O melhor livro sobre cinema que li este ano não é um ensaio, é um romance metalinguístico: Suspects (1985) de David Thomson. O livro foi traduzido no Brasil (Marco Zero, 1992, trad. Luiz Eduardo Mendonça). O gimmick metalinguístico é o seguinte: Thomson fez uma seleção de 58 filmes, geralmente do gênero “policial noir”, e conta a vida inteira de personagens extraídos desses filmes, revelando muito mais sobre eles do que a gente poderia imaginar, e criando uma trama de crime em que todos estão envolvidos. A prosa de Thomson é excelente, e nem é preciso ter visto os filmes para apreciar a sutil arquitetura de crimes, traições e conspirações com que ele amarra títulos que vão desde O Iluminado de Kubrick a Casablanca de Michael Curtiz, desde Rebecca de Hitchcock até Pacto de Sangue de Billy Wilder.
Daí a minha demora em terminar o extraordinário Phantasmagoria (2006) de Marina Warner. Como descrever
esse livro? É um ensaio sobre as múltiplas formas de visualização do
imaginário, aqui incluído o mundo sobrenatural. Cada capítulo aborda um tema:
“Cera”, as máscaras mortuárias, representações de santos, museus de cera; “Ar”
e “Nuvens”, o espaço aéreo conforme representado nas lendas e nas artes plásticas
como o meio onde se deslocam criaturas etéreas; “Luz” e “Sombra”, os recursos
ópticos que produzem imagens (lanternas mágicas, etc.); “Espelho”, os múltiplos
atributos culturais do reflexo, do “duplo” etc.; “Fantasma”, as pesquisas para-científicas
do século 19 sobre aparições de espíritos; “Éter”, a natureza das ondas (rádio,
TV, etc.) e o modo como foram encaradas na literatura e na arte; “Ectoplasma”,
uma discussão específica sobre essa polêmica “matéria de que os espíritos são
feitos”; e “Filme”, o surgimento da fotografia e do cinema como um resultado de
todo esse longo processo.
No ano que vem farei mais comentários, porque pretendo
reler as 450 páginas da prosa culta e elegante de Marina Warner.
Outra ensaísta com quem me identifico é Flora Sussekind,
de quem este ano reli o precioso Cinematógrafo de Letras – Literatura, Técnica e Modernização no
Brasil (Cia. Das Letras, 1987). Flora rastreia a presença das novas
técnicas de criação e reprodução (fotografia, radiofonia, discos de fonógrafo, telefone,
cinema, etc.) na literatura brasileira da época, incluindo aí a prosa de
ficção, o jornalismo, a poesia, a crônica, as correspondências... É fascinante
ver a enorme variedade de reações dos nossos escritores diante dessas novidades
high-tech: surpresa, desconfiança,
adesão entusiástica, desdém satírico, contemplação abismada...
Foi um livro que li em sua época de lançamento,
pesquisando pistas sobre nossa literatura de FC, e relendo agora encontrei ali
muitas das atitudes da época pós-Internet, esse misto de atração e repulsa que
exercem sobre nós (que vivemos da mera palavra!) essas tecnologias
aparentemente todo-poderosas.
Numa direção totalmente oposta, a do passado mítico e
inatingível, vai outro livro que me parece essencial para quem pesquisar
literatura fantástica brasileira: Esquecidos por Deus – Monstros no Mundo
Europeu e Ibero-Americano (séculos XVI-XVIII) de Mary Del Priore (Cia. Das Letras, 2000). Como se sabe, é extremamente farta (e
contraditória) a documentação sobre criaturas monstruosas encontradas nesse
período por navegadores, viajantes e exploradores de recantos remotos do mundo.
Numa época onde qualquer viajante se deparava com hábitos, paisagens, objetos,
seres e rituais que não cabiam na sua moldura cultural, eram muito frequentes a
má-interpretação, a confusão, o exagero, o ruído na transmissão de
experiências, e assim por diante. (O exemplo clássico é a lenda do centauro: ao
ver um homem montado num cavalo, coisa que não se praticava em seu país, alguém
interpretou aquele ser como um monstro híbrido.)
Mary Del Priore comenta os monstros registrados pela
História no quadro dos pressupostos zoológicos, religiosos e mitológicos dos
homens que fizeram esses relatos. É também muito importante a rede de conexões
que ela estabelece dentro da iconografia (é vastíssimo o repertório de desenhos
e gravuras sobre essas criaturas monstruosas), mostrando como textos copiavam
(=plagiavam) textos, gravuras copiavam gravuras, ilustrações de um manuscrito
eram furtadas para ilustrar relatos de natureza totalmente diversa, etc.
Era um sistema de fake
news onde nem sempre havia a intenção de mentir ou falsificar, e ocorria
muitas vezes apenas o entusiasmo ingênuo de passar adiante uma informação
sensacional cuja veracidade não era confirmada (e às vezes não podia mesmo ser).
A história dos monstros é, na verdade, a história da imaginação dos que se
dedicavam a eles.
Ainda nessa praia, tenho que registrar o obrigatório Fantástico
Brasileiro – O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo (2018) de
Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares. É um levantamento precioso da
literatura fantástica brasileira em suas vertentes principais (ficção
científica, horror, fantasia), vendo suas origens em alguns pressupostos do
Romantismo do século 19 e vindo até o momento atual onde os autores identificam
“o Fantasismo”, nome que propõem para o movimento atual de autores que se
movimentam com facilidade entre aqueles três gêneros.
Para quem quiser checar o estado contemporâneo da ficção
fantástica entre nós, é um livro indispensável, pela quantidade de autores e
obras que recebem avaliações breves mas objetivas. O folclore, a literatura
infanto-juvenil, as entidades e os eventos; tudo isso recebe atenção e se
articula à massa da obras literárias propriamente ditas. Obra de referência obrigatória,
para ter sempre à mão, na estante.
Na literatura fantástica, li alguns romances notáveis
este ano.
Exquisite Corpse (1995) de Robert
Irwin (no Brasil, Jogos Surrealistas,
Record, 1998, trad. Alda Porto) tem como tema o movimento Surrealista dos anos
1920-30, desta vez sob a ótica dos escritores e artistas de Londres, não de
Paris. Robert Irwin é autor de The
Arabian Nightmare (1983), um pesadelo fantástico no espaço interior da
mente e do sonho, e de The Arabian
Nights: a Companion (1994), o melhor livro de referência que conheço sobre As Mil e Uma Noites.
Também inglês mas mais alegre, lúdico e cheio de
vitalidade é Nights at the Circus (1984), de Angela Carter, uma escritora de
quem se pode pegar qualquer livro de olhos fechados e ler com os olhos bem
abertos. É a história de Sophie Fevvers, uma mulher alada que trabalha num
circo (sim, ela tem asas e voa de verdade), e do jornalista que ao
entrevistá-la (na primeira parte do romance, 90 páginas de uma narrativa
brilhante que transcorre ao longo de uma noite) se apaixona por ela e
literalmente “foge com o circo”. Há tradução brasileira (Rocco, 1991, trad.
Claudia Martinelli).
Mais comentários aqui sobre o livro de Angela Carter:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/09/4619-noites-no-circo-de-angela-carter.html
Muita gente não sabe que Salman Rushdie, o autor de Os Versos Satânicos, estreou com um
romance de ficção científica, concorrendo a um prêmio oferecido pela editora
Gollancz, dos livros amarelos de FC que tanto li na antiga biblioteca da
Cultura Inglesa, na av. Graça Aranha. Ao que se diz (Wikipedia), o júri, formado por Brian Aldiss, Arthur C. Clarke e Kingsley
Amis, elogiou o livro e recomendou-o ao prêmio, mas a editora não quis, porque a
história não tinha nada a ver com o tipo de FC que eles queriam colocar no
mercado.
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/09/4619-noites-no-circo-de-angela-carter.html
De fato, Grimus (1975) é tudo menos uma FC
convencional, e só pode ser relacionado ao gênero porque sua narrativa envolve
imortalidade, viagem por universos paralelos (chamados de Dimensões Exteriores,
etc.) e a existência de seres de outros planetas que se locomovem no
espaço-tempo. Não importa. É uma narrativa de estrutura mítica, uma quest ou demanda onde um jovem índio
norte-americano, Flapping Eagle, adquire a imortalidade através de uma
beberagem (como o “imortal” de Machado de Assis) e depois sai pelo mundo à
procura de quem possa desfazer o prodígio.
Rushdie tem o dom da prosa fluida, do humor sardônico, da
imaginação lúdica; leitores de FC que costumam exigir coerência científica ou
lógica devem passar longe deste livro, que é uma ótima aventura literária
absurdista.
Numa outra ponta do espectro, registro o díptico Angels
& Insects (1992), duas
“novelas” de A. S. Byatt reunidas num só volume. (Há edição brasileira, Anjos e Insetos, Cia. Das Letras, 1994,
trad. Celso Nogueira.) Em ambas, o fantástico e a ciência (no caso, a ciência
do século 19) avançam às cegas e de mãos dadas. A prosa brilhante de Byatt mais
de uma vez me despertou a vontade de ler seu clássico romance Possession (1990), que já vi no cinema.
A novela “Morpho Eugenia” fala de um jovem entomologista
recém-chegado da África que se casa com a filha de um cientista ilustre, e
percebe aos poucos ter entrado num ambiente de hábitos estranhos e
inexplicáveis. “The Conjugial Angel” mostra um grupo de pessoas de meia idade
que costumam realizar sessões espíritas e invocar as almas dos seus mortos. Uma
das personagem é real, a irmã do “Poeta Laureado” Alfred, Lord Tennyson. Personagens
históricos e fictícios, ectoplásmicos e de carne-e-osso se misturam nessa
narrativa. Alguns trechos que acompanham a atividade mental da médium, Sophie
Sheekhy, são notáveis na recriação puramente verbal de um estado alterado de
consciência em que pessoas vivas e mortas parecem coexistir num mesmo plano de
percepção mútua.
(continua nos
próximos dias)
Que alegria descobrir o "Fantástico Brasileiro", em tão boa companhia, no Mundo Fantasmo, Bráulio! Fico muito honrado. Um grande abraço e excelente 2021!
ResponderExcluirBruno, parabéns e obrigado pelo livro. Muito útil para todos nós que acompanhamos a FC brasileira e gêneros vizinhos. Não parem a pesquisa! Feliz ano novo.
ResponderExcluirBah, comecei a ler sobre Os Suspeitos e, pra maior surpresa minha,
ResponderExcluirdescobri que tenho o livro e nunca li!
Comprei quando ainda morava em SP e me acompanha intacto e
inédito há quase 20 anos.
Gracias pela estimulante colunam Braulio: amarrei ela no dedo,
como lembrete pra leitura atrasadaça.
Abrrr.