4830) "Outer Range": as famílias karamazovianas (6.6.2022)
Entre as muitas obras-primas que nunca li, mas que às vezes é
como se tivesse lido, está Os Irmãos
Karamazov (1880) de Fédor Dostoiévski. É a história de um patriarca russo
com três filhos, e da relação tensa e explosiva entre todos eles. Uma história
que envolve patriarcado, política, homicídio, religião, poder.
Além da Margem (“Outer
Range” 2022) é uma série de TV em exibição no Amazon Prime, criada por Brian
Watkins e tendo no elenco Josh Brolin, Imogen Poots, Lili Taylor e outros. O
canal de streaming já pôs no ar a
primeira temporada completa, com oito capítulos.
É um faroeste de ficção científica, porque conta da
descoberta de um portal de viagens no Tempo, localizado num terreno em disputa
por duas famílias da rancheiros, os Abbott e os Tillerson. A ambientação é no
Wyoming (com belas paisagens), e é explicitamente agro-pop. Há um Tillerson que
quer ser cantor sertanejo, há um Abbott que quer ser peão de rodeio.
Como tantas outras tocas de coelho da ficção fantástica,
o “buraco” descoberto na fazenda (um círculo escuro no meio da pastagem, com
uns 10 metros de diâmetro, sem fundo visível) é um portal onde se entra sem
saber onde se vai sair – ou quando. Tematicamente está conectado a portais
semelhantes em Dark (série alemã) e
em Night Sky (que comentei aqui, dias
atrás: https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/05/4828-night-sky-fc-da-terceira-idade.html
.
Em alguns momentos, a descoberta do “buraco” e da massa
escura que mina lá de dentro parece uma metáfora da descoberta do petróleo,
este combustível que arruinou de forma indelével o equilíbrio biológico do
planeta. Um portal para um futuro de fortunas espantosas e devastação cruel.
A briga dos Tillerson contra os Abbott lembra a briga de
vizinhos em Giant (“Assim Caminha a
Humanidade”, 1956) de George Stevens – a tensão entre Jett Rink, que fica
milionário com o petróleo, e Bick Benedict, que quer continuar criando
gado. Lembra também outro faroeste
moderno, Hud (“O Indomado”, 1963) de
Martin Ritt, onde um velho fazendeiro criador de gado é confrontado pelo filho
ambicioso e sem escrúpulos. (Comentei aqui: https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/03/4680-crise-e-sinonimo-de-lucro-422021.html
.
O Oeste é um campo de batalha histórico entre
agricultores, criadores de gado, prospectadores de petróleo. Outer Range sugere um salto a mais, um salto futurista,
introduzindo uma quarta força econômica: os portais do tempo (de cuja
exploração futurista temos um breve vislumbre no Episódio 2).
Outer Range é
acima de tudo uma história sobre poder, mas um poder desconjuntado, virado de
pernas para o ar, onde famílias tradicionais sofrem uma erosão a olhos vistos
(a imagem da mesa de jantar dos Abbott é recorrente). Onde o caos da
modernização capitalista explode em pororoca contra o imobilismo das velhas
fazendas. A autoridade local é uma xerife índia e lésbica; há um bar de heavy-metal onde homens de chapéu de
cowboy pulam e dançam enlouquecidos; a esposa Abbott é uma matriarca severa e
leal, e a esposa Tillerson é uma perua calejada e ambiciosa, que vive em
estações de esqui. O Wyoming onde vive esse povo é um sertão sem Deus.
E assim voltamos ao conceito de família karamazoviana,
porque todas essas famílias giram em torno de um patriarca que filosoficamente
deveria servir de modelo moral, mas acaba sendo um problema a mais, um baú-trancado
repleto de remorsos com mau cheiro. Daí que o protagonista da história toda
seja Royal Abbott (nome que é uma dupla evocação de autoridade), interpretado
pelo ótimo Josh Brolin (de Onde os Fracos
Não Têm Vez). Royal tem dois filhos (Perry e Rhett) que não podiam ser mais
diferentes – e atormentados, cada qual à sua maneira.
Tudo nessa família tão severa é baseado na mentira e na
enganação, porque todos mentem uns aos outros sob o pretexto de proteger-se
mutuamente. Só quem tem coragem de reclamar disso abertamente é a pequena Amy,
a filhinha de Perry.
Os Tillerson estão em outro patamar (financeiro e
conflitante) em relação aos Abbott. O patriarca, também muito bem interpretado
por Will Patton, é um sujeito voraz, obcecado, fora dos gonzos,
imprevisível. Os três filhos (Luke, Trevor e Billy) têm entre si uma rivalidade
quase tão grande quanto a que alimentam com os dois filhos da família Abbott
(Perry e Rhett). As duas fazendas parecem edificadas não sobre um campo de
petróleo, mas sobre um barril de pólvora.
Como em qualquer série que pretende ficar no ar por
alguns anos, os mistérios de Outer Range são
desvelados pouco a pouco, e nesta primeira temporada convergem para um desfecho
provisório. Há manadas de búfalos que emergem não se sabe de onde para atropelar
as pradarias; há menção ao desaparecimento de montanhas, e ao avistamento de
mastodontes, que não se sabe se são relatos verdadeiros ou “tall tales” típicos
do Oeste. Há filhotes de urso feridos e indefesos que rapidamente se
transformam num urso adulto e ameaçador.
É como se o próprio tecido do espaço-tempo estivesse se
esgarçando, e encaramos isso como essas famílias rurais encaram o esgarçamento
do tecido familiar. Pessoas sentam-se à mesa para a ceia, e alguém improvisa
uma prece dizendo que não acredita em Deus. Um peão de boiadeiro ganha o
primeiro lugar num rodeio e ao olhar para a arquibancada vê vazio o local da
sua família. Uma mulher com revólver no cinto e distintivo no peito precisa se
impor diante de uma população de homens agressivos usando algo que não seja apenas a
arma e a estrela.
O mundo do faroeste, heróico e cavalariano (para usar um
termo de Ariano Suassuna) foi criado e depois sabotado pelo cinema do século 20
ao longo de todo o século 20, quando se transformou no “cinema americano por
excelência”. Logo foi invadido (como nos filmes citados acima) por automóveis,
torres de petróleo, metralhadoras, máquinas fotográficas ou de escrever... E
agora está sendo invadido por portais de teleporte.
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