A Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de
Cinema) fez uma votação em 2016 para apontar os 100 melhores filmes
brasileiros. O melhor passatempo diante de uma lista como esta é descobrir tudo
que merecia aparecer nela e não apareceu. Não para questionar a competência dos
(no presente caso) “cerca de cem membros” da entidade, cujas listas individuais
de 25 títulos citaram 329 filmes no total. Mas para mostrar que filme bom nunca
para de ter, é só continuar mexendo.
A lista está aqui:
Não vejo muitas surpresas, a não ser a presença de
“Limite” (1931) de Mário Peixoto no primeiro lugar, atestando que o mito em
torno desse belo filme continua crescendo, estimulado por vários livros e
monografias que se escreveram sobre ele, e certamente pela cópia restaurada e
enriquecida que a Cinemateca Brasileira lançou em 2011, e que não vi ainda.
(Conheço uma cópia antiga, que vi em sessão de cineclube há séculos.)
Do segundo lugar para baixo, tudo é mais ou menos
previsível e quase inevitável. Numa contagem rápida, entre os 100 filmes registrei
65 que vi, embora boa parte deles tenha sido há tanto tempo (e uma vez só) que revê-los
hoje seria uma experiência nova. O que considero uma boa coisa. Como dizia
Faulkner, o passado ainda nem acabou de passar.
A lista é boa, mas se eu tivesse tido que escolher meus
25 eu teria provavelmente posto alguns-20 dos que tem aí, e os 5 que vão aqui
abaixo, e que não emplacaram a seleção final. Sem ordem de preferência:
1) O Profeta da Fome
(1970) de Maurice Capovilla. José Mojica Marins no papel do faquir de um circo
mambembe e brutal. Uma mistura de Kafka, cordel e cinema underground. Fotografia
estourada em preto-e-branco, uma história meio caótica, como era habitual no
cinema-lixo paulistano da época. Se não me engano a primeira fala do filme
ocorre lá pelos oito ou dez minutos de ação. (Não bate o recorde de “2001” de
Kubrick, mas é impressionante, até porque neste aqui acontecem coisas mais
interessantes do que macacos pulando.)
Vi-o no Festival de Brasília de 1970, quando ganhou vários prêmios. É um
delírio punk anterior ao punk.
2) Triste Trópico
(1974) de Artur Omar. Este filme genial é tão obscuro que na página do autor na
Wikipédia informa-se apenas o ano em que foi feito. É um pseudo-documentário feito
na moviola, sobre um médico brasileiro que, depois de viver alguns anos na
Europa, volta para o Brasil, interna-se numa região rural remota chamada a Zona
do Escorpião, e ali começa a liderar um movimento messiânico. As fronteiras
entre documentário e ficção são rompidas o tempo inteiro, e o filme na verdade
consiste em várias faixas paralelas de imagem e de áudio, que parecem estimular
áreas contraditórias do cérebro e gerar um produto que não está contido em
nenhuma delas originalmente. Tipo isso.
3) Hitler III Mundo
(1968) de José Agrippino de Paula. Falei acima em “punk anterior ao punk”, mas
isso talvez se aplique mais ainda a esta grotesqueria concebida e ajambrada
pelo escritor de Lugar Público e Panamérica. Uma sucessão de quadros meio
surrealistas, filmados no meio da rua para tumulto e diversão dos transeuntes.
A sequência de Jô Soares vestido de kabuki atravessando uma favela enlameada e
seguido pela malta é apenas uma de muitas imagens absurdas e inesquecíveis.
Personagens da mitologia e dos quadrinhos, frequentes na obra do escritor,
aparecem aqui como se fossem eles próprios e sem saber que estão num filme. Já
escrevi sobre “H3M” aqui:
4) Menino de
engenho (1965) de Walter Lima Jr. A lista da Abraccine incluiu dois filmes
de Walter (Lira do Delírio e Inocência), ambos merecedores, mas meu
ímpeto bairrista e meu rosebudismo afetivo me obrigam a extrair da memória este
belo camafeu em preto-e-branco do imaginário paraibano. A adaptação de José
Lins do Rego foi o primeiro filme do diretor, com música de Pedro Santos,
fotografia de Reynaldo Paes de Barros. Tenho um piratão aqui, meio precário,
mas as belas imagens sobrevivem. É ainda um dos melhores retratos da Paraíba no
cinema.
5) Nós que aqui
estamos por vós esperamos (1999) de Marcelo Masagão. Todo filme-de-montador
é uma iguaria para poucos, mas eu sou um desses poucos e não abro nem prum
trem. É uma colagem de imagens e música, sem narração, com breves intertítulos
de vez em quando, contando a história do século 20 e por tabela refletindo
sobre a Vida, o Universo e Everything. Como toda obra baseada mais na
justaposição do que no sequenciamento causal, está aberta a releituras e a
novas ressonâncias sempre que for revista.
Se eu ficar mais tempo cavucando no HD vou me lembrar de
outros, mas é melhor deixar de reserva para voltar a escrever outro dia.
Por enquanto, estes cinco são ótimos exemplos. Cada um
deles me marcou no momento em que o vi pela primeira vez e senti um
orgulhozinho meio besta, por tabela, ao ver um brasileiro (uma equipe de
brasileiros) fazendo algo que me estimulava a imaginação tanto quanto o que eu
via no cinema de fora.
Todos são pouco convencionais; somente Menino de Engenho pode ser considerado
cinemão, mas eu gosto de cinemão também. O cinemão é pacificador, nos restitui
a um mundo (fantasioso, claro) em que as coisas fazem sentido. Todo filme que
segue as regras do cinemão tem algo de líquido amniótico, de volta ao lar.
Os outros quatro são metacinema. Não são pacificadores,
são estimulantes, e em alguns casos, alucinógenos. Eles nos dão um encontrão e
nos fazem cair aos trambolhões na ribanceira de um caos onde, durante essa queda
que dura décadas, temos que fazer sentido da paisagem que rodopia ao nosso
redor. Cinema é pra isso também.
Maravilha de artigo!
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