Ítalo Calvino é capaz de juntar num mesmo texto a manipulação
pós-moderna dos instrumentos narrativos e a capacidade de empregá-los para
contar uma história à moda antiga. Nem todo mundo consegue. Um problema da
escritura de vanguarda, a escritura que questiona explicitamente os
instrumentos que usa, é que o resultado é quase insignificante. O texto fica
sendo só experimentação e questionamento. O leitor acostumado a ler histórias
pensa consigo: “Sim, entendi o questionamento. E daí?...”
Por outro lado, como dizia Bernard Shaw (se não me
engano) sobre artes plásticas: “As pessoas que não gostam da Arte Moderna também
não suportam mais a arte à moda antiga.”
Eu estou um pouco nessa zona crepuscular, porque há
muitos autores de vanguarda que eu admiro, leio, comento, mas não tenho prazer
em ler. O texto, mesmo apresentando-se como um romance, conto, etc., é só uma
reflexão sobre o Texto. Um experimento necessário, é claro, mas se a literatura
inteira fosse daquele jeito eu não leria muitos livros.
Calvino faz experiências com as técnicas narrativas, mas consegue
contar histórias que são alternadamente divertidas, reflexivas, desconcertantes,
humanas, absurdas, reveladoras... Ou seja, cumprem a mesma multiplicidade de
funções que cumpriam as histórias escritas nos anos 1800 e 1900.
Um bom exemplo disto é a trilogia que estou lendo, Nossos Ancestrais, que inclui os livros O Visconde Partido ao Meio (1952), O Barão nas Árvores (1957) e O Cavaleiro Não-Existente (1959). Farei
alguns comentários sobre este último.
Li O Cavaleiro
Não-Existente numa tradução em inglês (“The Non-Existent Knight”, Picador,
trad. Archibald Colquhon), onde percebi que os nomes próprios têm grafia
diferente do original (Rambaldo torna-se Raimbaud, Gurdulù vira Gurduloo,
etc.).
Em primeiro lugar, quando Calvino usa protagonistas do tipo
visconde/barão/cavaleiro ele está pedindo emprestados não apenas
personagens-símbolos dos velhos romances de cavalaria, mas também os nobres que
são a encarnação daquela Europa refinada, aristocrática, guerreira,
grandiloquente. E ele faz com esses personagens o mesmo que Cervantes fez com
seu Dom Quixote. Uma desconstrução bem-humorada do cavalheirismo, dos códigos
de nobreza, da valentia, das obsessões genealógicas.
Depois, as confusões em que os personagens se metem
parecem mais reais do que os ideais que defendem. Calvino tem (como Fellini,
como Pasolini) a intuição correta e vivida de como as pessoas comuns se
comportam em variadas situações. A batalha contra os mouros pode ser uma mera
abstração, sem nenhuma autenticidade histórica, como num folheto de cordel ou
num desenho animado. Mas os dramas individuais soam verdadeiros. Como já vi um
leitor dizer uma vez: “O livro é bom porque quando o personagem tem um problema
a gente se aperreia.”
Nestas fábulas cavalarianas, Calvino pega um personagem
meio absurdo e tece em torno dele e de suas ações um rosário de histórias
menores e de personagens impagáveis. O “cavaleiro não-existente” é Sir
Agilulfo, que não passa de uma armadura vazia mas que pensa, fala, age,
discute, entra em combate, etc. Vale
como uma radicalização daquele personagem de Machado de Assis (“O Espelho”) que
só se via no espelho quando vestia o uniforme militar.
No livro, entretanto, Agilulfo chama-se “Agilulfo Emo
Bertrandino dei Guildiverni e degli Altri di Corbentraz e Sura, cavaliere di
Selimpia Citeriore e Fez”, ou seja, é um representante legítimo da meritocracia
hereditária do mundo feudal e monárquico. “Tem que respeitar!...”
Agilulfo é antipatizado no exército de Carlos Magno. Os outros
cavaleiros o aceitam porque ele exerce a indispensável e chata função de
organizador de logística do exército, supervisionando comidas, dormidas,
etc. É um fanático da organização e da
informação. Numa cena hilária, uma viúva bonitona consegue levá-lo para a
alcova, pensando tratar-se de um homem como os outros. Agilulfo não quer despir
a armadura e revelar-se inexistente, e no mais puro espírito nerd passa a noite ensinando longamente à beldade as técnicas corretas de como acender a lareira, como forrar a cama,
etc., e nada acontece.
A história tem momentos que lembram Dom Quixote, outros que lembram Monty
Python e o Cálice Sagrado. Sem ser propriamente um romance humorístico, ele
provoca sorrisos pela justaposição inesperada entre emoções e ambientes que não
combinam entre si, ou entre valores morais e necessidades práticas, ou entre a
fantasia afetiva do personagem e o que de fato está acontecendo ao seu redor.
Todos nós achamos hoje em dia que o povo medieval vivia
numa espécie de delírio coletivo, acreditando em conceitos invisíveis e
não-existentes, morrendo e matando por causa deles. Eles pensariam o mesmo de
nós. E por isso a sátira de Calvino tem dois gumes.
O autor brinca com instrumentos literários como a voz
narrativa. Há um narrador invisível contando esta história das aventuras do
inexistente Agilulfo, do jovem escudeiro Raimbaud, do brutal e desorientado
Gurduloo, e outros. O capítulo 1 começa de forma tradicional:
Por baixo dos parapeitos vermelhos das muralhas de Paris, o exército da
França estava reunido. Carlos Magno preparava-se para passar em revista os seus
paladinos. Eles já estavam à espera há mais de três horas... (trad. BT)
É uma típica história contada por um narrador onisciente.
Ele descreve os fatos como um Deus que lá do alto vê não apenas os grandes
acontecimentos, mas sabe das emoções mais íntimas de cada personagem, e até de
coisas que eles próprios não sabem.
A narração prossegue assim, bem normal, até que o
Capítulo 4 se inicia com uma longa reflexão sobre os conceitos de existir e
não-existir, e a certa altura lemos:
Eu, que conto esta história, sou a Irmã Teodora, freira da ordem de
Santa Columba. Escrevo de um convento, baseando-me em velhos papéis descobertos,
ou relatos escutados em nosso parlatório, ou ainda em raros depoimentos de
testemunhas. Nós, freiras, temos raras oportunidades de conversar com soldados;
portanto, aquilo que eu não sei sou obrigada a imaginar, e digam-me, que outro
recurso eu teria? Nem toda esta história está clara para mim. Tenho que
implorar indulgência; nós, moças do campo, mesmo de sangue nobre, vivemos vidas
reclusas, em castelos e conventos afastados; e a não ser por cerimônias
religiosas, tríduos, novenas, jardinagem, plantio, cuidados com a vindima,
punições pelo chicote, escravidão, incestos, incêndios, enforcamentos,
invasões, saques, estupros e epidemias, somos pessoas com pouca experiência do
mundo. (trad. BT)
Deste momento em diante, o livro ganha outra dimensão,
porque em vez do onisciente Calvino quem está nos contando a história é a
desabusada “Irmã Teodora”, que toma diante de nós liberdades narrativas
estonteantes.
Um dos mandamentos básicos da Arte da Narrativa é: faça o
leitor (espectador, ouvinte, etc.) acreditar nos personagens, interessar-se por
eles, preocupar-se com o que lhes acontece. Os livros que permanecem costumam
ter essa capacidade. Isto está presente em obras como Em Busca do Tempo Perdido de Proust, O Nome da Rosa de Umberto Eco, Grande
Sertão: Veredas de Guimarães Rosa... E também em best-sellers formulaicos, como os livros de espionagem de Ian
Fleming ou as novelas de amor de Barbara Cartland. As pessoas parecem reais. O
que acontece com elas, mirabolante, banal, absurdo, nos interessa.
Isto não quer dizer que não haja grandes obras literárias
sem estas características. A literatura, no entanto, é um diálogo, ou melhor,
uma discussão coletiva entre autores e leitores, onde têm mais chance de marcar
presença as obras que (de acordo com a antiga e quase inatingível fórmula) usam
uma linguagem interessante para contar coisas interessantes que acontecem com
criaturas interessantes.
A história tem até uma Dulcinéia ao contrário: é a donzela Bradamante que se apaixona por alguém que não existe.
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