terça-feira, 6 de abril de 2010

1875) Ronaldo Lero (13.3.2009)



Uma das melhores coisas do futebol é o fato de ser ele um pequeno laboratório de experiências mitológicas cujo arco de começo-meio-fim se dá em poucas décadas ou mesmo poucos anos, ao contrário das mitologias da História, as quais geralmente precisam de longos prazos de consolidação. Um jogador bem sucedido tem em média vinte anos de atividade, digamos dos 15 aos 35 anos. Nesse período, criam-se os grandes mitos do esporte, as grandes lendas, os grandes episódios, os momentos únicos (conquanto banais) que nos dão o orgulho de um dia dizer aos netos: “Meninos, eu vi!”

Domingo passado eu estava em São Paulo na tarde do jogo Corinthians x Palmeiras que marcou a estreia de Ronaldo Fenômeno diante da torcida corintiana, mesmo que num desses jogos canhestramente desviados para uma cidade interiorana qualquer – no caso, Presidente Prudente. O Palmeiras ganhava de 1x0. Ronaldo entrou, com aquela barriguinha de peladeiro de fim de semana, mas fez umas duas jogadas de arregalar os olhos, e aos 47 do segundo tempo enfiou um gol de cabeça.

Eu estava ao computador, trabalhando, nem me lembrava desse jogo; mas o clamor que se ergueu na capital paulistana me fez correr à janela com a impressão de que de repente estávamos numa Copa do Mundo e tinha sido gol da Seleção Brasileira. Pistolas-de-7-tiros pipocavam, havia um alarido unânime nos quatro pontos cardeais, e na sacada de um prédio vizinho surgiu um cidadão mais gordo do que o ídolo, esgoelando-se: “Ronaaaaaaldoooo!” E só então eu percebi o que tinha acontecido e liguei a TV, ainda a tempo de vê-lo, sacudindo o alambrado, todos os dentes de fora, eufórico como um menino que faz seu primeiro gol.

Claro que desde então não há outro assunto no futebol brasileiro. Os momentos históricos que Ronaldo já nos presenteou dariam um livro de crônicas e dois álbuns de fotos. Lembro-me de ter visto ao vivo, numa tarde de meio de semana, o momento em que seu joelho estourou num jogo da Inter, durante uma arrancada rumo ao gol, projetando-se para fora como se fosse uma miniatura de Alien, o Oitavo Passageiro. Vi os gols fenomenais, vi o misterioso amarelão da Copa de 98, vi a ressurreição brilhante na Copa de 2002... E agora vi o gol pelo Corinthians, que talvez fique por isso mesmo, mas bastaram esse gol e essa tarde para nos dar de novo aquela vertigem do “impossível acontece” que somente os grandes craques nos proporcionam.

Jornais italianos ironizaram: “A enésima ressurreição de Ronaldo”. Podem rir, “compagni”! Vossas redes não perdem por esperar. Só quem ressuscita “n” vezes são os mitos da estirpe do Rei Artur, de Lampião, de Ulisses. Dados dez vezes por mortos, erguem-se flamejantes e invulneráveis do lugar de onde menos se espera. Ronaldo está gordo, rico, vive na balada, bebe, fuma, falta ao treino. Mas o Mito nele não se esgotou, e a História ainda há de se curvar, outras e outras vezes, à sua presença, e seguirá na direção em que ele for.

1874) O rosto de baixo (12.3.2009)




(Oscar Wilde)

Diz um velho ditado que se quiser conhecer bem uma pessoa, dê-lhe poder. Dê-lhe um poder muito maior do que ela já conheceu na vida. 

Pode ser poder econômico ou político, para que ela possa influenciar a vida de milhares de pessoas; pode ser poder emocional ou psicológico sobre um grupo restrito ou às vezes sobre uma pessoa só. 

Veja como o “poderoso” agora se comporta, porque é tiro e queda. Ele vai mostrar algo de si que ninguém conhecia antes, e ele menos que todos.

A leitura mais imediata disto é que o sujeito que recebe alguma forma de Poder tende a superestimá-lo, e achar que por causa daquilo está acima dos julgamentos alheios, acima do Bem e do Mal, como se diz. Mas não é só isso. 

É que o Poder na verdade é um Papel que recebemos e que devemos interpretar da melhor maneira possível. Um papel diferente do que tínhamos até então. 

O sujeito é sociólogo, vira Presidente da República, vai ter que trocar de papel. O sujeito é escritor, vira diretor de jornal, vai ter que trocar de papel. O sujeito é ator, vira administrador de um teatro, vai ter que mudar de papel.

Oscar Wilde, que entendia de fingimentos e personagens, disse: 

Um homem é muito pouco ele mesmo quando fala em seu próprio nome. Dêem-lhe uma máscara, e ele lhes dirá a verdade. 

Eu leio esta frase da seguinte forma: o que uma pessoa diz é verdade, mas é uma verdade oficial, já sancionada pelo consciente e pelo superego. 

O Papa só diz aquilo que o Papa pode dizer; Seu Manezim da bodega também só diz coisas que não abalem a reputação de Seu Manezim da bodega. Se ambos forem projetados num contexto em que estão liberados para não serem eles mesmos, é bem possível que digam verdades interessantes.

Essas verdades interessantes são coisas que estão apenas no limiar da consciência de cada um. Fazem parte dele, mas estão, por assim dizer, numa perpétua lista de espera, porque não são convocadas para aparecer – só são convocadas as verdades que fazem parte da tal “versão oficial”, da persona pública, do personagem que Fulano e Sicrano se vêem na obrigação voluntária de representar a partir do instante em que abrem os olhos de manhã.

Para algumas pessoas, na juventude, o teatro proporciona isso – a possibilidade de vestir roupas absurdas, fingir que são alguém, dizer o que não se diz, fazer o que não se faz. 

Exercícios de improvisação trazem à tona não propriamente essas verdades que Wilde sugere, mas um tumulto de vontades, de fantasias, de imaginações reprimidas. A mente consciente é que é a máscara, o texto decorado e bem ensaiado, a “versão oficial” de nós mesmos. 

Se nos dão a máscara de (e com ela a obrigação de ser por alguns instantes) alguém que não somos, o que ocorre? Somos obrigados a improvisar, a tirar atitudes da memória e da imaginação. Isso, na pressão emocional de ter-que-dizer-algo, desencadeia um processo de livre associação, faz emergir o inconsciente, o rosto mais profundo.





1873) 200 anos de Edgar Poe (11.3.2009)



Meses atrás, celebrando o centenário da morte de Machado de Assis, publiquei nestas colunas alguns artigos em que comentava meus contos preferidos do mestre. (Nem comentei todos; deixei alguns de que gosto muito para comentar mais adiante, quando faltar assunto.)  
Agora, quero aproveitar e fazer o mesmo com Edgar Allan Poe, um dos meus escritores favoritos desde a infância, cujo segundo centenário se comemora este ano. 

Poe nasceu em 1809 e morreu em 1849. Em apenas 40 anos de vida escreveu uma obra de quantidade e qualidade impressionantes. Meu volume dos Complete Tales and Poems (Vintage Books) tem 1.026 páginas. O de Essays and Reviews (The Library of America) tem 1.472 (excluindo as notas e o índice remissivo). 

Tudo isto escrito à mão, e quase sempre no estado de absoluta penúria financeira, agravada pelo jogo e pela bebida.

Poe foi um precursor, no começo do século 19, de três tipos de literatura que estiveram entre os mais populares do século 20, e sem sinais de decadência no 21: 

1) a narrativa de terror psicológico ou de terror sobrenatural; 

2) o conto policial analítico-detetivesco; 

3) a ficção científica. 

Todos os praticantes de alguma importância nestes três gêneros, durante os últimos 150 anos, leram Poe em algum momento de suas vidas, e lembram bem o que leram.

Sem falar em Poe, o poeta. Pelo menos três poemas dele (para o meu gosto) são clássicos irretocáveis: “O Corvo”, “Annabel Lee” e “Ulalume”. 

Muitos críticos torceram o nariz para seu vocabulário opulento e suas sonoridades exageradas, mas dentro da chamada poesia simbolista os momentos mais altos de Poe não foram facilmente superados pelos que aprenderam com ele. 

Um outro aspecto é o de Poe, o crítico. O jornalismo literário num país provinciano como os EUA de seu tempo era uma espécie de igrejinha laudatória. Escritores se elogiavam mutuamente nas revistas e jornais, e construíam reputações diante de um público embasbacado e sem muitos parâmetros críticos para distinguir quem era bom mesmo, e por quê.

Poe foi um crítico que não apenas estourou sem piedade as reputações alheias como se fossem bolhas de sabão: ele mostrava por que motivo os contos, poemas e romances de A, B ou C não prestavam. 

Dissecava a sintaxe, os processos estilísticos, revelava os barbarismos, os clichês, as encheções de lingüiça. Denunciava os plágios e as imitações; comparava os famosos do momento com os clássicos (desconhecidos do público) a quem esses famosos estavam descaradamente imitando. E assim por diante. 

Foi sua verve de crítico, infelizmente, que ajudou a destruir sua vida, com os muitos inimigos que arranjou (sem falar nos seus defeitos evidentes, claro – a bebida, em primeiro lugar). 

Poe teve uma vida trágica e deixou uma obra que brilha cada vez mais, 160 anos após sua morte. Qual o grande escritor de hoje que ainda será tão lembrado no ano de 2169?




1872) Colecionando autógrafos (10.3.2009)



O que leva uma pessoa a colecionar autógrafos? Em princípio é para dar a si mesma a ilusão de que conhece aqueles “famosos”, ou melhor, de que eles a conhecem. E de fato, um autógrafo com dedicatória é prova de que pelo menos uma vez, por um breve minuto, essas duas pessoas estiveram frente a frente, em carne e osso, no mesmo zero cartesiano do Espaço e do Tempo, e o Famoso olhou nos olhos do Anônimo, sorriu, pegou a caneta e escreveu: “Para Zezim das Couves, um grande abraço e votos de profunda simpatia de Ronaldo Fenômeno...” É o quanto basta para Zezim das Couves calar a boca de meia dúzia de implicantes.

Se for assim (pergunta minha cabeça lógica) de que adianta o mero nome rabiscado, sem dedicatória que identifique a circunstância? O nome rabiscado poderia tê-lo sido a qualquer momento, em qualquer lugar a mil quilômetros de Zezim. O autógrafo pode ter sido achado por Zezim na rua, pode ter sido surrupiado ao verdadeiro dono, pode ser sido comprado... Mas mesmo assim, Zezim não se importa. Consulta seu caderno de registros e diz: “Já tenho duzentos e trinta e sete”.

Pois é. Começam assim as grandes caminhadas da vida: o colecionador-em-botão pega o autógrafo de Nélida Piñon, pega o de Xuxa, e se vangloria: “Já tenho dois!”. Parece que a partir de certo ponto (e um ponto muito próximo do princípio) a coleção de autógrafos cede ao peso do critério quantitativo. Pouca importam as figuras ali representadas. O que conta mesmo, como em toda competição, é ter um a mais que o competidor mais próximo.

É neste ponto que me assalta uma dúvida mais do que legítima. Se o que vale mesmo é ter uma enorme quantidade de autógrafos, bem que Zezim poderia abordar quaisquer pessoas na rua e pedir-lhos. Ou, pelo menos, pedi-los a todos com quem se relacionasse no dia-a-dia; o porteiro do prédio, o taxista, a garçonete, a caixa do Banco, a balconista... “Como é seu nome?... Waldereyde, você poderia assinar aqui pra mim?” Mas algo me diz (ou diz a Zezim) que não vale. O autógrafo tem que ser de alguém famoso, tem que ser de uma celebridade, tem que ser de alguém que está num degrau acima de nós, nunca no mesmo ou num abaixo.

O autógrafo como prova de um encontro pessoal com a Celebridade só tem rival num curioso hábito da cultura roqueira dos anos 1960-70. Entre algumas “groupies” (tietes; garotas que viviam azarando os cantores, os músicos da banda, os técnicos, os contrarregras, ou seja, quem quer que estivesse envolvido com o show, e tivesse espaço vago na cama) havia o costume de, depois de transar com as Celebridades, fazer um modelo de gesso das suas, bem, das suas partes íntimas, e guardá-lo como lembrança. As garotas eram chamadas de “plaster casters” (algo como “as engessadoras”) e viviam comparar suas coleções de troféus. (O filme The Bang Sisters, de Bob Dolman, com Goldie Hawn e Susan Sarandon, conta a vida madura de duas dessas ex-groupies).

1871) Memórias de um datilógrafo (8.3.2009)




(máquina Olivetti, o melhor modelo)


O primeiro prazer era o de retirar a capa de plástico que a protegia da poeira. 

Erguida a capa, elevava-se dali um cheiro de óleo, de tinta, de metal em repouso. Um cheiro que ao longo dos anos aprendíamos a associar ao ato da criação. 

Depois, escolher uma folha em branco, ajustá-la no rolo, erguer a guia metálica, passar a folha por baixo, alinhar as bordas, baixar a guia. Do lado esquerdo, colocar na ranhura correta a hastezinha metálica que indicava espaço 1, espaço 2, etc. O espaço 1, mais apertado, eu usava, para economizar papel, ao escrever para mim mesmo. O espaço 2 era o espaço oficial, o de “escrever para os outros”. O espaço 4, maior de todos, me dava um esquisito prazer na infância, de ficar acionando vezes e mais vezes a alavanca, que fazia girar “bem muito” o cilindro. Dava uma sensação de potência.

Também era possível liberar o cilindro da tirania das engrenagens dentadas que dividiam o espaçamento em números. Basta colocar a alavanca no ponto zero, ou então liberar um botão situado numa das rodas pelas quais segurávamos o cilindro. Então este girava macio, solto, fluido como uma onda, indivisível em “quanta” de espaço. 

E mais ainda quando liberávamos as aletas de prender o papel; este ficava frouxo, ajustável, desajustável, numa liberdade condicional completa. Um bom passatempo era passar a tarde usando pontos ou traços para formar desenhozinhos toscos, cujo destino final era o lixo e a desmemória.

A fita era rubronegra, preta em cima, vermelha em baixo. Quando usada em vermelho, o suportezinho metálico erguia-se demasiado (isso me incomodava um pouco) para que a tecla percutisse a parte inferior da fita. (Quando eu ia bater um texto todo em vermelho, invertia o rolo de fita para que isso não acontecesse o tempo todo.) 

Trocar a fita era uma operação que implicava em rodar toda a fita usada para um lado, retirar aquele carretel, colocar ali o carretel novo, puxar uns 20 ou 30cm de fita, passando-a através das ranhuras do suporte, e prender a ponta no carretel oposto. Era preciso ter cuidado para que o pequeno ilhó próximo à ponta ficasse entre o rolo e uma hastezinha vertical, fendida, para que quando a fita fosse chegando ao final o ilhó ficasse preso a essa haste e a puxasse na direção oposta. Isto fazia o mecanismo girador de fita se inverter automaticamente.

Trocada a fita, hora de limpar os tipos. A percussão contínua na fita de algodão, úmida de tinta, ia enchendo de resíduos as cavidades dos martelinhos. Letras como a, e, o, u, b, d, qualquer letra que tivesse um espaço fechado acabava se transformando num borrão. Era preciso ir de letra em letra com um alfinete, com cuidados de dentista, removendo os detritos. 

Depois, um algodão embebido em álcool, friccionando cada martelinho até deixá-lo limpo, reluzente. 

Depois... Lavar as mãos. Recolocar a tampa do teclado. Apoiar os dedos nas teclas. Começar a viver.





1870) Um romance de mil anos (7.3.2009)



Foi no livro Maravilhas do Conhecimento Humano de Henry Thomas (um dos meus livros de cabeceira aos dez anos) que ouvi falar pela primeira vez no Genji Monogatari, considerado por muitos historiadores o primeiro romance, e que está completando mil anos de existência. Deixo para os críticos a catação-de-lêndeas de questionar “o que é o primeiro” e “o que é romance”. A História de Genji, tradução passável do título japonês, já era mencionada num diário japonês do século 11, e sua origem talvez seja até um pouco mais remota do que supomos. Não tem propriamente uma história, um único arco de acontecimentos com começo, meio e fim. É, a exemplo de tantas obras da Antiguidade, uma sucessão de diferentes episódios ambientados num momento da História e compartilhado por pessoas parecidas. Como as obras de Chaucer, Boccacio, como as Mil e Uma Noites e tantos outros.

O livro conta as aventuras de Genji, uma espécie de “Tom Jones”, filho de um imperador, cuja beleza o leva a uma sucessão infindável de casos amorosos com as mulheres da corte. Um artigo em The Economist comenta as dificuldades do estilo japonês da época de Murasaki: “A prosa japonesa ainda estava em sua infância no tempo de Murasaki, e sua sintaxe pode ser impenetrável. Frases sem sujeito, diálogos sem indicação de quem os proferiu, nomes de personagens que mudam ao sabor das circunstâncias. Genji, por exemplo, é referido ao longo do livro como o capitão, o consultor, o comandante, o grande conselheiro, o ministro da corte, o chanceler e o imperador honorário aposentado”.

Um aviso deste porte é importante, porque se um tal livro me caísse nas mãos eu talvez deduzisse que todos esses nomes se referiam a diferentes cidadãos. Quando pegamos uma obra assim é que percebemos o quanto a nossa ficção em prosa é codificada, bitolada, submetida a restrições de toda ordem a fim de poder ser compreendida por todo mundo. Não é apenas uma questão geográfica, porque o mesmo artigo adverte: “A linguagem de Murasaki já era arcaica e impenetrável cem anos depois de escrito o livro, de modo que as versões do livro que os japoneses têm lido desde o século 12 são anotadas, condensadas, simplificadas e ilustradas. Somente no século 20 quatro escritores japoneses produziram um total de sete versões do livro”.

Um clássico em linguagem opaca, com dimensões proibitivas (a edição inglesa mais recente tem 1.200 páginas), cerca de 400 personagens; e ao mesmo tempo um livro que guarda um encanto qualquer, uma vez que não para de ser reescrito, reinterpretado e canibalizado para o surgimento de outras obras – que vão desde uma sinfonia recém-composta até “mangás” de quadrinhos eróticos. Dizem que um clássico é um livro que não precisa ser lido para ser conhecido. Talvez um clássico seja um holo-livro; cada elemento seu equivale ao todo, e é capaz de gerar infinitas obras que o multiplicam.

1869) Problema seu (6.3.2009)



Eu estava à janela e vi dois porteiros do prédio discutindo por causa de um mal-entendido qualquer. O que estava embaixo da minha janela reclamou em altas vozes. O segundo, que estava mais longe, disse algo que não entendi. O primeiro retrucou: “Problema seu, não! Problema seu!”. Vejam a sutileza deste fraseado. O primeiro “problema seu”, está, digamos, entre aspas. O cara está repetindo o que o outro acabou de dizer. Repetiu-o impensadamente, porque a pureza de estilo o aconselharia a retrucar: “Problema meu, não! Problema seu!” Como ele se limitou a repetir, sem transpor para o próprio pronome, o diálogo depois de completo ficou aparentemente absurdo, mas isto seria facilmente reparado por escrito, onde bastaria colocar aspas na primeira frase.

Existem aspas no discurso verbal? Existe itálico, sublinhado, negrito? Existe, sim – quando entortamos o tom de voz, destacando certas frases do restante do discurso, dando-lhes um tom pomposo, ou irônico, ou depreciativo, de modo a que o interlocutor saiba que não estamos dizendo aquilo, estamos citando alguém que disse aquilo. Essas nuances vocais deram origem aos recursos gráficos que “qualificam” um texto, avisam ao leitor que essas palavras pedem uma leitura diferenciada. Os recursos da palavra impressa são instrumentos para reproduzir a enorme riqueza do discurso oral, com suas nuances, desvios, mudanças de tom e de timbre... Lembrem, amigos: toda a origem da linguagem é a fala, é a expressão oral. O escrito (por mais rico que seja!) veio depois. É simples consequência.

Um dos problemas de quem escreve diálogo num livro é não poder reproduzir toda essa dimensão essencial da palavra falada na vida real: um entortamento de boca, uma súbita engrossada de garganta, um falsete sarcástico, um “stacatto” impositivo. Tudo isto serve de comentário, de nuance imposta ao texto cru que está sendo dito. Freqüentemente, quando transcrevemos uma entrevista na imprensa, somos forçados a fornecer contexto, incluindo entre parênteses expressões como “rindo”, “pausa”, “depois de pensar bastante”, que qualificam melhor o que acabou sendo dito. A Internet e os chats aprimoraram essas rubricas, principalmente no que se refere aos risos, que, quando não são reproduzidos como emoticons, aparecem como “rs rs rs”, “KKKKK”, “rá, rá, rá” e outras variantes.

Faço uma profecia: a Internet criou em poucos anos um novo jeito de escrever, uma “escrita oralizada”, que registra o modo como falamos, usando mais do que a pontuação e os recursos gráficos tradicionais. Há quem goste e quem não goste. É irrelevante. Se nossa civilização sobreviver aos próximos 50 anos (há quem duvide) os recursos gráficos e expressivos do internetês serão assimilados pela linguagem oficial, chegarão às gramáticas, ao texto da Bíblia e ao da Constituição. Aconteceu com aspas, negrito e itálico, aconteceu com os sinais de pontuação; acontecerá com eles. Daqui a 50 anos me acordem e confirmem.