Perdemos
na semana passada a pessoa única e inimitável de Giuseppe Baccaro, falecido aos
86 anos num hospital do Recife.
Para
a imprensa em geral, nos obituários que li agora, ele era um artista, um marchand e colecionador de artes,
italiano, radicado no Brasil desde os vinte e poucos anos, um sujeito ligado
desde sempre ao mundo das artes plásticas. Passou uma longa temporada em São
Paulo, e se fixou por volta de 1970 em Olinda, onde criou a Casa das Crianças
de Olinda, uma entidade assistencial.
O
outro lado de Baccaro é a sua ligação com o cordel, a cantoria de viola, a
xilogravura, outras formas de poesia popular.
Foi
por essa via que nos conhecemos, por volta de 1976, quando ele realizava (praticamente
sozinho) um festival de violeiros em Olinda e eu trabalhava no Congresso
Nacional de Violeiros, de Campina Grande. Ele nos visitou certa vez, para ver o
Congresso, e começamos aí um diálogo que durou muito tempo.
Havia
uma certa hierarquia na relação. Baccaro era 20 anos mais velho do que eu, que
não passava de um estudante universitário, um diletante que sabia preparar bons
motes. Ele tinha o poder econômico, mas, muito mais do que isso, tinha “a Força”.
Aquela energia inexplicável e fascinante que leva certos indivíduos a
realizarem coisas, compulsivamente, passando por cima de pau e pedra, dobrando
os outros à sua vontade, visando um objetivo maior.
Incansável,
mandão, impaciente, afável, risonho, onipresente, era aquele tipo de cara capaz
de armar sozinho a lona de um circo.
O
eterno sotaque italiano brotava com força a cada contratempo; “Ma no é
possível!”. E arregaçava as mangas, pegava a gente pela orelha e levava pra
consertar.
Nossa
convivência se consolidou em 1979, quando ele me chamou para participar da
Viagem dos Poetas ao Brasil, uma excursão de cantadores patrocinada pela
Prefeitura de Olinda, na gestão de Germano Coelho.
Eu
quase endoideço, porque Baccaro ficava me incumbindo de uma maratona de tarefas
para as quais eu era totalmente despreparado. Se sou tímido e desorganizado
hoje, imagina 40 anos atrás.
Durante
menos de um mês, um ônibus cheio de repentistas realizou shows sucessivos em (nesta
ordem) Recife, Maceió, Aracaju, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília,
Belém, São Luís, Teresina, Fortaleza, Natal, João Pessoa e Olinda.
Entre
as duplas que fizeram a viagem, estavam Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio;
Lourival Batista e Lourival Bandeira; Otacílio Batista e Oliveira de Panelas;
Luís Campos e Luís Antonio; Zé Vicente e Manuel Estêvão; Pedro Bandeira e
Daudeth Bandeira; e vários outros.
Eu
fui junto, como uma espécie de assessor de imprensa, e levei comigo minha irmã
Inês e minha esposa na época, Arly Arnaud, “Lili”. As duas frequentavam
cantorias comigo há anos e eram amigas da maioria dos poetas. Ajudavam a vender
os folhetos e xilogravuras, a apartar as brigas.
Baccaro
mexia em tudo, se preocupava com tudo: a ordem das duplas que iam cantar, o
som, a iluminação, o palco, os temas a serem sorteados. Era tempo da ditadura,
governo Geisel, e ele insistia: “Vamo falar de política! Vamo soltar o verbo!” Eu ponderava: “Baccaro,
e se prenderem o grupo inteiro?” E ele:
“Ah! Melhor! O mundo todo fica sabendo dessa patifaria que tem aqui!”.
Não
prenderam ninguém, embora tivéssemos aqui e ali uns arranca-rabos – quando
cantamos nos degraus do Teatro Municipal de São Paulo, às quatro da tarde, parando
o trânsito, a polícia veio cortar o nosso som.
Fizemos
apresentações em palco ao ar livre para multidões gigantescas na Praça da Sé
(SP), na Feira de São Cristóvão (Rio, numa manhã chuvosa de domingo), no Campo
Grande (Salvador).
Quando
chegamos em Brasília, Baccaro anunciou que no dia seguinte iríamos ser
recebidos pelo Ministro da Educação, ao qual ele entregaria um manifesto pela
poesia popular. Sempre interessado em qualquer chance para produzir frases
bombásticas, perguntei se precisava de alguma coisa. “Só que no me atrapalhe,”
disse Baccaro, e passou a noite batucando o manifesto numa máquina de escrever
emprestada.
Alguns
anos depois ele repetiu a Viagem, e desta vez não fui. Inês foi, e talvez seja
a única pessoa da equipe a ter participado das duas.
Quando
sentávamos para conversar, Baccaro sempre deixava clara sua impaciência com o
descaso com que o Brasil tratava a poesia popular.
Eu
tinha menos de 30 anos e ainda estava numa fase meio deslumbrada, só pensava em
rimas, em motes, em inventar novos gêneros. Baccaro passava a mão pelo cabelo
meio longo e deblaterava contra a estupidez das autoridades, a burrice dos
intelectuais, a desinformação da imprensa, os preconceitos da classe média.
“São
uns idiotas, uns imbeciles,” bradava ele. “Têm a poesia mais viva do mundo, os
poetas mais geniais, e não dão valor.” Acho que herdei dele (espero ter
herdado) esse inconformismo com a imbecilidade oficial brasileira.
Principalmente os nordestinos, tão deslumbrados com o folclore do Sudeste.
Nas
gráficas da Casa da Criança publiquei meu folheto Cantoria: Regras e Estilos, que distribuíamos de graça na “Viagem”
de 1979, e em 1981 ele me deu de presente uma tiragem enorme de Cabeça Elétrica, Coração Acústico, com
letras de minhas canções.
Era
um convertido, um desses estrangeiros que renascem ao descobrir o Brasil. Como
o francês Raymond Cantel, criador da maior biblioteca de cordel da Europa, que
entrevistei no Hotel Tambaú e depois levei à “Estrella da Poesia”, a editora de
Manuel Camilo dos Santos, de quem ele era o maior fã. Como Idelette Muzart, a
francesa que uma magia de cordel transformou em paraibana por amor à poesia
popular. Como o holandês Joseph M. Luyten, que editou na Hedra uma excelente
coleção de antologias de cordel (eu organizei a de Raimundo Santa Helena). Como
Claude Sicre, o rapper dos ”Fabulous
Trobadors”, que ao ressuscitar na Provença o idioma occitano descobriu o
coco-de-embolada do Nordeste. Como tantos outros que tiveram de vir de longe
para nos mostrar a poesia que se produzia ao nosso redor.
Era
artista plástico, marchand,
colecionador, mecenas, empresário? Para mim era e será Baccaro, apologista da
cantoria de viola.
Conheci Baccaro também por esse seu trabalho com relação aos poetas populares do Nordeste -- artistas inconfundíveis. Fui apresentado a cantadores na casa dele. Assisti aos festivais realizados em Olinda. E fui convidado a fazer parte da segunda caravana dos cantadores pelo Brasil. Não dava para eu ir. Deveria ter ido. Em Olinda, num festival de cantadores, escutei "Nordeste Independente" pela primeira vez. Impressionou-me porque a platéia aplaudia a canção a cada verso, praticamente. Baccaro dizia que só o Nordeste, no mundo inteiro, tinham tantos poetas do povo. A Grécia vem em segundo lugar. Esse italiano era muito mais do que marchand, artista, cultor da arte. Uma vez, indo com ele a uma festa de carnaval do bloco Siri na Lata, em Olinda, fiquei impressionado como Baccaro sabia fazer bem o passo, no ritmo da pesada dos frevos de bloco.
ResponderExcluirOlá, Bráulio. Agora, visitando a tag cantoria de viola, reli esse texto. E me ocorreram algumas questões sobre o período que você descreve, onde vivíamos os anos de ditadura militar. Fiquei pensando sobre os motes e os versos sobre o país, sobre a política, a repressão. Louvamos tanto as letras de Chico, Milton e outros que faziam referência à ditadura, sua habilidade de "esconder" a crítica em suas letras. Mas fico imaginando o que pode ter surgido no improviso desses poetas geniais e inventivos. Existe algum registro dessas cantorias, ou alguém que tenha escrito sobre? Penso até mesmo no contexto do Congresso Nacional de Violeiros em Campina.
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