Neste mês de julho comemora-se o centenário de nascimento de João Saldanha, jornalista, técnico do Botafogo no tempo em que o Botafogo era um dos melhores times do mundo, técnico da Seleção Brasileira.
Um personagem fascinante, que comecei a admirar ainda garoto, lendo suas crônicas na imprensa, e depois lendo o excelente Os Subterrâneos do Futebol, relato de sua vivência botafoguense, cheio de episódios pitorescos, mostrando como é o futebol fora de campo.
Saldanha foi um dos caras mais politicamente incorretos
do seu tempo, não porque fosse pior do que os outros, mas porque era o único
que dizia o que pensava, sem se importar com o que alguém achasse.
O meio do
futebol profissional é todo cheio de dedos, cheio de pose, de discurso
patriarcal moralista, quando diante do microfone. Som desligado,
ninguém distingue um jornalista de um cartola. João Saldanha rasgava, falava
tudo, e por isso ficou com fama de pior do que os outros, quando era apenas
mais verdadeiro.
Em alguma prateleira empoeirada, no sambaqui de papel em
cujo centro habito, devo ter ainda uma esfarelada pasta de plástico com dezenas
de recortes de suas crônicas publicadas no Jornal
do Brasil, que eu lia com o vagar e a aplicação de quem está estudando para um
mestrado.
Acho que ele e Paulo Francis foram os únicos cronistas de
quem guardei recortes. Não por achar aquilo um documento histórico, mas para
reler de vez em quando e não me esquecer de como se escreve. Se não fosse pela
leitura imunizadora dos dois, eu já poderia estar em alguma Academia.
Vi-o em carne e osso apenas uma vez, numa palestra dele
na Facha (Faculdade Hélio Alonso), no Rio. Alertado por algum amigo, fui lá na
faculdade (era perto de casa) num começo de noite e vi João perorando para 50
ou 60 universitários durante mais de duas horas.
Era um falador incansável, inesgotável e brilhante, da
estirpe de Darcy Ribeiro e Ariano Suassuna. Não tinha nhém-nhém-nhém, ia direto
ao ponto, mandava uma idéia forte, concreta e inquietante, e em vez de ficar
tagarelando em volta dela produzia logo outra; e outra; e mais outra.
Inquieto, desassossegado, teimoso, dos que não abrem nem
prum trem. Articulado, hábil com a linguagem, criativo, sem paciência para com
a retórica vazia e a pomposidade de tantos técnicos de futebol, de tantos
cronistas. Sorria pouco, mas transmitia uma impressionante energia de viver.
(“Alegria de viver” me parece um termo besteirolzinho demais, perto da impressão que
ele causava.)
No ambiente futebolístico carioca, João mantém uma
curiosa relação folclórica com Neném Prancha, figura ligada ao Botafogo e a
quem se atribui uma quantidade enorme de frases notáveis. Algumas delas,
diz-se, eram na verdade de Saldanha.
Neném Prancha (tinha esse nome por causa
dos pés enormes) foi o cara que dizia: “Se macumba ganhasse jogo, o campeonato
baiano só terminava empatado”, “Pênalte é tão importante que devia ser batido
pelo presidente do clube” e outras preciosidades.
Sendo Neném um personagem típico como Seu Lunga ou Zé Limeira,
acabaram lhe atribuindo coisas que ele provavelmente nunca disse. Não importa: vale
o que foi falado. Quem fica é a frase, a gente pede a conta e vai embora.
Tenho visto algumas notas na imprensa a respeito do centenário
de Saldanha, e parece que estão saindo algumas coletâneas de suas crônicas. Uma
dessas coletâneas é As 100 melhores
crônicas – comentadas – de João Saldanha, de Alexandre Mesquita, César
Oliveira e Marcelo Guimarães (LivrosDeFutebol, 2017).
Preciso reler, porque nas épocas mais recentes tenho recorrido,
naqueles momentos em que a cabeça está a zero e o texto avança com a velocidade
da hera na treliça, de um cacoete em que beletristas pátrios são useiros e
vezeiros, esses floreios caligráficos de uma prosa ornamental que consiste em
esticar na máxima medida possível uma idéia bem curtinha e bordá-la toda de
lantejoulas verbais e miçangas metafóricas com o intuito de disfarçar seu vazio
mais vazio do que um estômago vazio.
Vamos lembrar de João. Vida que segue.
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