sexta-feira, 27 de setembro de 2019

4507) O Palco e o Telão (27.9.2019)




(James Taylor, Rock in Rio, 1985)


Eu conto alguns fatos da minha biografia sabendo que muita gente não vai acreditar, mas isso até me libera para contar sem preocupação.

Um desses episódios aconteceu no “Rock In Rio 1985”, quando eu praticamente entrei no palco durante o show de James Taylor.

Esse show, pelo que me lembro, foi na mesma noite dos shows de George Benson, Al Jarreau e Elba Ramalho. Os artistas tinham direito a levar para os amplos camarins um certo número de convidados, e Elba me chamou, como minha amiga e “madrinha” – um ano antes, ela havia gravado meu “Nordeste Independente” em parceria com Ivanildo Vila Nova.

Ficamos lá, tomando Malt 90 (era a cerveja patrocinadora, oferecida no camarins), e vendo os shows pela TV.

A certa altura da noite eu fui ao banheiro. Os bastidores de grandes shows desse tipo são um vasto labirinto de paredes de compensado e fórmica, sobre chãos ressoantes de madeira com pisos emborrachados. Todos os corredores são iguais, principalmente depois da décima lata de cerveja. O cara vai andando, perguntando, e dobrando. Duas à esquerda, desce uma escada, uma à direita, sobe outra... Um dia chega.

Na volta do banheiro comecei a procurar o caminho do camarim, com a cabeça zunindo e o som estrondando em 360 graus. Errei o caminho a certa altura, subi umas escadas mais longas do que as que tinha descido. De vez em quando algum segurança de terno preto estendia a mão numa tentativa de perguntar onde eu pensava que ia. Mas eu estava de crachá, tenho cara de gringo, e caminhava sorridente e altivo, com uma autoconfiança que somente o álcool e seus complementos podem proporcionar.

Eu tinha certeza absoluta de que estava retornando ao camarim cheio de amigos, e estava ali como convidado, e como artista, visto que alguma música minha iria ser tocada mais tarde... Por que hesitar? Ultrapassei sorridente a última barreira de seguranças, que se abriu à minha passagem como se eu fosse quem pensava que era.

Subi uma última escada de metal... e me vi na lateral do palco, que se abria ofuscante e tonitruante à minha direita. Eu estava a 3 metros de um baixista com uma barba maior do que a de Marco di Aurélio, e a uns dez metros do meu ídolo, o poeta de “Fire and Rain”. Dava pra ver as gotas de suor na careca.

Claro que segundos depois um armário engravatado e persuasivo me pegou pelo braço, me trouxe para baixo, escutou minhas explicações fornecidas no mais puro yázigi, e me encaminhou paternalmente para o corredor onde a paraibada em peso me esperava. (Nenhum deles acreditou na minha história, claro. Nem é preciso.)

Esse pequeno flagrante da vida real tem importância para mim porque, apesar de já ter cantado em teatros, em ginásios, em praças repletas de gente, eu nunca acho que isso tenha um sido um show de verdade, visto que era um show meu. Show de verdade foram aqueles 15 ou 20 segundos em que fiquei suspenso a dez centímetros do solo pelo casulo pulsante de decibéis que se escuta no círculo de retornos de um palco. E olha que o som de Baby James era um som mansinho, nem chegava perto do pessoal que tocara na véspera, uns tais de Queen e Iron Maiden.

Este intróito serve para colocar uma coisa interessante no mundo do Big Show, que é a superposição de dois imaginários fortíssimos da humanidade, que são A Imagem e A Presença. Nosso inconsciente pessoal e coletivo se deixa arrebatar fortemente por essas duas mágicas.

Por que vamos ao cinema? Por causa da magia da Imagem. Por que vamos ao teatro? Por causa da magia da Presença.

No cinema não estamos nem aí para o fato de que estamos olhando para uma superfície plástica refletora. Para nossa imaginação, é como se ali estivesse o espaço sideral com uma batalha de espaçonaves, ou o sertão de Cabrobó, ou um pub inglês cheio de gente cantando, ou o rosto de Bibi Andersson olhando pra gente.

No teatro, não temos que fantasiar presenças: o que estamos vendo é o que estamos vendo, tudo aquilo ali é de carne e osso e existe fisicamente no mesmo plano de realidade que nós. Se a gente der um grito, os atores escutam. E qualquer coisa imprevista que ocorra (um ator que cai e quebra a perna, ou fogo no palco, ou uma crise de hilaridade em todo o elenco) aconteceu de verdade, é a vida presente.

E os grandes shows de hoje em dia conseguem satisfazer esses dois imaginários. Quando fui, por exemplo, à Praça da Apoteose para ver os Rolling Stones e Bob Dylan cantando juntos “Like a Rolling Stone”, meu olho ia alternadamente do palco para o telão e do telão para o palco.


(Bob Dylan e Rolling Stones, Praça da Apoteose, 1998)

No telão, eu via os dedos esquerdos do guitarrista me mostrando o acorde correto, via as rugas de concentração no rosto do bardo, via os sorrisos de cumplicidade na hora do vocal colado ao microfone, via todos os detalhes inacessíveis da performance que se dava a cem metros de onde eu estava.

E aí meus olhos largavam o telão e corriam para o palco, aquele quadradinho remoto e iluminado lá no extremo oposto da multidão ululante, e com isso eu confirmava a Presença, o fato de que não era uma simples transmissão de TV, era real, eu e aqueles caras estávamos existindo no contexto do mesmo fato, no mesmo espaço, no mesmo tempo. “É de verdade, e está acontecendo agora.”

O grande show, portanto, virou uma forma de arte bicameral, onde temos a experiência do cinema (a Imagem) e a experiência do teatro (a Presença), ao mesmo tempo e pelo mesmo preço.  É por isso que todo mundo paga e não reclama.




(Rolling Stones, Praia de Copacabana, 2006)








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