Saiu mais um volume de uma série de livros-poemas que W.
J. Solha vem publicando, e que até o momento inclui: Trigal com Corvos (Viseu, Portugal: Palimage, 2004), Marco do Mundo (João Pessoa: Ideia,
2012), Esse é o Homem (João Pessoa:
Ideia, 2013), e agora Vida Aberta (Guaratinguetá:
Penalux, 2019).
Aqui, meu comentário sobre o primeiro livro:
Solha pratica na poesia o verso-largo de Walt Whitman,
Allen Ginsberg, Álvaro de Campos: a linha caudalosa e discursiva que só se
interrompe ao fim de um fôlego. Um verso livre e indomesticável que tanto pode
se alongar por trinta palavras como ser cortado de uma em uma.
Mais curiosa do que sua métrica é o seu uso da rima, que
ele usa geralmente como rima interna, em posições não-fixas, mas reiteradamente
fazendo comentários sonoros. No terceiro livro ele tem ampliado o uso de
reticências para destacar essas rimas internas:
O... cúmulo, não ser mais que um hífen no meio de duas datas,
num túmulo! (p. 38)
Seu texto é torrencial, incessante, praticamente o mesmo
fluxo nos três livros, a mesma voz que se interrompe ao fim de um volume e anos
depois, em outro, recomeça de onde parou. Seu tema é A Decifração do Mundo, a
tentativa de entender a natureza, a cultura, a civilização, o destino coletivo
da humanidade e o destino pessoal desse indivíduo que pensa e escreve sem parar
para respirar.
(Philip K. Dick, por Richard Crumb)
Philip K. Dick disse, em algum dos seus textos
metafísicos, que a mente humana absorve Significado como uma esponja absorve
água. Nossa mente precisa de sentido para existir, precisa impor um padrão
inteligível a tudo que vê, como aquelas pessoas que enxergam formas animais nas
nuvens, nas manchas de lodo numa parede, no borrão de tinta de um cartão
Rorschach.
W. J. Solha, que é romancista, ator, artista plástico, vive à
cata de sentido, de correspondências, de padrões, de rimas visuais ou sonoras
em meio à proliferação caótica de coisas no mundo. Vive à cata de um elemento a
partir do qual todo o resto possa ser enquadrado, definido, “inteligido”.
E... nossa sorte
é que a bússola aponta todas as direções
no que só nos mostra
o norte!
A catadupa de referências a personagens eruditos
(pintores, compositores, romancistas, cientistas, filósofos) pode dar a
impressão errada de que se trata de um poema embebido de saber livresco. Mas é
acima de tudo o saber direto, intuitivo, total, que o poema celebra; o que ele
chama de “saber não-saber”:
E há os povos de tartaruguinhas a sair dos ovos e a emergir
da areia,
na praia, em que,
sob o comando da Terra (pros gregos, “Gaia”),
disparam pro mar,
sem saber, sabendo que... sabem
nadar. (p. 12)
Há dois aspectos (aparentemente contraditórios) com que
me identifico nesse ciclo poético de Solha. O primeiro é a sensação de pertencimento
a uma certa aristocracia do espírito, a uma elite capaz de encontrar, assimilar
e entender o que há de elevado e refinado na cultura, seja a pintura renascentista,
seja a poesia épica da antiguidade, o teatro shakespeariano, a arquitetura
gótica ou barroca, a física teórica, a música sinfônica. Sim, tudo isto foi
feito para nós, foi feito para que gente como nós o aprecie.
Pouco importa se mais da metade da espécie humana não
liga para essas coisas. Que fiquem em paz, cuidando do que lhes interessa.
Essas obras foram feitas para quem gosta, para quem é capaz de dar a vida por
elas.
(W. J. Solha, no filme “O
Som Ao Redor”)
Por outro lado, me identifico com um viés oposto: somos
intelectuais de origem plebéia, sem pedigri, sem heráldica, sem sobrenomes
compostos, sem quadros a óleo dos antepassados enfileirados num corredor da Ala
Oeste da mansão. Somos plebeus mesmo, pés-rapados interioranos, gente que
precisou trabalhar desde cedo com coisas de que não gostava, e sempre soube que
teria pouquíssimas chances de uma graduação em Harvard e de uma pós-com-bolsa
em Cambridge. O Monte Olimpo fica ali, a uma caminhada de distância, mas parece
que nosso destino será o de ficar aqui na Arcádia mesmo, pastoreando cabras,
tocando nossa flautinha e colhendo azeitonas.
Menos mal; estamos em boa companhia. Tem outros autores
em quem eu identifico essa energia incontrolável que movimenta as engrenagens
dos poemas de Solha. Henry Miller, por exemplo. Injustamente rotulado de
pornográfico porque ousou falar de sexo na sala-de-visitas literária, Miller é
na verdade um vulcão de energia vital capaz de por tudo se interessar, tudo
procurar, tudo absorver.
(Henry Miller)
Poucos autores do século passado tiveram uma atitude tão
vital (não encontro outro termo), de se jogar de corpo inteiro em tudo quanto a
vida oferecesse. Miller lia espantosamente muito, mas nunca foi um desses eruditos
passadores-de-pente-fino capazes de escrever vinte páginas sobre as diferentes
acepções de uma palavra grega. (Não digo que isso seja inútil – estou apenas
questionando quem diz que inútil é ler Henry Miller.)
Foi sempre um sujeito comum, um empregado dos correios,
aguentou trezentos empreguinhos estupidificantes, foi sustentado pela mulher
que fazia programas com caras ricos, tudo isso para manter seu projeto
literário. Foi, no dizer, de J. G. Ballard (A
User’s Guide to the Millenium), “o primeiro escritor proletário a criar uma
literatura pornográfica baseada na linguagem e no comportamento sexual da
classe trabalhadora (...), um Proust proletário, noção que formou a base de toda
sua carreira.”
Toda a obra literária de Henry Miller, da melhor à pior,
é estuante desse prazer vital, em que trepar e filosofar são basicamente a
mesma coisa, a ser feita com uma energia avassaladora, alegre e sem culpa.
O outro autor “plebeu” que eu reencontro em Solha (como
em mim mesmo) é Colin Wilson, cujo defeito maior como escritor deve ter sido
escrever demais, publicar demais, embarcar demais em qualquer idéia mirabolante
(geralmente no campo da paranormalidade) capaz de despertar sua grande
qualidade: uma curiosidade inesgotável pelo Universo.
(Colin Wilson)
Desde o clássico O
Outsider (1956) Wilson defende a teoria um tanto visionária, talvez mais próxima da literatura do que da filosofia, de que a mente humana
sofre sérias limitações do seu potencial mas poderia, se devidamente
organizada, assumir poderes quase sobre-humanos.
O Outsider
analisa escritores (Dostoiévski, D. H. Lawrence), artistas (Van Gogh, William
Blake), pensadores-aventureiros (Lawrence da Arábia, Gurdjieff) para expor sua visão
de que o Outsider, o estranho, o estrangeiro, o intruso, é o indivíduo de
grande potencial que acaba entrando em choque permanente com a sociedade. Em
muitos casos, torna-se um criminoso, e vai daí que os melhores romances de
Wilson sejam romances policiais como Ritual
nas Trevas (1960), A Gaiola de Vidro (1966),
O Matador (1970), Necessary Doubt (1964) etc.
Neste último, um personagem diz:
Olhe, eu sempre pensei na consciência humana como uma espécie de luz
néon com motor fraco. Sabe quando a gente liga uma dessas luzes e ela tenta
acender e não consegue... A luz tenta saltar ao longo do tubo, começa a brilhar
nas duas extremidades, pisca por um momento... e depois se apaga. Pensei que o
orgasmo sexual era a mesma coisa: uma tentativa de consciência real. Mas não
posso deixar de imaginar que qualquer dia destes a luz vai se acender ao longo
do tubo, e de repente teremos atingido a consciência verdadeira.
Esses momentos de iluminação (que Freud chamava de
“experiências oceânicas”, e Jung de “experiências numinosas”) são raros porque
vivemos numa espécie de sonambulismo-do-cotidiano, conversando, comendo,
trocando de roupa, trabalhando, movidos por um piloto automático que nos impede
de pensar com toda a profundidade que poderíamos.
Wilson aplica essa teoria e seus desdobramentos ao
escrever sobre o mundo do crime (Order of
Assassins, 1972), o ocultismo (O
Oculto, 1971), o sexo (Origins of the
Sexual Impulse, 1963), a religião (Religion
and the Rebel, 1957), a literatura fantástica (The Strenght to Dream, 1962) e assim por diante. Sua obra, em sua
parte mais bem realizada, produz um efeito euforizante que nos faz imaginar que
“as possibilidades, como sempre, são infinitas”.
E esse mesmo Wilson era filho de um sapateiro, estudou
irregularmente aqui e ali mas foi basicamente um auto-didata que lia
quantidades enormes de livros e aos catorze anos já tinha escrito um Manual Geral de Ciências em vários
volumes. Um plebeu de origem, sem graus acadêmicos significativos: um sujeito
que (como eu mesmo) se educou nos salões das bibliotecas, nas enciclopédias
encadernadas e nas coleções de fascículos vendidas em bancas.
Plebeus de origem mas aristocratas do espírito,
destinados a viver numa cultura (os EUA de Miller, a Inglaterra de Wilson)
dominada em grande parte por cavalgaduras engravatadas incapazes de entender um
silogismo ou de explicar por que uma lâmpada elétrica acende.
E no entanto, que importância tem isso? O universo está à sua (à nossa) disposição. A
vida está aberta para quem sabe pensar,
feito o balão
que,
como num jogo,
se eleva,
no que leva o fogo
que o leva. (p. 64)
UAU! O autodidata q se debate em mim saúda o autodidata q habita em ti.
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ResponderExcluirCaramba, ô, Bráulio: que coisa singular ser analisado por um gênio!
Bacana!
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