quinta-feira, 9 de junho de 2022

4831) Essa palavra existe (9.6.2022)


Toda vez que eu digo uma palavra inventada, as pessoas estranham. Falo, por exemplo: “Que comida feia a desse prato, eu é que não vou comer essas grangranhas.”  E alguém pergunta: “Mas, essa palavra existe?”
 
Claro que ela sabe que existe, pois acabou de ouvi-la. O que a pessoa pergunta, na verdade, é se a palavra é oficialmente reconhecida. Se está nos dicionários, por exemplo. E, principalmente, a pessoa pergunta (bem baixinho): “Se eu disser essa palava, alguém pode dizer que eu estou falando errado? Que eu não me alfabetizei? Que eu sou pobre?...”
 
É essa a preocupação.
 
Somos um país cartorial, como dizem alguns analistas e historiadores. Um país burocratizado, onde o Poder se exerce através de documentos: escrituras de terra, testamentos, acordos políticos, ordens de prisão, contratos financeiros... O documento é a instância mais importante da existência, e o que não pode ser confirmado por um documento não existe.
 
Vai daí que uma palavra não-dicionarizada é como uma pessoa que nunca tirou certidão de nascimento ou carteira de identidade, e oficialmente não existe. De nada adianta provar que é de carne e osso. Existe um Brasil mais elevado, que depende do país de carne e osso, mas que o transcende: um Brasil feito de papel e tinta. Ou, mais modernamente, de silício e pixels eletrônicos.
 
“Grangranha”, por exemplo, era uma coisa que meu pai dizia nesse contexto acima. Uma comida pouco apetitosa, geralmente de má aparência. Tem no dicionário? Não sei, e não ligo. Só ouvi essa palavra lá em casa. Não posso dizer que é uma expressão paraibana: talvez nem os nossos vizinhos na rua do Alto Branco a conhecessem. Mas para nós, existia, sim.
 
As palavras brotam desse jeito, inventadamente, improvisadamente, brincalhonamente, impacientemente. A pessoa quer exprimir uma idéia, mas as palavras oficiais não lhe servem nessa hora, porque são muito domesticadas, ou muito sofisticadas... Ele precisa de uma coisa mais forte, que exprima de maneira mais direta o que quer dizer, e que além disso dê um pequeno susto no ouvinte.
 
Darcy Ribeiro usava muito a palavra fazimento: o ato, o processo de fazer alguma coisa. Em inglês se diz “the making”. Ele fala do fazimento das leis, o fazimento do povo brasileiro... Muita gente acha que a palavra é canhestra, desajeitada. Não importa. Em seu lugar teríamos o quê? “Confecção”, “feitura”, “criação”, “produção”... Palavras sem muita força e pouco claras, porque têm conexões fortes com outros contextos e outros significados. Darcy se impacientava, e tascava fazimento
 
É a palavra ideal para exprimir essa idéia? Talvez não, mas é uma palavra que existe. Ninguém é obrigado a usar. Ninguém é proibido de usar.
 
O lado burlesco da política recente trouxe duas contribuições interessantes: “motociata” e “lanchaciata”. Esta última parece o nome de uma grangranha feita na Itália, mas corresponde a uma passeata de lanchas (e a outra a uma passeata de motos).
 
Isso mostra como o processo de invenção de palavras é insubordinado, desregrado, não dá ouvidos à gramática nem à etimologia (nem ao bom gosto), cria-se por mera associação ou derivação. “Passeata” vem de passos, os passos que damos com as pernas quando passeamos. Depois dele veio “carreata”, que mantém uma certa simetria e não precisa de muitas explicações. Quando surgiu “motociata” o problema ficou maior, até porque deveria se escrever talvez “motosseata”, para indicar de onde vinha, mas esses dois “SS”, que vêm de “passo”, já não tinham razão de ser; e “lanchaciata” já soa como galhofa. O problema é se inventarem um desfile coletivo de homens de negócios, porque nesse caso a imprensa vai ter que chamar de “negociata”.
 
E repito: são as palavras ideais para exprimir essas idéias? Talvez não, mas são palavras que existem. Ninguém é obrigado a usar. Ninguém é proibido de usar.
 
Expressões recentes como “mandar um zap” e “maratonar” não precisam de muita explicação, a não ser para aqueles que não costumam usar o WhatsApp e não costumam ver vários episódios seguidos de uma série. As palavras novas são inventadas em contextos onde rapidamente são compreendidas – é o mesmo processo da formação das gírias. Com o uso constante, acabam escapando para o mundo de fora, o nosso, que ouvimos aquilo pela primeira vez quando em alguns grupos já é coisa velha.
 
Uma vez eu estava trabalhando numa pesquisa e uma moça numa fábrica se referiu a alguma coisa relativa ao “instrutor” dela, que ajudou a prepará-la quando ela assumiu a função. E explicou: “Sabe o que é instrutor, né? É a pessoa que explica pra gente a instrutura do serviço.”
 
A linguagem não sofre erosão, com essas interferências. Sofre mutação genética. Não diminui: cresce. Não é um edifício, é um organismo. Podemos inventar um milhão de palavras por dia, e 99% delas sumirão na poeira sem ter merecido uma repetição sequer. Só fica o que “pega”. Só pega o que tem o mesmo DNA, o que não é rejeitado.
 
E outra – a língua brasileira não é a mesma em todo canto. Uma palavra nova pode ser facilmente aceita no Nordeste e parecer sempre estranha a ouvidos sulistas. Numa cidade como São Paulo, deve haver todo um glossário de jovens da Freguesia do Ó que jovens de Pinheiros não terão interesse em assimilar, e vice-versa.
 
O melhor de inventar palavras é quando ela surge como um improviso no meio de uma fala, como a do paciente de manicômio capaz de confessar ao jovem médico Guimarães Rosa que estava enxergando “umas pirilâmpsias”. Poesia pura.
 







Um comentário:

  1. Maravilha de texto, Braulio!
    E nesse seu artigo, como em anteriores com tags semelhantes, você acrescenta novas camadas sedimentares para as futuras escavações linguísticas.
    A linguagem oral certamente precisa do registro escrito para sobreviver ao momento da verbalização. Acostumar-se a uma nova palavra gera o costume com ela, e daí alguma fixação (mesmo que temporária).
    Anotações que dependem apenas da vontade de cada falante, cada articulista. Ninguém é obrigado a pensar assim, nem tá proibido de assim pensar.
    Meu falecido irmão Jorge Vinícius Gonçalves, em criança, inventava palavras. Nossas sete irmãs e um irmão caçula não guardaram nenhuma. Já eu, o mais velho, não consigo esquecer três delas: Coradi, vuera e tutu. Coradi ele dizia quando sugeria a vários de nós pra fazer um esconderijo: podia ser um simples cobertor por cima de todos ou uma casinha feira de galhos ou de papelão, um lugar pra gente ficar “escondido”, protegidos.
    Vuera e tutu significavam tão somente os sons onomatopaicos de dois tipos de bondes: vuera remetia ao bonde gaiola, o menor e mais sacolejante e barulhento dos bondes; tutu (que difere do tutu de feijão porque lá em casa se chamava mexido) refletia o som dos bondes maiores, todos os modelos. E eram palavras que o ouvido musical do Jorge referia à passagem dos bondes ao longe.
    Palavras que jamais serão dicionarizadas mas nessa evocação da infância ganham aqui efêmera sobrevida.

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