e no fundo das alcovas. Já dizia o impagável Pedro Dinis Quaderna, de Ariano Suassuna, no Romance da Pedra do Reino (1971):



“Pode dizer, Excelência!  Eu absolutamente não me incomodo mais de ser filho-da-puta!  Ou melhor, de ser neto-da-puta, porque minha Mãe, coitada, é que era filha-da-puta, filha bastarda do Barão do Cariri e portanto irmã por vias travessas de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto.  Antes, eu ficava danado da vida quando alguém falava nessa filho-da-putice nossa.  Mas lá um dia, numa discussão, Samuel declarou que isso de bastardia não tem a menor importância nessas coisas de fidalguia e linhagens reais, tanto assim que os Braganças, descendentes de Dom João I e Nuno Álvares Pereira, são várias vezes bastardos e netos de padre!  Depois daí, fiquei descansado e perdi a vergonha!” (Folheto 53) 
 
Satirizar a espetacularização do poder e a glamurização da banalidade é um dos esportes favoritos de escritores, intelectuais, artistas em geral. E quando o roqueiro Nick Cave, um dos expoentes do dark rock de língua inglesa, foi anunciado dias atrás como um dos convidados para a coroação de Charles, houve no meio roqueiro um certo movimento sísmico de incredulidade e deboche. 
 
Nick Cave distribui periodicamente uma newsletter, The Red Hand Files, onde troca idéias com seus admiradores, responde perguntas, discute questões propostas. E no número 235, já agora nos primeiros dias de maio, ele reproduziu as mensagens de espanto de alguns fãs: 
 
-- Que diabos, você vai pra coroação do Rei?  (Jon)
-- Fiquei sabendo que você vai para a coroação, fazendo parte da delegação da Austrália. Você é monarquista? Por que está indo? (Adrian)
-- A co-ro-a-ção?  Fala sério. (Roger)
-- Nick Cave vai à coroação? O que será que o jovem Nick Cave ia pensar disto?! (Matt)
 
Com a sisudez e a franqueza de sempre, o roqueiro respondeu (tradução minha):
 
Caros John, Adrian, Roger e Matt:
Vou dar uma resposta breve, porque ainda estou escolhendo uma roupa para usar na Coroação.
 
Não sou monarquista, nem sou roialista [Nota do tradutor: neologismo português recente], como também, por falar nisto, não sou o mais ardente dos republicanos. O que também não sou é espetacularmente desinteressado pelo mundo e pela maneira como ele funciona; não sou tão ideologicamente sequestrado nem tão ranzinza a ponto de recusar um convite para (talvez) o evento histórico mais importante no Reino Unido em nossa geração. Não apenas o mais importante, mas o mais estranho, o mais bizarro.
 
Encontrei a falecida Rainha uma vez, no Palácio de Buckingham, num evento dedicado aos “Australianos Mais Promissores Morando no Reino Unido” (ou coisa parecida). Foi uma ocasião meio canhestra, mas a Rainha em pessoa, vestida num conjunto cor de salmão, parecia quase extraterrestre, e era a mulher mais carismática que conheci. Talvez fosse a iluminação, mas ela de fato emitia uma espécie de brilho. Quando contei a minha mãe – a qual tinha a mesma idade da Rainha e, como ela, morreu com mais de 90 anos – a respeito dessa ocasião, seus velhos olhos se encheram de lágrimas. 
 
Quando acompanhei o funeral da Rainha pela TV no ano passado percebi, para meu próprio pasmo, que também eu estava chorando quando retiraram do ataúde a coroa, o orbe e o cetro, e o abaixaram para a abertura sob o piso da catedral de São Jorge. Estou tentando dizer a vocês que, para além do interminável mas necessário debate sobre a abolição da monarquia, tenho um inexplicável vínculo emotivo com a família real – sua estranheza, e a natureza profundamente excêntrica de todo esse fenômeno, o qual reflete com perfeição a bizarrice inigualável da próprio Grã-Bretanha. Eu simplesmente sinto uma atração por esse tipo de coisa – tudo que é bizarro, estranho, extraordinariamente espetacular, tudo que nos deixa pasmos.  
 
Quanto ao que o jovem Nick Cave iria pensar... bem, o jovem Nick Cave era, com todo o respeito ao jovem Nick Cave, jovem, e como muitos outros jovens, era ligeiramente insano, e eu procuro ter uma certa moderação ao usá-lo como parâmetro para o que eu devo ou não devo fazer. Mas era um cara legal, eu tenho que admitir. Era insano, mas era um cara legal.
Com tudo isto em mente, estou me preparando para ir à Coroação. Acho que vou de terno.
Com amor, Nick


 
Sou um admirador de Nick Cave, um dos grandes poetas do rock em sua geração. Ele é uma espécie de Edgar Allan Poe com auto-controle. Tem a fagulha demoníaca, a vulnerabilidade angelical, o cinismo neo-urbano, o romantismo temperado pelo senso da fatalidade, a influência má dos signos do Zodíaco. E é australiano, ou seja, vem de uma espécie de Brasil-do-império-britânico, um país posto de pé com o muque de degredados, bandidos, fanáticos, aventureiros, religiosos de maus costumes, fidalgos de má reputação.
 
Pior que o Brasil, aliás, porque o Brasil pelo menos tem amazônias inteiras para vender. Teve madeira, ouro, açúcar, diamantes; hoje tem petróleo e floresta. Já a Austrália (posso estar sendo injusto, claro) é um deserto de sal, que o ser humano tenta comer pelas beiradas e ainda não conseguiu.


 
Bruce Chatwin, em The Songlines ("O Rastro dos Cantos", Companhia das Letras, 1987), mostra a Austrália como uma mistura de sítio arqueológico e solo sagrado ao ar livre, invadido e depredado aos poucos. Werner Herzog, amigo de Chatwin, glosou o mesmo mote em filmes como Nomad (2019) e Onde Sonham as Formigas Verdes (1984).
 
Neste último, ele mostra o confronto às vezes violento entre os aborígines australianos, defensores de seus sítios religiosos, e as construtoras e mineradoras européias, vindas para passar o trator, a dinamite e a escavadeira naquilo tudo. Em algumas cenas de tribunal, discutem-se os respectivos direitos, e os aborígines precisam vestir ternos para defender seu território diante de um juiz britânico.
 
“Acho que vou de terno” (Nick Cave)


(Roy Marika e Wandjuk Marika, em Onde Sonham as Formigas Verdes)

 
Dizem que quando D. Pedro II estava exilado em Paris, no fim da vida, fez uma visita a Victor Hugo, a quem admirava muito. Os dois conversaram de maneira sisuda e cortês sobre temas literários. À saída, Hugo o tratou por “Majestade”, e D. Pedro respondeu: “Só há uma majestade aqui, e é Victor Hugo”.
 
Wilson Martins comenta que esta resposta foi dada com mais malícia do que parece à primeira vista, mas eu, como tenho cabeça de romancista, posso imaginar que foi sincera, assim como posso imaginar o Rei Charles III apertando a mão de Nick Cave e tratando-o por “Majestade”. Depois de toda a esculhambação a que o rock britânico já submeteu a monarquia, seria uma vingançazinha divertida.


 
(Príncipe Charles e Princesa Diana visitando Uluru (“Ayers Rock”), sítio sagrado dos aborígines australianos, 1983)






Um comentário:

  1. Por uma feliz coincidência estou lendo Fé Esperança e Carnificina, com uma série de entrevistas do Nick Cave. E o seu artigo trouxe uma visão complementar desse artista que tanto admiro. Perfeito!

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