("A Sucessora")
Quando falamos de realismo narrativo (seja na literatura,
cinema, teatro, TV, etc) muitas vezes estamos contrapóndo esse realismo a
histórias claramente fantásticas, absurdas, que não podiam acontecer no mundo
como o conhecemos, desde As Sete Viagens
de Sindbad até Godzilla, desde Alice no País das Maravilhas até Harry Potter. Todas estas histórias são
não-realistas, mostram coisas que não poderiam acontecer no nosso mundo.
Toda narrativa realista, no entanto, é sempre em certa
medida anti-realista, porque tem um grau inevitável de artificialidade. Não
basta evitar coisas impossíveis (pessoas voando, gente virando bicho, etc.).
Seria preciso também, para um estrito realismo, não usar certas convençõezinhas
que vão se cristalizando com o passar do tempo, detalhes com alto grau de
artificialismo e improbabilidade, mas que a gente aceita porque já fazem parte
das regras do jogo.
Downton Abbey,
por exemplo: é ou não uma história realista?
Digressão para quem não assiste a série da Netflix: ela
conta a história de uma família aristocrática inglesa e seus criados, a partir
de 1912. A vida de luxo dos patrões entrelaçada à vida modesta dos serviçais,
as intrigas, os amores e os ódios.
Ambição, traição, política, sexo, casamentos por interesse, heranças
milionárias disputadas a ferro e fogo, crime, guerra.
Downton Abbey é uma mistura de novela de época da Globo e filme de
James Ivory. Realismo de terno e gravata. Tudo em sua dramaturgia tem uma
preocupação de ser o mais conservador possível, o mais mainstream possível, sem desvios do que há de mais básico em
matéria de roteiro, diálogo, montagem, cenários.
É um novelão que se vale desse
quadradismo para impor seu verniz de realidade. É realista pelo fato de nada
haver de fantástico, sobrenatural, impossível dentro dela. Fora isso, é
totalmente artificial. Ou seja: não realista.
Um recurso comum destas séries, em cenas de jantares,
festas, etc., é vermos dois personagens lado a lado, conversando na mesa algo
que, pelas circunstâncias físicas (e acústicas) do momento seria impossível não
ser ouvido pelas pessoas vizinhas ou do lado oposto da mesa. E no entanto eles
o fazem sem que ninguém pareça escutá-los.
É um pouco como aquele recurso clichê da farsa teatral,
do vaudeville, em que dois atores
estão sentados lado a lado num sofá e um dos dois finge estar distraído
enquanto o outro comenta para o público: “Essa agora foi boa! Como é que eu vou
convencer esse idiota de que estou falando a verdade?!”, e a platéia aceita que
ele não está sendo ouvido pelo outro cara ali, a centímetros de distância.
Ou seja: em momentos assim a conveniência narrativa (a
necessidade de passar uma informação ou comentário para o público) se sobrepõe
ao realismo.
Gêneros populares (os velhos melodramas teatrais, as
comédias, os esquetes cômicos de TV-de-auditório, etc.) são cheios de pequenos
truques assim, de pequenas fórmulas para resolver situações. O público habituê
vai formando também seu repertório de experiências, e este vira um repertório
de expectativas.
O uso desse tipo de clichê cria uma cumplicidade, uma
espécie de piscadela entre o diretor/autor e o público.
Daí que, quanto mais um gênero vai se firmando junto a um
público, menos realista ele é. “Firmar-se” implica em propor convenções
narrativas que o público primeiro aceita, e depois passa a esperar (ou até a
exigir). O gênero se torna maneirista, formulaico, ou que outro rótulo alguém
queira dar.
Downton Abbey, apesar
de toda sua pompa arquitetônica, gastronômica e sartorial, não é menos useira e
vezeira dessas fórmulas do que qualquer novelão do SBT.
As mesmas velhas figuras de linguagem do melodrama
mexicano ou cubano estão todas ali.
A chegada repentina, em plena festa, do herói dado por
morto.
O casal que vive às escaramuças mas vê-se que os dois
migram irresistivelmente na direção um do outro.
A noiva abandonada diante do altar.
A pessoa que entra num aposento já falando em voz alta
com alguém que imagina estar ali, e se interrompe quando vê alguém inesperado.
O beijo proibido que, nem bem começa a acontecer, a
câmera já corrige o ângulo para mostrar alguém olhando pela vidraça da janela.
(E sua contrapartida: o beijo triunfal com a câmera descrevendo um círculo
completo em torno dos beijantes.)
Clichês narrativos são sempre úteis. Mas (que coisa
curiosa) acho que são mais úteis num filme de um maluco como Alejandro
Jodorowsky ou dos Irmãos Coen do que num novelão-das-oito como Downton Abbey.
Quando Jodorowsky usa, em filmes como El Topo, Santa Sangre, A Montanha
Sagrada e outros, alguns clichês do cinema popular, isso ajuda o espectador,
meio perdidão no meio de uma performance surrealista, a pegar de volta a
estrada principal da narrativa. Em histórias assim o clichê surge como se fosse
uma fala em nosso idioma no meio de uma algaravia em língua estrangeira. “Ufa, que bom, isso eu entendo, agora já posso
me situar.”
Downton Abbey
ou as novelas das 7 não precisariam disso. Tudo ali já é contado numa língua
que qualquer um entende. Por que, então, a novela de TV recorre tanto ao clichê?
Não é para trazer o público de volta, é para
impedir que ele se afaste um milímetro sequer. O clichê narrativo é um ritual
milenar no qual autores e espectadores se refestelam na zona-de-conforto do
lugar comum.
Narrativas assim tornam-se engessadas num círculo vicioso
de pequenos cacoetes que não têm mais nada a ver com o realismo ou naturalismo
propriamente ditos (= histórias onde tudo acontece como na vida).
Claro que a arte é o contrário da vida – a habilidade
consiste em dar a impressão de que é a vida que está ali, e não uma porção de atores
dizendo falas decoradas.
É nessa área que surgem as queixas tão frequentes dos
espectadores de novelas brasileiras sobre a ausência de olho-mágico nas portas,
sobre o fato de todos os personagens se cruzarem “casualmente” sempre na mesma
lanchonete, sobre a mania das pessoas irem discutir na casa das outras ao invés
de telefonar.
É fórmula, é artificialismo, é tudo para facilitar o
trabalho do autor. Mas é nesses momentos que a dramaturgia se revela como um
gato escondido com rabo de fora.
Paternidades (ou maternidades) não reveladas, amores do passado que ressurgem (de todas as biroscas inglesas alguns personagens têm que circular próximos a Downton?), morte do ser amado, enfim, são vários os clichês mesmo, mas servem também pra gente se sentir em casa, sem muitas ameaças.
ResponderExcluirFoi uma ótima aula. Muito obrigado.
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