segunda-feira, 22 de agosto de 2016

4149) Ainda o "Manifesto Incompleto" (22.8.2016)




(ilustração: Chaval)


Bruce Mau é um arquiteto e designer canadense, que em 1998 criou um manifesto artístico a que chamou “An Incomplete Manifesto for Growth” (Um Manifesto Incompleto pelo Crescimento). Uma série de dicas inspiradoras, ou de auto-ajuda criativa, desse tipo que não resolve nenhum problema específico, mas proporciona um clima intelectual positivo para o surgimento de novas idéias e novas práticas. Já postei aqui alguns itens desse manifesto (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/07/2620-incomplete-manifesto-2872011.html).

Hoje comento mais alguns.

Esqueça o “bom”. “Bom” é algo que já se sabe o que é.  “Bom” é tudo aquilo que a gente já concorda. O crescimento não é necessariamente bom. O crescimento é a exploração de recessos ainda não-iluminados que podem ou não render algo para nossa pesquisa. Enquanto você continuar preso ao que é “bom” nunca terá um crescimento verdadeiro.
BT: O bom é a repetição do que já foi testado e aprovado. A indústria vive disso, vive do que comprovadamente funciona e dá lucro. Mas toda indústria (eletrônica, mecânica, o escambau) tem o seu setor de pesquisa, onde se trabalha justamente com o que não foi testado ainda. Os artistas servem como uma espécie de setor de pesquisa, porque a indústria cultural trabalha somente com o “bom”, o testado e aprovado. Na televisão, por exemplo, a única maneira de fazer uma coisa radicalmente nova é convencendo os executivos (mentindo, de forma convincente) de que aquilo já foi feito antes e deu certo, ou seja, aquilo é “bom”.

Dizemos que os executivos de TV são burros, são bitolados, não têm cultura, etc., mas a verdade é que eles não querem botar a cabeça na guilhotina para defender uma coisa diferente, que eles não têm condições de saber se é “boa” ou não. Eles defendem o “bom”. Mas se você não é um executivo, se você é (ou imagina que é, ou tem ambição de ser) um artista, tem que esquecer esse critério. Talvez até surja um futuro conceito de “bom” a partir desse trabalho novo que está sendo criado. O excêntrico, o anticonvencional e o chocante de hoje podem se tornar o “bom” de daqui a 10 ou 20 anos.

Ou, como disse o poeta Chacal: “Só o impossível acontece. O possível apenas se repete.”

Colha idéias. Edite aplicações. Idéias precisam de um ambiente dinâmico, fluido, genroso, capaz de mantê-las vivas. As aplicações dessas idéias, por outro lado, precisam ser aperfeiçoadas pelo rigor crítico. Você tem que produzir um número de idéias muito grande em relação às aplicações.
BT: Existem muitas formulações diferentes desse princípio básico. A mais divertida é a de Hemingway: “Escreva bêbado, revise sóbrio”. O processo criativo tem esses dois movimentos. O primeiro é de expansão, quando procuramos fazer jorrar o maior número possível de idéias. O segundo é de contração, quando vamos podando aquele matagal até dar-lhe uma forma que nos agrada. No cinema, por exemplo, existe uma antiga lei chamada de “Lei dos 8 por 1”, em que para cada minuto de filme na tela é preciso filmar oito e cortar sete. No primeiro momento, deve predominar o entusiasmo, a alegria de inventar, a disponibilidade para incorporar o acaso, as venetas, os improvisos. No segundo momento, deve predominar o senso crítico, o equilíbrio, o olho voltado para o público.

Fique acordado até tarde. Coisas estranhas acontecem quando você vai longe demais, fica acordado por tempo demais, trabalha duro demais, e se separa do resto do mundo.
BT: O “ficar acordado até tarde” não precisa ser levado muito ao pé da letra. Para algumas pessoas, onze da noite já é o máximo da vigília. A idéia dessa sugestão é que um certo grau de cansaço físico e mental é necessário para que a mente faça tentativas mais vigorosas de ter as idéias necessárias. O conforto e o bem-estar nem sempre geram boas idéias. Um certo grau de cansaço faz algumas mentes (algumas, porque esses conselhos, claro, não sevrem para 100% da população) produzirem suas melhores idéias.

Já me aconteceu estar trabalhando num novo capítulo de um livro das 11 da noite até as 3 da madrugada, e na hora em que terminei estava tão cansado que quando apareceu a mensagem: “Deseja salvar as alterações neste arquivo?” eu cliquei “não”, e o arquivo foi pro espaço.

Eu estava tão cansado que pensei, drummondianamente, “amanhã recomeço”. Mas logo em seguida pensei: “amanhã terei esquecido tudo”. E refiz o capítulo todo em uma hora e meia, e ficou muito melhor do que antes, porque tudo ainda estava vívido na minha memória. O cansaço e a concentração se juntaram para “limar” tudo da mente e deixar só o essencial.

Pausas para cafezinho, corridas de táxi, salas de espera. O verdadero crescimento das idéias acaba se dando do lado de fora de onde o programamos, naquilo que o Dr. Seuss chamava “o lugar da espera”. Hans Ulrich Obrist organizou certa vez um simpósio sobre Arte e Ciência, com toda a infraestrutura de um simpósio (as festas, os bate-papos, os almoços, os traslados entre aeroporto e hotel) mas sem nenhuma conferência. Ao que parece, foi muito bem sucedido e deu origem a muitas colaborações fecundas.
BT: A experiência de Obrist é radical, e não duvido que tenha dado certo. Mas vamos tirar o foco do exemplo e trazer para o conceito abstrato. Num ambiente criativo (estúdio de cinema ou de música, laboratório, ensaio teatral ou de dança, etc.) é preciso que existam lado a lado o espaço oficial e o não-oficial, o tempo oficial e o não-oficial, e que as pessoas sejam estimuladas a se sentir à vontade nos dois. Quando fiz faculdade, aprendi muita coisa na sala de aula, mas aprendi mais ainda na biblioteca e na cantina. Durante filmagens ou gravações de TV, muitas soluções aparecem quando a gente “pede tempo”, anuncia uma pausa de meia hora e vai na padaria da esquina. Basta a mudança de contexto externo para os cérebros darem uma revirada no contexto interno e alguém erguer o dedo dizendo: “Que tal se...?”

Este conselho serve para equilibrar o anterior, o de ir até o limite da exaustão. Mudar de ares, fazer uma pausa, tudo isto também funciona. Basta ter em mente que nem toda pessoa é produtiva da mesma forma; e que até a mesma pessoa pode render melhor num dia sendo submetida a um tipo de esforço, e no dia seguinte, ou no ano seguinte, a outro tipo. O trabalho criativo é imprevisível. Se você faz um trabalho burocrático pode calcular (eu fazia isso quando trabalhava em escritório) quantos ofícios vai poder datilografar em uma hora. Mas não pode prever, se é escritor, quantas cenas ou quantos parágrafos vai produzir naquele dia, a menos que você ache que produzir duas páginas de bom texto e duas páginas de besteira equivalem ao mesmo rendimento.





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