“A mais completa tradução de São Paulo”, no verso de Caetano Veloso. Eu não diria a mais completa, porque acho meio utópica a idéia de que uma parte possa representar bem o todo. Eu diria que era a idéia mais femininamente charmosa de São Paulo, pois naquele tempo eu (falo de eu-adolescente, eu-dezesseis anos quando ela tinha dezenove) via São Paulo como uma cidade lúgubre, cinzenta, fuliginosa, tchecoslovaca, uma espécie de 1984 dublado em português. A São Paulo terrificante do Lugar Público de José Agrippino de Paula.
Volto a dizer aqui algo que já falei sobre a imagem da
mulher sexy. Minha geração (não falo pelas outras) foi submetida a um
bombardeio de mulheres fatais do cinema, aquelas que Carlos Drummond chamava de
“as sereias vulcânicas da Broadway”. Era Elizabeth Taylor, Jayne Mansfield, Rachel Welch, Kim Novak, Ursula
Andress... Mulheres fatais, mulheres capazes de descarrilar uma
locomotiva com um olhar. E vigorosas. Lembro de uma palestra de Antonio Callado
em que ele se referia a personagens femininas “tão atemorizantes quanto uma
nadadora olímpica iugoslava”.
Rita Lee era o contrário disso, e se não foi a mais
completa tradução de sua cidade foi a de sua época, a época das garotas de
minissaia, botinhas, boné, casaco, gola olímpica, as Annas Karinas, as Jeannes
Moreaus, as garotas-do-apartamento-ao-lado. Jogando em cima disto, claro, a
carnavalização figural dos Tropicalistas. Com ou sem fantasia, eram garotas da
vida real que se comportavam (inclusive no palco) como gente. Você não imagina
Marlene Dietrich dando uma topada no palco. Eu conseguia imaginar Rita Lee
dando uma topada, se estabacando no chão, e levantando às gargalhadas.
Os Mutantes traziam também um fio de ficção científica –
a FC que nunca mais deixei de associar à capital paulistana. Ao que parece
(versões divergem), o grupo tirou seu nome do livro O Império dos Mutantes (“La Mort Vivante”, Stefan Wul, 1958), que o
grupo leu sob este título na edição portuguesa (a tradução brasileira se chamou
“A Cadeia das 7”).
Era um livro sobre clonagem, em que o DNA de uma menina é
reproduzido sete vezes (por segurança, para o caso de alguma falha) em
laboratório. Algo foge ao controle (ou não seria FC) e daí a pouco temos sete
meninas clones, idênticas, telepáticas e (pouco a pouco) todo-poderosas.
Havia nos Mutantes, talvez, essa utopia ingênua do “somos
todos um só”, o famoso “I am he, as you are he, as you are me, and we are all
together”. Não eram: a banda brigou, Rita foi expelida, decolou numa carreira
solo, voltou arrasadoramente no fim dos anos 1970 com “Mania de Você”, ao lado
de Roberto de Carvalho; e o resto é história. Um pop brasileiro com voz
feminina, pegada roqueira, doçura bolerística, sarcasmo urbano, letras de quem
gostava de ler.
A história de Rita foi se me revelando de pouquinho, ao
longo dos anos. Eu sabia desde o início que ela tinha ascendência
norte-americana, e achei que “Lee” era sobrenome da família, sendo seu nome completo
“Rita Lee Jones”.
Nos anos 1980, já morando no Rio de Janeiro, comecei a
ajudar Duncan Lindsay (“o irmão de Arto”) numa pesquisa dele sobre ex-Confederados
norte-americanos que, derrotados na Guerra da Secessão, vieram morar no Brasil
a partir de 1867. Entre eles, algum antepassado de Rita, cujo “Lee” não era
sobrenome de família, e sim homenagem ao famoso General Lee.
Segundo descobri através de Duncan, havia toda uma
história de Confederados que se auto-exilaram no Brasil após a derrota, muitos
indo morar na Amazônia, e outros no interior de São Paulo. Em Santa Bárbara d’Oeste,
terra do pai de Rita, há um Cemitério dos Americanos. A cidade de Americana
(SP), deve seu nome a essa corrente migratória. Que nos deu, afinal, a “ovelha
negra” da família Jones.
É mais um fio-de-aranha da História, daqueles difíceis de
enxergar e difíceis de romper, ligando a guerra de libertação dos escravos
norte-americanos e a formação do rock brasileiro. Como diziam os dialéticos,
tudo se relaciona, tudo está interligado. Isto não quer dizer que tudo seja
causa de tudo, mas que tudo é efeito-conjunto de um tecido, de um
entrecruzamento de presenças.
Quando algum artista morre, os coleguinhas de imprensa
sempre vêm nos perguntar “qual é o legado que Fulana de Tal nos deixa”. O
legado somos nós, companheiro. O legado de uma pessoa como Rita Lee é a pessoa
que eu sou hoje, e não desmereço o legado dela dizendo que há mil outros
legados, além do dela, teclando estas palavras.
Somos um tecido, um texto, fios entrecruzados por onde
passa uma corrente de alguns ampères. E o mais interessante é que, mesmo que a
partir de hoje um desses fios não esteja mais aqui, a corrente vai continuar passando. Por
que? Não sei, só sei que a gente faz amor por telepatia.
(ilustração by Fraga)
Maravilha!
ResponderExcluirBravoo
ResponderExcluirMaravilha de texto. Viva Rita Lee, Viva Braulio Tavares.
ResponderExcluirCLAP, CLAP, CLAP!
ResponderExcluirBelezura do princípio ao fim, Braulio.
Mas os dois últimow parágrafos ficam emoldurados na retina.
Abrrr!