Ao se traduzir autores considerados clássicos, respeitados, conhecidos, há uma mistura interessante entre coerção e liberdade.
Um autor clássico, famoso,
best-seller é em geral um autor que se pode consultar em várias traduções. Um
crítico, um professor, um colega, têm outros exemplos para comparar com a
tradução que estão examinando. Por clássico entendo tanto Shakespeare quanto
Agatha Christie: autores para os quais não faltam versões no mercado.
Isso é uma coerção porque o
novo tradutor sabe que seu trabalho provavelmente vai ser comparado com o
trabalho dos que o antecederam. O que era para ser um labor-de-afeto feito no
silêncio e na solitude acaba se transformando numa competição pública.
Por outro lado, pode ser uma
liberdade, porque o novo tradutor dispõe de precedentes, de traduções
anteriores que ele pode consultar. Uma vez um amigo se horrorizou ao me ver traduzindo
e tendo ao lado uma pilha de traduções antigas do mesmo livro. “Você está
colando?!”, perguntou ele, horrorizado diante daquela contravenção escolar.
Há várias maneiras de
responder a isto. Uma é dizer que você não está preguiçosamente copiando a
solução que um colega adotou vinte anos atrás: está justamente se comprometendo
consigo mesmo a encontrar uma solução tão boa quanto a dele.
Outra é pensar que todos os
tradutores estão produzindo um gigantesco corpo de notas de pé de página ao
texto original. Consultar o que os outros já disseram nos desobriga de
repeti-los. E nos libera para a repetição, quando consideramos que estamos
apenas repetindo o óbvio, naqueles casos inevitáveis em que the book is on the
table.
E nem mesmo essa proliferação
de precedentes quebra todos os nossos galhos. Já me vi diante de uma palavra ou
expressão inacessível a tudo: dicionários, Google, forums de tradutores.
Consultei então duas traduções brasileiras do mesmo livro, uma portuguesa, uma
espanhola e uma francesa: cada uma delas cortava o nó górdio de uma maneira
totalmente diferente. O que fiz? Inventei também.
Trabalhamos com um olho no
público que vai ler o livro (e que precisa ter nas mãos um livro legível) e com
um olho no autor (que precisa ser respeitado; é ele, em última análise, o
patrão a que devemos obediência).
Muitas vezes é útil saber, da
própria boca ou pena desses autores, o que eles mesmos consideravam menos
relevante na própria obra.
Garcia Márquez pode se dar o
luxo de afirmar que não sabe manejar bem o diálogo, por isso sua narrativa é
geralmente uma narrativa distanciada, sem o ping-pong verbal de muitos autores.
Raymond Chandler podia dar de
ombros, com azedume, e dizer, o enredo, dane-se o enredo, o que eu procuro é
outra coisa.
Borges podia pedir desculpas a
gerações sucessivas de leitores pela reiteração dos próprios clichês: espelhos,
espadas, tigres, labirintos...
Aceitar os limites ou os
cacoetes do autor significa acompanhar seu modo de expor, sua notação, sua
mecânica pessoal de narrativa. Nesse caso, o tradutor precisa seguir a voz do
texto original. É como se fossem dois tapetes mágicos voando juntos, num voo
quase sincronizado, o autor dando guinadas imprevistas e o tradutor tentando
acompanhá-lo sem perder o ritmo.
O tradutor tem que acelerar
quando o original acelera, retardar quando retarda, ser nítido ou meio
incoerente sempre que o original for assim.
Uma questão interessante que
se coloca é quando o tradutor acha que o autor foi kitsch (brega, naïf,
etc), algo que em tese deveria ser evitado. Que tipo de comentário a tradução
pode fazer? Ressaltar que o autor teve ingenuidade e mau gosto? Procurar pensar
como ele, e produzir em português uma imagem que dê essa mesma impressão, e
mais a de sinceridade, de quem estava dizendo aquilo e achando que estava
arrasando?
E quando o autor erra, o
tradutor tem o direito de corrigir? Ou pelo menos sugerir uma nota explicativa?
Já localizei erros bobos em edições recentes de livros que vêm sendo publicados
há meio século. Troca de um nome por outro, erro autoral que poderia ser
corrigido editorialmente, na revisão.
Mas, e quando o autor fala
bobagem? Se o autor Fulano, referindo-se a outro, afirma que ele era irlandês,
quando na verdade era nativo da Escócia, a gente corrige e fica na moita? Deixa
o autor famoso em erro? Escreve para a editora original? Bota asterisco e nota?
Faz de conta que não sabia?
Em geral quem decide isso é
mesmo o editor, que é aonde vão todas as fichas que não caíram. O tradutor dá
seus palpites, mas a decisão é mais acima, porque há um problema com o
original, não com a tradução.
Deve sair em breve minha
tradução de A Irmãzinha de Raymond
Chandler, o quarto volume na série da Alfaguara/Objetiva.
Nesse volume incluí uma carta
de Chandler para a agente literária Bernice Baumgarten, queixando-se dos
numerosos erros que ele encontrou em poucos minutos nas páginas iniciais de uma
edição italiana de um livro seu. Ele explica todas as coisas erradas que, mesmo
falando pouco italiano, ele consegue perceber. Vê-se claramente que era uma
edição mais que descuidada e uma tradução cheia de pequenos equívocos.
minha escolha: deixar (o erro) e mandar coment para a editora.
ResponderExcluireles que se virem.
já vi isso em nota de rodapé (N. do T.), mas acho que não fica bom. Nota de tradutor é pra esclarecer, não pra corrigir.
Como me envolvo nessa questão!
ResponderExcluirQuando lendo tradutores de Nietzsche,me encantei com os vários sentidos para "trieb"
Saudações!