Chico
Buarque está prometendo disco novo para breve, e lançou uma canção como
trailer, “Tua Cantiga”, em parceria com Cristóvão Bastos. O clipe pode ser visto
aqui – ou revisto, porque a esta altura grande parte dos meus leitores já viu.
Chico,
com seus companheiros de geração como Gilberto Gil, Milton Nascimento, Caetano
Veloso, Edu Lobo, Egberto Gismonti, e tantos outros da MPB, é protagonista de
uma espécie de seriado “The Walking Dead”. Cada um deles é enterrado
publicamente todo ano pela crítica ou pela concorrência – e não morre nunca. Em cada geração nova de
músicos rebeldes e contestadores aparece um que o mata e enterra, e seis meses
depois ele faz um disco e canta na missa-de-sétimo-dia desses talentos meteóricos.
Esta
música nova tem uma bela melodia de Cristóvão Bastos, um arranjo delicado onde cada
ruidozinho sabe o que está fazendo (arranjo e piano: Cristóvão Bastos; baixo,
Jorge Helder; bateria e percussão: Jurim Moreira), e um clip simpático
onde o camarada vem entrando e trazendo a câmera consigo, canta a música, sai
pela outra porta, vai embora e deixa a câmera para trás.
É
como se ele estivesse bebendo cerveja num bar nas vizinhanças, alguém mandasse
um zap dizendo: “Prontos pra gravar, pode vir”, ele viesse, gravasse e fosse
embora antes que a cerveja amornasse na mesa.
Não
sou fã de Chico Buarque. Se fosse, teria escutado os dois ou três últimos
discos dele – coisa que não fiz. Por que? Não sei, acho que com música acontece
algo parecido com o que se dá com bebida. A gente vai numa loja e compra um
vinho, ou uma vodka, chega em casa e guarda no móvel da sala. Um leigo perguntaria:
“Oi, e não vai beber não?” A resposta seria: “Vou, quando a hora chegar”.
“Tua
Cantiga” tem sido comentado de maneira divertida nas redes sociais. Tazio Zambi
(PB) postou no Facebook: “gostei muito da
música nova do chico buarque, "toca uma antiga". É o trocadilho ideal, que busquei sem
encontrar quando li o título.
Já
Alex Antunes (SP) comentou, depois de dizer (meio surpreendentemente) que tinha
gostado da música: “e essa notinha fora
do cristovão bastos é o bicho. :D resume o babado”. Eu li isso antes de ouvir a música e pensei: “Mas
que bobagem, o pessoal agora tá achando pelo em ovo, tá achando que uma notinha
isolada ‘diz tudo’”.
Fui
ouvir a música e me desdisse, dei control-z: a notinha tem tudo a ver, de fato.
Por que? É uma notinha isolada, uma tecla aguda do piano, que aparece no clipe
em 00:17, dando sinal que começou, e em 03:59, assinalando o fim. Detalhe que
abre e fecha a música, serve de batidinhas-com-a-batuta para avisar a
orquestra, e serve de ponto-final. E é dentro da harmonia uma nota meio
angustiante; lembra aquelas notas de piano insistentes e ominosas na trilha de Eyes Wide Shut de Kubrick.
É
uma nota solta, que me parece estar num canal diferente do canal do piano, vem
de outra dimensão e é colada em cima. Não é um palavra a mais no texto, é uma
ilustração.
Se
eu fosse comparar com alguma coisa compararia com aquela nota única,
inesquecível em timbre e em colocação mais que perfeita, aquela nota isolada de
guitarra (surge pela primeira vez em 00:12) que se tornou a assinatura de “Hello
Goodbye” dos Beatles.
Com
relação à letra, é uma daquelas cartas de amor que Chico Buarque tem longa
prática de escrever e de fato escreve como ninguém. Turbinado, inclusive, pelo
prazer perverso de imaginar um milhão de brasileiras ouvindo, suspirando e imaginando
por sua vez: “É pra mim que ele está dizendo isso... É a minha cara...” Chico
Buarque é uma espécie de Machado de Assis, com público feminino cativo e
permanente, dialogando com elas sem intermediários, e dirigindo em grande parte
a elas esse meticuloso acariciar de sentimentos.
É
um letra com um tom meio velado, porque (fica claro no texto) trata-se de um
homem casado dirigindo-se a uma mulher também casada, uma mulher que tem um “vigia”,
“um desalmado”, uma mulher por quem ele jura largar “mulher e filhos” para
fazê-la “rainha” na “nossa casa”. Que homem nunca jurou isso cem vezes? Que
mulher não acreditou pelo menos uma vez?
Chico
Buarque já falou em entrevistas que gosta de compor a música antes e encaixar a
letra depois, sílaba por sílaba, um processo que ele já descreveu poeticamente
como “tijolo com tijolo num desenho mágico / tijolo com tijolo num desenho
lógico”. Este método exige a música bem memorizada e repetida mentalmente até
não poder mais, enquanto mil palavras e combinações de palavras são tentadas
para encaixar na métrica, na cadência, na prosódia, na acentuação, no timbre,
no ritmo. Ah, sim: e a letra precisa também fazer algum sentido.
Ao
longo de “Tua Cantiga” o poeta explora a alternância de rimas finais em “ir” e “ar”,
modulando pra rimas em “”eis”, “iz”, “ei”, “ou” na parte do meio. E com um
detalhe tipicamente buarquiano de parelhas de rimas toantes encaixadas
exatamente nas mesmas posições da estrofe, com uma exatidão e uma sutileza
admiráveis: suspiro/ligeiro, nome/perfume, lenço/alcanço e assim por diante.
Do
ponto de vista da cadência, as estrofes da primeira parte da canção, a mais
interessante neste aspecto, têm um formato curioso. (Isto é uma marcação que eu
faço mentalmente, mas é subjetiva, não sei todo mundo sente essa cadência da
mesma forma.) A cadência é: 4-1-4 / 4-1-4 / 4-1-4-1-4-1-1. Isso dividiria
visualmente a estrofe assim:
quando te der
sau
dade de mim;
quando tua
gar
ganta apertar;
basta dar um
sus
piro que eu vou
li
geiro te con
so-lar
Isto
é um dos recursos que permitem à letra de música, caso o letrista queira, ser um
produto mais sofisticado do que o poema escrito, embora somente uma porção bem
pequena das letras se preocupe conscientemente com ele. A melodia preexistente
à letra impõe a ela cadência, acentuação, pausas, etc.: e a letra, que de si já
traz esses elementos, entra numa relação de tensão com a estrutura proposta
pela melodia, uma tensão que ora se resolve com uma coincidência exata de
efeitos, ora com um leve dissonância que, em vez de um ruído desagradável, pode
produzir, quando bem feita, um leve surpresa de novidade.
O
poeta faz referência a Shakespeare, ao famoso Soneto 116, o que fala em “marriage
of true minds”: “ou estas rimas não escrevi / nem ninguém nunca amou”. Elba
Ramalho gravou esse soneto em 1984, na versão em português de Ana Amélia e
música de Tadeu Mathias: “Se isto é falso, e que é falso alguém provou, não sou
poeta, e ninguém jamais amou” (“If this be error and upon me prov'd, / I
never writ, nor no man ever lov'd.”)
“Amor Eterno”, álbum “Do Jeito Que a Gente Gosta”:
Citar
Shakespeare está totalmente de acordo com um tom poético onde o camarada sugere
à musa “deixar cair um lenço” para que ele o recolha. É com essas imagens e
contextos tipo Segundo Reinado que um certo pessoal moderno se invoca às vezes
– o pessoal para quem o Passado é um país inimigo que precisa morrer à míngua. E
é isso que torna Chico simpático aos olhos de outros grupos, para quem é
preciso transformar o mundo, desde que se transforme somente a parte que eles
não gostam e se deixe o resto confortavelmente intacto.
O
poeta oscila com fluidez, e quase sem ser percebido, entre essa dicção clássica
e uma dicção mais popular e contemporânea, que o faz prever-se “aperriado”, tratar
a musa por “minha nega”, chamar o maridão de “teu vigia”... O seu dicionário
poético é rico assim, de termos rebuscados (mas que o ouvinte geralmente intui
pelo contexto) e termos da linguagem das ruas, sem muita preocupação em carimbar
as gírias do momento.
“Tua
Cantiga” é uma música muito boa, consegue ter complexidades e sutilezas e ser
assobiável, dá prazer ao ouvido e dá combustível ao pensamento. Resta esperar o
disco.