Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 6 de abril de 2010
1869) Problema seu (6.3.2009)
Eu estava à janela e vi dois porteiros do prédio discutindo por causa de um mal-entendido qualquer. O que estava embaixo da minha janela reclamou em altas vozes. O segundo, que estava mais longe, disse algo que não entendi. O primeiro retrucou: “Problema seu, não! Problema seu!”. Vejam a sutileza deste fraseado. O primeiro “problema seu”, está, digamos, entre aspas. O cara está repetindo o que o outro acabou de dizer. Repetiu-o impensadamente, porque a pureza de estilo o aconselharia a retrucar: “Problema meu, não! Problema seu!” Como ele se limitou a repetir, sem transpor para o próprio pronome, o diálogo depois de completo ficou aparentemente absurdo, mas isto seria facilmente reparado por escrito, onde bastaria colocar aspas na primeira frase.
Existem aspas no discurso verbal? Existe itálico, sublinhado, negrito? Existe, sim – quando entortamos o tom de voz, destacando certas frases do restante do discurso, dando-lhes um tom pomposo, ou irônico, ou depreciativo, de modo a que o interlocutor saiba que não estamos dizendo aquilo, estamos citando alguém que disse aquilo. Essas nuances vocais deram origem aos recursos gráficos que “qualificam” um texto, avisam ao leitor que essas palavras pedem uma leitura diferenciada. Os recursos da palavra impressa são instrumentos para reproduzir a enorme riqueza do discurso oral, com suas nuances, desvios, mudanças de tom e de timbre... Lembrem, amigos: toda a origem da linguagem é a fala, é a expressão oral. O escrito (por mais rico que seja!) veio depois. É simples consequência.
Um dos problemas de quem escreve diálogo num livro é não poder reproduzir toda essa dimensão essencial da palavra falada na vida real: um entortamento de boca, uma súbita engrossada de garganta, um falsete sarcástico, um “stacatto” impositivo. Tudo isto serve de comentário, de nuance imposta ao texto cru que está sendo dito. Freqüentemente, quando transcrevemos uma entrevista na imprensa, somos forçados a fornecer contexto, incluindo entre parênteses expressões como “rindo”, “pausa”, “depois de pensar bastante”, que qualificam melhor o que acabou sendo dito. A Internet e os chats aprimoraram essas rubricas, principalmente no que se refere aos risos, que, quando não são reproduzidos como emoticons, aparecem como “rs rs rs”, “KKKKK”, “rá, rá, rá” e outras variantes.
Faço uma profecia: a Internet criou em poucos anos um novo jeito de escrever, uma “escrita oralizada”, que registra o modo como falamos, usando mais do que a pontuação e os recursos gráficos tradicionais. Há quem goste e quem não goste. É irrelevante. Se nossa civilização sobreviver aos próximos 50 anos (há quem duvide) os recursos gráficos e expressivos do internetês serão assimilados pela linguagem oficial, chegarão às gramáticas, ao texto da Bíblia e ao da Constituição. Aconteceu com aspas, negrito e itálico, aconteceu com os sinais de pontuação; acontecerá com eles. Daqui a 50 anos me acordem e confirmem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário