sexta-feira, 31 de outubro de 2014

3646) Os candidatos (31.10.2014)


Nem sempre o melhor candidato é o melhor executivo.  Acho graça no modo como a democracia eletrônica, onde o objetivo é impor uma idéia a dezenas de milhões de pessoas desinformadas, deforma todo esse processo.  Deveríamos eleger o melhor administrador, o mais competente, o mais correto, o mais íntegro, o mais líder.  Ao invés disso, elegemos em geral o que tem sorriso mais aconchegante, o que tem rasgos oratórios que fazem explodir aplausos, os que pelas feições ou pelo traje se parecem com algum vago ideal de autoridade que trazemos adormecido em nossa subconsciência de classe. Votamos num ator.  Mesmo os bons administradores (que felizmente existem) descobriram muito cedo que para poder administrar em paz tinham que desenvolver, mesmo a contragosto, esse lado televisivo, histriônico, fotogênico.

Esse jogo foi zerado por Ronald Reagan.  Deve haver precedentes, mas eu diria que Reagan foi o primeiro caso de robô biológico na história da política moderna.  Um robô biológico é um ser humano incapaz de pensar por conta própria mas dotado de uma sólida capacidade de dizer e fazer o que lhe dizem para ser dito e feito.  Reagan tornou-se assim, para o neo-liberalismo republicano, o candidato perfeito e depois o administrador perfeito.  Foi treinado durante a campanha, e depois de eleito continuou recebendo os textos das mãos da mesma equipe.  Não sabia a diferença entre o Brasil e a Bolívia, tinha um “personal astrólogo” para lhe dizer como seria o seu dia, era um javali de terno, mas recebia os textos e aplicava a eles todo o seu charme de galã rústico de Hollywood.

A direita norte-americana trouxe mais atores à política: Schwarzenegger, Clint Eastwood...  Livro um pouco a cara deste último, que é reacionário mas parece ser capaz de pensar sozinho.  Mas o bom Arnold é um exemplo cristalino de como o mundo do espetáculo, a cada década que passa, é sugado para o interior da política.  Mais fácil do que transformar um político em ator é transformar um ator em político, afinal de contas ele vai precisar apenas ler coisas no teleprompter, porque todas as discussões já lhe chegarão brifadas e dirigidas.

Lembro de uma longínqua eleição nos EUA em que um comentarista falou: “O melhor presidente seria o senador Fulano, porque é honesto, competente, sabe costurar apoios.  Mas nunca seria eleito, porque é feioso, mau orador, gagueja.  Candidato tem que ser galã.”  A democracia eletrônica facilita a discussão e participação (via redes sociais), mas é toda voltada para a construção de uma imagem e desconstrução das demais.  Vota-se numa imagem cuidadosamente concebida e orquestrada, que não corresponde a uma pessoa real.



quinta-feira, 30 de outubro de 2014

3645) Lovecraft datilógrafo (30.10.2014)





A literatura pode ser uma só, mas suas portas são legião. Todo caminho na sua Babel é único: só pode ser concebido e trilhado por aquela pessoa. É sempre bom tentar entender como o escritor trabalhava, fisicamente, porque isso pode ter alguma influência sobre seu modo de produção.  Sempre presto atenção à opinião dos autores que trabalharam durante as primeiras décadas da datilografia, no final do século 19 e começo do 20. 



Datilografar, para mim, é um prazer, hoje, no meu confortável desktop de teclado amplo e macio, cheio de recursos.  Como é ou era para os outros?  H. P. Lovecraft talvez tivesse um estilo menos ornamental e pomposo se o enfrentamento físico com o ato da escrita lhe fosse menos trabalhoso.  Numa carta de 1926 para August Derleth, ele diz: “Tenho tanto horror à tarefa de datilografar que não vou fazer isso sem antes ler tudo em voz alta para dois ou três bons avaliadores, e saber se vale a pena ser preservado ou não.”



Lovecraft era um compulsivo escrevedor de cartas, tanto à mão quanto à máquina. Também em 1926, escrevendo para Wilfred Blanch Talman, ele comentava: “O papel de formato longo que estou usando me foi dado pelo nosso companheiro e fã George Kirk, que você deverá conhecer em breve, o qual insistiu em me dar depois que não teve mais utilidade comercial para ele.  Se minha correspondência não fosse tão devastadoramente gigantesca, eu diria que o estoque de que disponho agora duraria para o restante de uma vida mediana.”



O papel podia ser muito, mas a energia era escassa. Lovecraft precisava fazer uma primeira versão à mão, corrigi-la, e depois datilografá-la, fazendo novos adendos e correções ao longo da versão passada a limpo, como a maioria dos autores.  De vez em quando conseguia alguém que fizesse isso para ele, mas a penúria financeira o impedia de contratar datilógrafos profissionais.  E o cansaço o impedia de fazer as sucessivas revisões que nós, hoje, fazemos com um pé nas costas.  Ironicamente, ele próprio faturava alguma grana, para completar o orçamento, com tarefas pagas de revisão de textos alheios, o que provavelmente o deixava, depois de um dia de trabalho, sem o menor saco para revisar seus próprios textos. (Pelo menos é o que aconteceria comigo, nessas circunstâncias.)


Em 1927 ele se queixa ao amigo Frank Belknap Long: “...a datilografia de manuscritos com essa extensão está totalmente além da capacidade de um cavalheiro idoso e cansado que costuma perder o interesse numa história no momento em que a completa...”  HPL dizia que era um homem do século 18 perdido no moderno e insuportável século 20.  Provavelmente era mesmo.


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

3644) O Banqueiro (29.10.2014)





(ilustração: Benedetta Bonichi)


Na sala do Banqueiro ouve-se música clássica o tempo todo, mas ele não sabe identificar o que está tocando.  A música está ali apenas para atrapalhar possíveis microfones de espionagem embutidos nas paredes.  O Banqueiro já chegou a fazer reuniões secretas num jatinho, dando voltas sobre a cidade, para ter certeza de estar a salvo de espiões. O Banqueiro não gosta de olhar o interlocutor nos olhos. Enquanto conversa, caminha o tempo todo.  Prefere trabalhar de pé, diante de uma bancada de madeira, onde escreve, digita no laptop, telefona, despacha com funcionários. 



Sua casa sempre foi repleta de arquivos, pastas, material de trabalho por toda parte. É vegetariano, e seu prato preferido são legumes cozidos. Acha um desperdício o hábito de comidas sofisticadas e bebidas caras: “É muito mais fácil gostar de qualquer coisa.”  Se os outros comensais pedem uma refeição fina, ele se contenta com salada de tomate com palmito.  Sob suas ordens, mais de 70 pessoas trabalham em quase absoluto silêncio.  Sem risadas, sem ninguém elevar a voz.  Pedem comida lá mesmo no escritório; todos têm hora para entrar mas não para sair.  O Banqueiro lembra saudoso ambientes bancários que conheceu na juventude: “Existia ali uma disciplina rigorosa, era tudo silencioso, quase monástico.”  O Banqueiro já tentou, sem sucesso, proibir que seus funcionários lhe dirigissem a palavra, mesmo para dar bom-dia.



O Banqueiro não passeia, não vai à praia, e seu maior luxo hedonista é comer um peixe grelhado. Seus exercícios físicos são feitos em casa, numa esteira.  Raramente vai ao cinema.  Costuma perguntar a uma amiga, frequentadora de teatro, por que ela assiste peças, já que “nada do que acontecia no palco era verdade”.  A última obra de ficção que se lembra de ter lido é o Ensaio sobre a cegueira de Saramago. Seu apartamento tem numerosos quadros dos maiores pintores brasileiros, mas ele não lhes dá muita atenção, pois estão ali apenas a título de investimento.  O Banqueiro admite que não tem muitas idéias de como gastar dinheiro, e diz que o seu objetivo e o seu prazer não são o dinheiro em si. “É o negócio,” explica.


O Banqueiro não é uma invenção da mente insone e paranóica de um escritor.  É o banqueiro Daniel Dantas, do banco Opportunity, cuja fortuna pessoal é de mais de um bilhão de dólares. (ver Revista Piauí, # 7, 2007).  Conhecido como um trabalhador obsessivo, um negociador cruel, um investidor esperto e pouco confiável, sempre tentando dar um jeito de ser a única pessoa a ganhar com o negócio que está sendo feito.  É o retrato da geração que está transformando o planeta inteiro num dinheiro que ninguém conseguirá gastar.




terça-feira, 28 de outubro de 2014

3643) Sete veredas do sertão (28.10.2014)



Segundo o pesquisador Willi Bolle, a bibliografia de textos de análise ou comentário ao Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa já passa dos mil e quinhentos títulos.  Ele deve saber do que está falando, porque publicou em 2004 “grandesertão.br” (Eds. Duas Cidades / 7Letras).  Entre mil detalhes, Bolle propõe uma subdivisão da narrativa do romance em unidades, já que Rosa fez um texto corrido e sem cortes do começo ao fim. (Falei dias atrás das 10 subdivisões sugeridas por Ariano Suassuna.)

No seu livro (pags. 62-63) Bolle sugere uma divisão em sete partes.  Vou resumir. 

Um: Proêmio. Riobaldo fala, proseia, passeando por todos os temas principais da história que se inicia.  

Dois: “Recorte ‘in media res’ da vida do jagunço Riobaldo. Já jagunço, Riobaldo está no bando de Medeiro Vaz, que fracassa a travessia do Liso do Sussuarão. Surge a figura de Zé Bebelo.  

Três: Interrupção. O narrador comenta a dificuldade de narrar.  

Quatro: Primeira parte da vida de Riobaldo. Volta à infância, quando no rio ele conhece o Menino (que virá a ser Diadorim); ele fala de sua mãe, seu padrinho, sua criação, como estudou e viveu.  Sua ligação com Zé Bebelo, o jagunço-deputado.  Como vira jagunço. O bando de Joca Ramiro derrota, prende, julga e liberta Zé Bebelo.  Depois, notícia do assassinato de Joca Ramiro.  Começa “a outra guerra”. 

Cinco: Segunda Interrupção.  “O narrador, que se coloca numa situação de ‘acusado”, se põe a falar de sua ‘culpa’ e do que ‘errou’.  

Seis: Segunda parte da vida de Riobaldo: o conflito com Zé Bebelo, o pacto com o Diabo, a travessia (agora bem sucedida) do Liso, o encurralamento dos inimigos e o sangrento confronto final.  

Sete: Epílogo. Riobaldo proseia, amarra as últimas pontas falando como casou, como herdou uma fazenda, como transformou vários companheiros de jagunçagem em seus moradores e braços-de-armas.  “A viagem pelo sertão termina, em termos de perspectiva, com o signo do infinito.”

Um romance inconsútil como GSV meio que força o leitor mais atento a traçar esses esquemas, porque com eles diminui a sensação de estar sobrevoando a Amazônia sem bússola nem mapa. Esse fio básico conta a história. Bolle vê no livro de Rosa uma estrutura (a aventura de Riobaldo) que sugere a formação das instituições brasileiras, no que têm de flexíveis ou de viciadas.  Ele enfatiza o lado fazendeirão de Riobaldo, novo poderoso chefão estabelecido, contando sua trajetória rumo ao status quo, rememorando sua folha de serviços e tentando se justificar através de uma paixão e de uma culpa.  (O livro também tem vários mapas, cronologia de combates e eventos, etc.)


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

3642) 1x1 (27.10.2014)



(ilustração: Dariusz Klimczak)

Acabou a campanha.  Ontem, os brasileiros escolheram funcionários públicos de quem deverão cobrar serviço durante os próximos quatro anos.  Pra quem tem o poder, quatro anos passam num instante, vapt-vupt, não dá tempo nem de gelar a cerveja.  Para a oposição, quatro anos são uma eternidade. Uma Kalpa multiplicada por um Eon, um exílio sem fim na masmorra da ilha onde ficou preso o Conde de Monte Cristo.  Felizmente, ao contrário de Edmund Dantès, quem desaba na oposição tem direito, no seu calabouço, a internet bandalarga e conexão com tudo em tempo real.  Calada ela não vai ficar.

Poderiam todos ficar mais serenos, depois que passar a adrenalina das quatro linhas. (Do futebol ou do UFC?  Digamos futebol, é mais diplomático.) Todo mundo acha bonito quando, no fim de um clássico disputadíssimo, entre dois times de ponta e antagonistas históricos, num jogo de muitos gols e viradas no placar, cheio de cartões e “lances ríspidos”, então, conquistado o título, os que estavam trocando carrinhos e cotoveladas se abraçam, trocam de camisa, comentam alguma coisa, dão uma risada.  O jogo acabou (dizemos nós, ainda meio surpreendidos com essa cultura tão moderna); eles “são profissionais, são colegas de trabalho”.  E achamos bonita a transição da fúria guerreira para o sorrisão diplomático.

Quando é com os políticos... Por que todo mundo se escandaliza quando os vê trocando de time, abraçando os ex-antagonistas, trocando por elogios os antigos vitupérios? Ora, por que não o fariam? São profissionais também.  São colegas de trabalho.  Surgem na vida com um personagem, ou com um projeto de.  São aceitos, burilados em público, jogados à arena das gramas e à das urnas, e os que vão sobrevivendo têm chance de um dia serem convocados para alguma coisa. 

Num ano como 2014 não é possível não matutar um pouco como são duas profissões incompreendidas no Brasil: político e jogador de futebol!  Veja com quantas más avaliações se faz um Irremediável. Nossos principais super-heróis, e começam a pedir recall. Cada um deles tem seu quinhão de hubris e de comemorações na avenida, seu quinhão de cooptações ou de apequenamentos, seu pênalti chutado às nuvens, seus sonhos em reboot.  São profissionais. Não sei se pensam em salvar o mundo, nem se acreditam quando são chamados de deuses com asas nos pés.  Os dois são injustiçados de um lado, hiperinflacionados do outro, mas isto é Brasil, é nessa dinâmica que toca a orquestra. Se é tudo um jogo, que se jogue o jogo; e não pode ficar um a um.  Que se jogue limpo, porque há leis de sobra.  Projetos para melhorar nem se fala.  Ídolos, não maltratem a bola não, que a bola pune. Vida que segue.


domingo, 26 de outubro de 2014

3641) A catedral gótica (26.10.2014)




Um país é como uma catedral gótica que está em construção há séculos. O “pobrema” é quando uma nova equipe assume o projeto. Resolve continuá-lo. Só que agora vai ser um edifício-garagem.  Mais algumas décadas, nova troca de comando.  Surge uma idéia brilhante: por que não transformar aquele edifício-garagem num heliporto?  E por aí vai.  Quando séculos depois a equipe primordial reassume o controle tem que explicar como alegoria cristã todos aqueles penduricalhos arquitetônicos, que à primeira vista parecem não ter nada a ver com catedrais. A doutrina, a teoria, tem que bater com a realidade.  Quando a realidade se mostra irredutível, não custa nada a teoria dar a volta ao quarteirão e trazer um novo aprouche.



Imagine o velho Oeste americano, as imensidões do Vale da Morte ou Monument Valley, aquela horizonte árido e aquelas formações geológicas impudentes, “cheguei”, tão reconhecíveis quanto uma assinatura num cheque.  Parece um trecho do país construído em mandatos sucessivos por dois partidos que eram não apenas politicamente antagonistas, mas esteticamente jurados de morte.  Tudo lhes era permitido no poder, menos destruir o que o outro conjurou.  (Na China, a solução de cada um era avançar a muralha mais para a esquerda. Mais para a direita.)



Pode um país ser tocado pra frente assim?  Meu amigo – você está preparado para escutar a resposta?  Pois tanto pode como vai.  Tanto pode como vem sendo tocado assim há muito tempo, desde antes de qualquer um de nós aqui se entender de gente.  Todos os países assim são tocados. Uns resvalam pra guerra civil, outros pra economia de mercado, e não se sabe qual dos dois teve mais sorte, ou menos.



Vejam só.  Atravessei a catedral gótica e no meio dela não tinha um altar. Tinha um bloco de pedra com uma porta.  Abri-a – e não vi nada do lado de lá.  Eu ia dizer para não incendiar a cidade conquistada, porque o poder é uma mistura de mil teorias das conspirações e um bilhão de desconfianças.  Talvez seja esta, na História da Humanidade, a primeira geração em que nerds de 50 anos estão no Poder.  Cinquentões cobertos de acne e sardas, dispostos a devolver com juros tudo que sofreram. 


Nerds grisalhos em posição de mandar em conglomerados bancários, equipes científicas, telecomunicações, mercados, em tudo que um nerd gosta.  Não são os Homens de Preto, embora haja muitos cidadãos assim trajados.  O espetáculo é vibrante, e eles o assistem das coxias, paralelos ao palco, fumando um cigarro (o teatro é deles) de vez em quando afastando a beira da cortina e olhando para nós, aqui nesta abóbada, nesta platéia que não tem mais fim, não tem mais fim, não tem mais fim.



sábado, 25 de outubro de 2014

3640) Cantos do "Grande Sertão" (25.10.2014)



(ilustração de Poty para Grande Sertão: Veredas)


Um dos grandes problemas para estudar (e não meramente “ler”) o Grande Sertão: Veredas é que Guimarães Rosa fez dele um texto corrido, direto, sem interrupções, sem separação de capítulos, sem segmentos precedidos de título ou número, sem qualquer tipo de divisão.  Quando vamos citar o livro podemos dar apenas o número da página, que muda de edição para edição. (Em obras clássicas, com numerosas edições, costuma-se citar o capítulo, não a página, que sempre varia.)  O problema não é só com citações, mas também com a necessidade que o leitor tem de memorizar uma sequência, um fio condutor.  Subdivisões ajudam. Quando o livro é contínuo, as palavras passam por nós e se perdem como as águas de um rio incessante.



Uma das tentativas de partir o romance em unidades foi feita por Ariano Suassuna em “Encantação de Guimarães Rosa”, um texto de 1967 recolhido no Almanaque Armorial (org. Carlos Newton Júnior, Ed. José Olympio, págs. 148-149). Diz Ariano que Rosa “entrou instintivamente no grande ritmo épico” e estruturou seu romance ao longo de dez Cantos, como num poema épico, mas sem indicá-los.  Essas dez subdivisões do texto seriam, segundo Ariano:



“O primeiro canto começa no início, tem a lista dos chefes, a descoberta que faz Riobaldo de que é filho bastardo de Selorico Mendes (...) e vai até o começo da traição a Joca Ramiro.   

O segundo canto começa com a luta contra Zé Bebelo sob o comando de Hermógenes e vai até a chegada do chefe guerreiro Sô Candelário.  

O terceiro, vai da espera de Joca Ramiro no É-Já até o julgamento de Zé Bebelo.  

O quarto, pega do episódio da Guararavacã até o Bambual do Boi.  

O quinto, começaria com a nova andança dos jagunços, do Poço até a morte de Medeiro Vaz.   
O sexto, do enterro deste chefe até o primeiro grande ataque aos ‘judas’.  

O sétimo começaria com a grande lista dos cangaceiros, até a fuga de Zé Bebelo do cerco que lhe fora posto por Ricardão.  

 O oitavo iniciar-se-ia com a cena na fazenda de Dodó Ferreira e iria até o pacto de Riobaldo com o Diabo.  

 O nono começaria com a nova força de autoridade de Riobaldo e iria até a travessia do ‘Liso do Suçuarão’.  

 Finalmente, o décimo partiria daí até o desenlace.”


Certamente não é a única divisão possível (qualquer dia comentarei a divisão proposta por Willi Bolle), mas ela indica o modo como tanto um autor quanto um leitor precisam de uma espécie de índice mental para ter a visão do todo.  Dividi-lo em partes tem um fim prático (ajuda a localizar com rapidez um certo trecho) mas também ajuda a perceber e julgar melhor a estrutura da obra, ver como ela se organiza e produz os seus efeitos.


3639) Seu Lunga (24.10.2014)



(na foto, Biliu de Campina)

Eu gostaria de saber qual o abracadabra do fascínio que Seu Lunga exerce sobre as pessoas.  Me refiro ao personagem, que é facílimo de vestir por qualquer cidadão desde que seja baixinho, magro, roufenho, irritadiço, abespinhado, inconsequente, abofelado, impaciente ou feroz.  

Pense em Pinto do Monteiro, a cascavel do repente, ouvindo do outro cantador uma alusão que considera desrespeitosa, e se entesando todo pra disparar uma sextilha-tonelada.  

Pense em Manoel Camilo dos Santos tomando conhecimento de algum reparo a sua ortografia ou sua gramática.  

Pense em Jamelão recebendo a abordagem loquaz de um penitente na hora em que quer escutar uma música que se canta na mesa. 

Seu Lunga vai saindo bem cedinho, na primeira luz do dia, o perdigueiro arfando à frente, a espingarda num ombro e a tira do embornal no outro. Um vizinho diz: “Bom dia, Seu Lunga!  Tá indo caçar?!”  “Não,” diz ele, engatilhando a arma, “tou indo matar esse cachorro doido!”.  Tebêi!  

Seu Lunga não tem paciência com os idiotas da objetividade, esses personagens meio fora de foco criados por Nelson Rodrigues.  Quando alguém tenta condená-lo ao óbvio, ele faz como aconselhavam os surrealistas: produz um ato atroz bem no meio da parede bem branquinha da vida real.

Engraçado que na minha infância esse personagem era Seu Mandurinha, ou Seu Mandury.  O nome Lunga eu vim a conhecer quando troquei Campina pelo Brasil.  

O Velho Pôpeiro é um arquétipo, afinal, tanto quanto o Canalha Arrependido ou o Bajulador Frustrado.  E nas artes temos o memorioso Funes, o avaro Scrooge, o libertino Casanova, o mercantilista Paulo Honório, o apaixonado Romeu, o imperturbável Buster Keaton, o ardiloso Ulisses, o absurdo Limeira... 

Personagens de rica textura, cada qual ao seu modo, mas submetidos a um viés que os deixa na beirinha da alegoria.  Cada um tem um fator principal, que o transforma quase num personagem de uma só dimensão, um só traço, ou traço predominante demais sobre os demais.

Porque por mais que a gente queira e deva e precise e mereça tocar o barco com alegria e leveza e peso específico, é bom existir alguém pra ser a trombeta explosiva e vibrante de toda essa baita duma réiva. De tudo que a gente represou pra que aquilo no meio de uma festa não resultasse em tumulto e morte. Tudo que a gente engoliu pra não parecer que estava querendo ser melhor do que os demais. Tudo que a gente, pra ser gente boa, teve que coçar a cabeça, e dar um riso assim de lado, e dizer, rapaz, deixa isso pra lá, não vamos mexer com esse assunto não. 

Seu Lunga é o estouro da rolha dessa champanhe vingativa, maturada durante as horas de ressentimento e rancor.





quinta-feira, 23 de outubro de 2014

3638) Cronenberg escritor (23.10.2014)


O diretor David Cronenberg (Videodrome, A Mosca II, eXistenZ, etc.) acaba de lançar seu primeiro romance, Consumidos (Alfaguara/Objetiva, 2014).  O livro é descrito como “a narrativa bifurcada do assassinato canibalístico envolvendo um casal de famosos filósofos franceses e um médico que está por trás de uma doença sexualmente transmissível e sua estranha filha”.  Se eu tivesse lido esse resumo sem saber o autor, pensaria: “Esse cara deve estar vendo muitos filmes de Cronenberg”.

Fiquei curioso em saber como foi esse processo para quem, como ele, escreveu não só seus próprios roteiros mas também adaptou alguns romances (Naked Lunch de William Burroughs, Cosmópolis de Don DeLillo, Crash de J,. G. Ballard, etc).  Não conheço muitos romances de estréia de diretores com carreira já consolidada, ou seja, alguém que dirigiu mais de meia-dúzia de filmes e de repente resolveu escrever um livro. Numa entrevista no saite The Daily Beast (http://tinyurl.com/py385c4), ele comenta o processo.

“Romance e roteiro não se parecem em nada. Um roteiro é um tipo bizarro e híbrido de escrita, onde a qualidade de sua prosa é irrelevante. Na verdade, tanto melhor se for uma prosa rasa e simples. Quando a gente lê um roteiro de um escritor frustrado, a gente o odeia, porque ele vai, e vai e vai, descrevendo coisas irrelevantes. (...)  O roteiro tem que ser uma leitura rápida e clara, que possa lhe dar uma idéia de como sua equipe pode fazer com que aquilo aconteça. É uma escrita restritiva, comprimida. Um romance é totalmente diferente. Descobri, para minha surpresa, que escrever um romance parece muito mais com dirigir um filme. Você escolhe o elenco, faz a iluminação, os figurinos, as locações, os efeitos sonoros, efeitos especiais, música.  Você faz tudo.  Não é assim quando se faz um roteiro.”

Essa maneira de colocar a questão recupera o lado literário do cinema, a capacidade de criar artificialmente a sensação de uma realidade em torno da imagem. Não basta o salão do palácio parecer verossímil, é preciso fazer o público acreditar que há um palácio em volta do salão, mesmo sem vê-lo.  Cronenberg diz que o cinema tem algo de escultural, e que sempre precisa ter uma idéia clara do espaço, da posição e dos movimentos dos atores, mas que Tolstoi já fazia isso na literatura, antes do cinema. O difícil do roteiro é reproduzir, com uma escrita “minimalista”, essa impressão de espaço, de realidade física, de modo a que diretor, atores, técnicos, etc., lendo o roteiro, cheguem a um consenso rápido sobre como tudo aquilo deve ser preparado para que, visto na tela, passe aquela mesma idéia para o espectador.


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

3637) Lafferty 100 anos (22.10.2014)





Entre os centenários comemorados este ano, um dos mais obscuros está sendo o de R. A. Lafferty (1914-2002), um dos escritores mais fora-de-esquadro da FC norte-americana.  Nunca foi traduzido no Brasil, ao que eu saiba, a menos que tenha saído por um daqueles livrinhos de papel ruim da Bruguera, Cedibra, etc., nos anos 1960-70, onde muitos anos depois descobri, já sabendo quem eram os autores, livros de Ballard, Delany, Aldiss, Dick. 



A literatura de Lafferty não se parece com a de ninguém.  Ele é o que a crítica de FC chama de “oddball stylists”, estilistas excêntricos, pessoas que pensam de uma maneira diferente, escrevem de modo totalmente pessoal, e usam os temas clássicos da FC (alienígenas, universos paralelos, viagens no tempo, inteligência artificial, etc.) de uma maneira que deixa perplexos até mesmos os autores especialistas nessas vertentes.  São autores personalistas, fora de grupinhos, de escolas.



Lafferty era católico, solteirão, engenheiro elétrico, e só começou a publicar profissionalmente por volta dos 45 anos. Seus primeiros livros tinham uma mistura desnorteante entre o épico e o humorístico, sem preocupação com realismo ou verossimilhança, narrando fabulações que tinham de ser aceitas sem muito exame, como uma história contada ao pé da fogueira.  A tradição dos “tall-tales” (contos folclóricos de exageros e prodígios), a pulp fiction, a mitologia, tudo se mistura nos cerca de 200 contos e 20 romances do autor. (Veja aqui a página sobre ele: http://tinyurl.com/prmp43g.  O verbete na Wikipédia tem numerosos outros links.)



Já comentei aqui o conto Novecentas Avós (em: http://tinyurl.com/klwgb4z), da coletânea homônima.  Neil Gaiman (que é seu fã e tentou imitar seu estilo no conto “Sunbird”, em Coisas Frágeis) diz: “O que me atraiu nele foi a voz narrativa, acho; o modo como ele constrói uma história, diferente de todo mundo. A peculiar justeza de sua visão-do-mundo, e a natureza obscura dela. E as frases.” 


Num texto de 1981, Lafferty disse: “A FC sempre promete mais do que faz, e tem sempre fraudado seus consumidores com produtos de má categoria. Bem, o que ela promete é mágica e deslumbramento, porque uma história de FC ou é uma história que nos deslumbra ou não é nada. Mas esse deslumbramento é uma coisa muito rara, por sua própria natureza, e difícil de produzir. Então, se a FC falha miseravelmente em dezenove casos em vinte, ela é mesmo assim um relativo sucesso. (...)  A FC é a ponte possível entre as ‘duas culturas’, (...) entre a arte viva e a ciência viva, pois ambos os grupos perdem um pouco dessa vivacidade enquanto o afastamento entre os dois continuar existindo”.



terça-feira, 21 de outubro de 2014

3636) "Distraction" (21.10.2014)


Isaac Asimov disse certa vez que, quando a bomba de Hiroshima explodiu, o mundo inteiro percebeu que estava vivendo numa ilha-da-fantasia, e que as únicas pessoas que viviam no mundo real eram os escritores de ficção científica.  Isto não se deve a alguma suposta capacidade dos escritores de FC para “prever o futuro”.  Nem todo escritor de FC está querendo “prever o futuro” quando escreve.  Alguns querem simplesmente criar uma história fantástica, envolvendo coisas que não existem e ambientes que não se encontram neste mundo daqui.  A possibilidade de estarem “profetizando o que vai acontecer um dia” lhes pareceria ridícula. 


Outros são escritores que conhecem de maneira extensa e profunda o mundo atual; sabem o que está ocorrendo na tecnologia, na economia, na política -- ambientes onde coisas novas acontecem o tempo inteiro, e continuam a acontecer por muito tempo.  Nós é que não sabemos; estamos preocupados com nossas vidas, nosso trabalho, e os fatos comuns em nossa cidade.  Só tomamos conhecimento de alguma revolução tecnológica ou política quando ela explode nas manchetes do mundo inteiro.  Alguém aí já tinha ouvido falar na Al-Qaeda antes do 11 de setembro?  Eu não tinha.



Bruce Sterling é um desses escritores que “sabem tudo” que está ocorrendo no mundo de hoje, e seus livros são rotulados como ficção científica por mera comodidade editorial, e porque alguns deles ocorrem num futuro próximo – dez ou vinte anos para a frente.  Tirando isto, são livros que fazem um retrato rico e impiedoso de coisas já latentes no mundo atual.  Distraction (1998) é a história de Oscar Valparaiso, um personagem meio picaresco, surreal, divertido.  Oscar é uma espécie de bebê-de-proveta criado num laboratório clandestino por traficantes-de-bebês colombianos, e adotado por um astro de Hollywood.  Depois de crescido, ele torna-se coordenador da campanha de um Senador.  O livro começa aí, num período em que os EUA estão entregues ao caos, depois que a concorrência com a China “quebrou” o país, reduzindo-o à bancarrota.



Oscar é aquele cara que tem um “jeitinho brasileiro” para tudo; negociador infatigável, cheio de recursos e de armações, que não desiste de nada.  Tem espírito de marqueteiro de campanha misturado com investidor na Bolsa. A história ocorre em grande parte numa Louisiana de pesadelo (o livro é pré-Katrina), e num futuro em que os EUA estão mais caóticos e entregues às milícias do que a Rússia de hoje. A destruição do país foi econômica e política, uma implosão de dentro para fora. É um futuro plausível, surrealista, mais possível a cada ano que passa.


domingo, 19 de outubro de 2014

3635) "Papis et Circenses" (19.10.2014)



Num dos quatro prefácios que fez para Tutaméia, Guimarães Rosa anunciava: “A estória não quer ser história.  A estória, em rigor, deve ser contra a História.  A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota”.  Poderia servir de epígrafe ou comentário para numerosas obras contemporâneas em que fatos históricos aparentemente consensuais e estabelecidos são retomados com o discurso típico da ficção e começam a mostrar-se tão maleáveis e sujeitos a novas luzes que quando retornamos ao compêndio histórico sua verossimilhança parece comprometida até o fim dos tempos.



É o que acontece com as narrativas curtíssimas de José Roberto Torero em Papis et Circenses (Alfaguara, 2014), que descreve em poucos parágrafos as trajetórias de cerca de 98 pontífices (alguns textos englobam mais de um).  Torero tem beliscado a História do Brasil por diversos ângulos comprometedores (O Chalaça, Terra Papagalli, etc.), como que para nos lembrar que ela permanece nua por baixo das vestes fornecidas pelos historiadores oficiais.  Este seu resumo da história dos Papas parece surreal, mas ao mesmo tempo tem os pés na História, até mesmo quando fala de personagens como João VII, que sofreu um aborto durante uma procissão.  (Pois é... era uma mulher.) 



Vários episódios do livro parecem esquetes do Monty Python, mas fui conferir na web, e tudo bate.  Os fatos são basicamente aqueles, as motivações pessoais aqui descritas não devem estar muito distantes das que a História registrou.  Tudo depende da voz narrativa.  A de Torero, embora rápida, cortante, irreverente, não chega a ser a voz do deboche, nem mesmo quando resume num hai-kai o destino de Urbano VI: “Urbano ia na procissão / mas caiu de sua mula, / e bateu a cabeça no chão”.  Papas mais recentes, de Pio XII até aqui (os que coincidiram com meus anos de vida) são retratados com finura e sem mercê.  


É um livro de contos? Microcontos em alguns casos; outros poderiam ser chamados de cartuns verbais.  Recorrendo a teatro, diálogo, narração de desfile de escola de samba, cobertura de TV ao vivo e outros tipos de discurso, o autor arranca a pompa e circunstância da crônica histórica como se arrancasse a vestes hollywoodianas de um pontífice (e de imperadores, nobres, poderosos em geral) e os expusesse nus e crus, dizendo da boca pra fora suas verdadeiras intenções.  É um livro que vai para a mesma prateleira de Vidas Imaginárias de Marcel Schwob, História do Brasil de Sebastião Nunes, The Atrocity Exhibition de J. G. Ballard, História Universal da Infâmia de Borges e o DVD de O Estranho Caminho de São Tiago de Buñuel.  Marromenos.



3634) Palavras inventadas (18.10.2014)




Falei dias atrás na mania que tem esse povo de, toda vez que eu invento uma palavra, vir se queixar a mim que a palavra não existe. Certamente vivem num universo em que, quando Adão e Eva surgiram, já havia um exemplar do Dicionário Aurélio, ou do Houaiss, informando as palavras que poderiam usar.  

Repito mais uma vez: um dicionário não é um Código Civil dizendo o que pode e o que não pode fazer, é mais parecido com um Guia Telefônico, que faz uma longa lista, altamente provisória, de (quase) tudo que existe no momento, para quem precisar.

As palavras novas podem surgir do zero, invenção total, mas às vezes são derivações que termos que já existiam.  Sempre tem alguém que usa uma palavra pela primeira vez e ela pega. Quando é o povo que faz isso, é impossível saber de onde veio, porque só nos damos conta quando a palavra já tem milhões de usuários.  

Temos mais sorte quando são escritores, cientistas, jornalistas, políticos: muitas vezes o uso deles fica registrado, pode ser rastreado até o texto original.

A palavra “feminista”, por exemplo, é atribuída a Alexandre Dumas Filho, em 1873; seu tradutor para o inglês G. Vandenhoff a traduziu por “feminist” e fez uma ressalva: “perdão pelo neologismo”.  

“Factóide” é um termo hoje em voga na política, para designar fatos inexistentes ou irrelevantes que ganham importância através das telecomunicações. A criação é de Norman Mailer, em 1973, em seu livro sobre Marilyn Monroe.  Hoje, todo mundo usa.  Mas houve um dia em que leitores cautelosos fecharam o livro e pensaram: “Acabo de testemunhar uma contravenção. Alguém usou uma palavra que não existe”.

Um artigo no The Guardian (aqui: http://bit.ly/1lwrt9y) examina essas e outras origens de palavras hoje de uso comum no inglês, e algumas também no português.  Tem palavra mais comum do que “internacional”?  O primeiro uso registrado é de 1789 através de Jeremy Bentham, em An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, onde ele propõe o termo “international jurisprudence” para substituir “law of nations”, que considerava equivocado.

"Meme”, palavra hoje tão comum na cultura web, foi criado em 1976 por Richard Dawkin, com um sentido ligeiramente diferente do que tem hoje. Para ele, um meme “representa idéias, comportamentos ou estilos que se espalham de pessoa para pessoa. Pode ser uma dança da moda, um vídeo viral, uma nova moda, um recurso tecnológico ou uma frase de efeito. Assim como os vírus, os memes surgem, se espalham, sofrem mutações e morrem.”  

Hoje, meme (e sua distorção proposital via zoeira, “mene”) é “foto bizarra com legenda humorística superposta”.







3633) "A dançarina e o coronel" (17.10.2014)



A Guerra de Princesa é um dos grandes episódios épicos da história da Paraíba.  Em 1930 o município de Princesa Isabel desafiou o governo do Estado, chefiado por João Pessoa, o qual tentava (muito compreensivelmente, do ponto de vista administrativo) evitar que o algodão paraibano fosse remetido direto para o porto do Recife, sem pagar impostos na Paraíba. A velha animosidade entre os coronéis sertanejos e os burocratas do governo precisou apenas dessa fagulha para pegar fogo.



Princesa pegou em armas, declarando-se “Território Independente”, com hino, bandeira, o escambau. e foi atacada pelas tropas do governo. Em julho daquele ano, o assassinato de João Pessoa pelo líder sertanejo João Dantas, por motivos mais pessoais do que políticos, espalhou a guerra pelo resto do Brasil.  O conflito ganhou outra proporção, os sertanejos entregaram as armas e Getúlio Vargas virou ditador.



Não conheço muitos romances sobre a Guerra de Princesa. Dois deles, contudo, são de Aldo Lopes de Araújo: O dia dos cachorros (Recife: Bagaço, 2005), uma reconstituição fantasiosa e desbocada da campanha, e agora A dançarina e o coronel (Bagaço, 2014) que é focado no mesmo tempo e espaço, mas com uma narrativa muito diferente.  Desta vez, o centro do romance é a chegada de um circo à cidade (que no livro recebe o nome de “Perdição”) e uma porção de fatos inusitados que acontecem.  A guerra é lá fora, vemos os jovens que partem armados, alguns que voltam mortos na carroceria de um caminhão, mas o foco da história é nos personagens presos no interior da cidade cercada. 



Num clima meio O Circo do Dr. Lao de Charles G. Finney (o romance fantástico arquetípico do tema “Circo Chegou na Cidade”), vemos a história do rapaz que faz uma corda apontar para o ar, sobe por ela e desaparece; o avião rebocado por carro de boi; o bebê que passa 40 anos no ventre da mãe; um desfilar de criaturas e situações que ora lembram Garcia Márquez, ora as histórias que minha avó contava a minha mãe muito antes de Garcia Márquez saber o beabá.


O Dia dos Cachorros era um “roman à clef” onde era possível identificar os vultos históricos por trás dos nomes dados pelo autor. A dançarina e o coronel, se usa esse artifício, é em função de pessoas locais que um leitor de fora não tem como reconhecer, nem precisa.  A história se arma como fabulação, cuja verossimilhança é robustecida não pelos paralelos com a História, mas pela sua simetria com os mitos, as lendas, as histórias que todos nós ouvimos na Paraíba e eram todas tão óbvias que antes de Aldo Lopes ninguém achou que valia a pena transformá-las em literatura.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

3632) 5 suspeitas (16.10.2014)




George Alírio de Souza, 38 anos, técnico em eletrônica, casado, três filhos, morador de Goiânia, preocupado há meses com rachaduras que apareceram no prédio, na própria coluna 3 onde ele mora, oitavo andar, e moradores antigos lembram que aquilo não foi bem aterrado, mas o porteiro acha normal, e a sub-síndica garantiu que não há o que se preocupar, todos os prédios do conjunto habitacional apresentam essas correções estruturais de vez em quando e o fato é que até hoje não caiu nenhum.



Sunlya Aranahdi, 21 anos,  estudante, síria, moradora em Damasco, filha única de um casal que não pode nunca suspeitar do que fizeram ela e seu primo Akhazim, numa noite de loucura e lua cheia, junto à sebe que margeia o rio, ele garantindo-lhe que tomara as precauções, que ela não imaginava quais fossem, mas agora passou-se um mês, passaram-se dois, não veio, e Akhazim a evitou na festa de aniversário do seu avô, como se soubesse, como se tivesse já a confirmação do que para ela era apenas uma inquietante e inédita suspeita.



Lúcio Armendáriz Colón, 33 anos, soldador numa fábrica, em Bilbao, tentou filiar-se ao Partido Socialista Operário daquela cidade, e se defrontou com a mais impenetrável burocracia, exigências descabidas, prazos extenuantes, a tal ponto que, de tanto ir à sede do partido, de tanto circular pelos corredores com o protocolo nas mãos, ele notou a roupa, os óculos, os carros dos membros do Partido, e passou a suspeitar que aqueles intelectuais de classe média gostavam de operários o bastante para fundar um partido em sua defesa, mas não o suficiente para permitir que um operário de verdade viesse furar os balõezinhos das suas certezas.



Matilda Canteros, 35 anos, partner de mágico de salão, em Cuiabá, 16 anos de palco e manhas e catimbas, auto-empresariada, malandra mor, quatro noites por semana cumpre seu papel e executa suas manobras, mas depois não dorme, aterrada, porque não faz idéia de como seu novo patrão produz aquelas transformações impossíveis, porque nem ela sabe, e não há pistas, nem mesmo nos bastidores, e ela já começou a pensar que a idade a está tornando meio paranormal.


Zlatan Bavimovic, 45 anos, astrônomo amador, funcionário público, solteirão, morador de Dubrovnik, tem bebido todas nos últimos três anos, preocupando os vizinhos, com quem mantém boa convivência, por seu temperamento alegre e participativo, mas de três anos para cá vive a se queixar de cálculos que não batem, imagens que somem, descontinuidades inexplicáveis na medição do universo pelos instrumentos, e há momentos em que ou os instrumentos estão errados, o que é impossível, ou o Universo é irreal.





quarta-feira, 15 de outubro de 2014

3631) A Vida e os Tempos de Carpente Dias (15.10.2014)





Cap. 1 – De como Carpente tinha esse nome porque o pai gostava de um cineasta e a mãe de uma banda.  

Cap. 2 – De como ele foi filho único de mulher largada do marido (o qual subiu ao céu numa carruagem de fogo, ou algo igualmente definitivo, quando Carpente tinha apenas três anos), encostada na mãe doente, sofrendo com o atraso no pagamento da pensão, e mesmo assim o pirralho teve uma das infâncias mais felizes já registradas no Medidor Celestial do bairro do Catete.  

Cap. 3 – De como anos depois a vida, essa eterna caixinha de surpresas, pôs Carpente na escadaria do prédio da Receita, na Esplanada do Castelo, no momento em que uma moça escorregou no chão da tarde chuvosa, e foi coreograficamente colhida pelos braços dele, e salva de rolar escadaria abaixo, e houve um cambaleio, um roçar de superfícies, um agradecimento balbuciado antes da fuga, antes que ele tivesse tido a chance de dizer algo como “puxa, você ia se estabacar toda lá embaixo”, ou equivalente; portanto, melhor assim. 


Cap. 4 – De como o mero perfume que ficou nas roupas de Carpente lhe explicou com eloquência, na longa noite daquela tarde, que era debalde, pois uma mulher com aquele cheiro não ia querer saber de um cara com aquela barriga.  

Cap. 5 – De como Carpente jogou-se com tal fúria à bicicleta ergométrica que um mês depois sobreveio-lhe um piripaque alerta-alfa, houve um fade-out, e os médicos o beijaram no rosto ao dar-lhe alta um mês depois, diziam que ele tinha ganho a Mega-Sena da loteria médica, e Carpente, sempre cético, achando aquilo corporativismo e auto-promoção, pois a saúde estava cem por cento, muito obrigado.



Cap. 6 – De como mal retornou ao Catete a mãe de Carpente mandou-o sentar na poltrona e prestar atenção porque o assunto era sério, e na mente do nosso herói a alegria de estar de volta não a sua casa, mas ao seu quarto, era indizível, e ele pouco ligou para a revelação, por parte da mãe, dos remédios que Carpente teria que continuar tomando, das coisas que estava proibido de fazer, das comidas que não poderia mais nem chegar perto.


Cap. 7 – De como isso pareceu a Carpente pior do que o hospital, de modo que na primeira chance ele exibiu o certificado de alistamento numa Força de Paz de civis, coordenada por uma ONG de um amigo que ele tinha no Largo dos Leões.  

Cap. 8 – De como a mãe predisse-lhe todos os infortúnios e depois rogou-lhe todas as pragas, mas Carpente, por força desse estratagema, está até hoje circulando entre o Afeganistão, o Iraque e a Síria, viajando com tudo pago, ganhando uma nota preta por ter aprendido a ligar uma bomba à ignição de um carro em trinta segundos.


terça-feira, 14 de outubro de 2014

3630) Palavras criadas (14.10.2014)





Às vezes escrevo uma bobagem qualquer aqui e alguém vem me perguntar se eu tive a “pretensão” de inventar uma palavra que não existe (“websaite” é o caso mais recorrente.)  Como se inventar palavras fosse proibido.  Como se isso fosse algum tipo de extemporismo que somente um verbador crachado tivesse jurisdicção para concomitar.



Quem inventou as palavras que usamos hoje?  Minha aposta: não foi nenhum linguista, nenhum diplomado, nenhum peagadê.  Foram grupos inteiros de pessoas que bateram as palavras antigas no pilão e as transformaram, distorceram, recombinaram, fracionaram, derivaram de formas inesperadas, mas acharam bom, ficaram usando.  E a palavra nova foi entendida, aceita, assimilada, e ficou.  É, hoje, uma dessas palavras velhas que estamos usando.



Qualquer um pode inventar, não sou só eu.  A lista A Word A Day, que recebo diariamente, trouxe a contribuição do leitor Ezra Wegbreit. O assunto da semana era o uso de radicais, prefixos e sufixos: fissi-, tele-, xero-, dactylo-, pluto-, -parous, -logy, -philous, -scopy, -mania.  Todos frequentes em português (não darei o sentido de cada uma por falta de espaço).  Wegbreit (que mora em Massachusetts) recombinou essas peças-de-Lego propondo palavras novas, que mostro agora em tradução direta.



“Fissiologia: estudo das fendas e das divisões (em rochas, instituições, ou na sociedade). Xeróparo: criaturas que dão à luz em lugares secos.  Datilomania: o amor (ou a obsessão) por efeitos de prestidigitação ou truques em geral. Plutologia: o estudo da riqueza e de como obtê-la. Fissiscópio: instrumento (físico ou retórico) usado para separar fios de cabelo (=distinguir entre coisas muito semelhantes entre si).  Teleoscópio: um texto que alguém estuda a fim de determinar o seu propósito pessoal na vida.”


Ele conclui: “Talvez alguém, lendo este email, veja essas palavras e as use na imprensa, e então elas se tornarão palavras reais.”  Não resisti a essa esperança, e dei um passo além: essas palavras encaixa-e-aperta, inventadas por Ezra poucos dias atrás, já estão traduzidas, imagine só, para o Português, essa língua bárbara, essa colcha-de-retalhos de Legos gregos e latinos.  Elas são feitas de pedaços cujo sentido original já conhecemos de outros termos; adivinhar o que dizem não é tão difícil assim.  Alguma delas pode se tornar uma palavra de uso corrente?  Provavelmente não, mas claro que sim.  Qualquer inventismo que consiga se autopropalar e encontrar recolho na mnemória de um povo loquânime ganhará o retimbre de tudo que é personal e colectivo, de tudo que nasce da febricitância partenogenética dos seres vivos chamados “palavras”.


domingo, 12 de outubro de 2014

3629) O efeito folhetim (12.10.2014)




(Dica de leitura: Folhetim - Uma História, de Marlise Meyer, Companhia das Letras)


É terrível, mas precisa se dizer. Uma das coisas que nós, críticos, vivemos a criticar no folhetim em seu sentido mais amplo (incluindo romances europeus em fascículos no século 19, telenovelas de hoje, aventuras de FC seralizadas em revistas, etc.) é seu apelo à sorte e ao azar, ao acaso benigno, à coincidência salvadora, à chance-em-um-milhão que acaba dando certo, a frase que foi involuntariamente escutada por alguém e isso poupou uma vida, um encontro casual num hotel que evita ou provoca a queda de um governo, tudo que significa uma solução caída do céu para que a história vá em frente e ainda consiga fazer sentido.



O folhetim, sendo uma literatura escrita ao correr da pena (era a expressão da época), nem sempre podia voltar no capítulo 10 e eliminar uma cena entre dois personagens, cena cuja existência impede agora o autor de dar uma guinada na história.  Já num livro feito e refeito antes de ser impresso, basta cortar a cena e dar algumas falas àquela velhinha anônima que catava papel no parque, para preparar uma situação futura. 



No folhetim de Tolstoi, Balzac e Dickens, não.  O que era escrito era logo publicado, e ninguém podia voltar atrás para mexer. (Parece que autores mais exigentes preferiam escrever tudo e publicar aos poucos, seguindo o modelo das séries de TV atuais, que só vão ao ar depois de prontas.) Às vezes autores mais despachados, como Ponson du Terrail, se faziam de doidos e recontavam os fatos do passado como lhes convinha, não como já tinham sido contados antes.   (A publicação em livro, após encerrado o folhetim, permitia geralmente remendar esses trechos.)



O hóspede do albergue levanta-se de madrugada para fechar uma janela ruidosa e percebe a tempo os rufiões que rumam para o seu quarto a fim de matá-lo.  Tudo parece ocorrer por uma coreografia precisa do destino, em que basta perder um trem para, ao embarcar no próximo, envolver-se num turbilhão de aventuras ou de horrores.  Na vida real, certas coisas teriam que acontecer inúmeras vezes até que se produzisse a fagulha dramática, a confluência dinâmica dos destinos.  No folhetim, é sempre da primeira vez.  O Deus dos folhetins não gosta de perder tempo.


A coincidência e a conveniência dramatúrgica trabalham (do ponto de vista prático) para poupar tempo ao autor, ou para fazê-lo cortar um nó górdio, ou para manter seu interesse quando está sem saco de escrever. Isso dá a essa narrativa um traçado fluido e aerodinâmico que não teria na vida real, onde os acontecimentos estariam sujeitos a trambolhões, solavancos, descontinuidades e imprecisões, o pedágio que temos de pagar à realidade.