Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 31 de outubro de 2010
2388) A história de Sidney Rosenblum (31.10.2010)
Não conheci meu pai, que morreu quando eu tinha meses de nascido. Minha mãe vendeu a casa em Los Angeles e, como queria ficar perto de minha avó, se transferiu para Lansing, onde eu cresci, até me formar na Michigan State University.
Quando casei, fui ensinar em Nova York, e foi ali que o advento da cultura digital trouxe meu pai de volta.
Ele tinha sido ator de teatro na Califórnia, e trabalhara de forma intermitente no cinema. Minha mãe falava pouco sobre ele. Desde cedo entendi que guardara mágoa pelas suas bebedeiras, suas infidelidades, e queria esquecê-lo. Sempre me disse que ele trabalhava fazendo pequenas pontas, em cenas de multidão, e que sua carreira a sério tinha sido no teatro.
O teatro é mais uma parte da vida do que da Arte, e, como a vida, nada deixa atrás de si. Algumas vezes lamentei que a arte de meu pai (“era um ator vigoroso, tinha presença”, concedia minha mãe) tivesse se perdido para sempre. Então surgiram na minha vida o DVD e o Internet Movie DataBase.
Dediquei-me a pesquisar fichas técnicas e a obter cópias dos filmes em que meu pai trabalhou. Foram dezenas. Foi no máximo um coadjuvante, mas em muitos filmes tinha uma ou outra cena forte, com boas falas. Um taxista, um porteiro conversador, uma testemunha num julgamento, um mafioso, um soldado na guerra...
Vasculhei milhares de jornais da época; nunca um crítico citou o seu nome. Mas dediquei-me a colecionar tudo que ele tinha feito, e por fim tive a idéia de montar uma edição conjunta de todas as suas cenas, ajudado por meus alunos da universidade.
Tenho agora em DVD uma colagem que cobre, até onde estou informado, tudo que as câmaras registraram de meu pai.
Hoje em dia, uso isto como um manual de meditação. Quando estou deprimido, vou direto para 02:35:10, a cena da tempestade em The Sea Wolves. A água banha o convés, o veleiro se agita, o timoneiro grita: “Vamos sobreviver a este inferno!”. Corta para um marujo barbudo (ele), que, agarrado ao mastro, grita de volta, por entre o fragor dos trovões: “Inferno? Nunca me diverti tanto!”.
Quando estou muito autoconfiante, vou para 01:45:30, a cena em que Abraham Lincoln reúne seu conselho em Brothers in Arms. O presidente tem uma longa fala, cheia de alívio pela vitória na guerra, e vira-se, perguntando: “Concorda, senador Robinson?”. Meu pai, de pincenez, chinó e gravata de laço, diz: “As vitórias são como o vento, Sr. Presidente. Deixam uma sensação agradável quando passam por nós e vão embora”.
Outras vezes faço um acesso aleatório, deixo a escolha ao acaso.
Como agora mesmo, quando apertei “Play” e o vi a cena da tumba do faraó em The Sands of Time. Um dos mercenários ergue um archote, iluminando uma cripta selada e pergunta: “E então, Buckley? Devemos abrir esta também?”. Mal vemos o seu rosto nas sombras, mas a voz inconfundível responde: “Não vai dar tempo. O que recolhemos já é riqueza bastante. Vamos embora”.
(Este conto está incluído no livro Histórias Para Lembrar Dormindo, Editora Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2013)
sábado, 30 de outubro de 2010
2387) Os autistas voluntários (30.10.2010)
Greg Egan, um dos grandes escritores da FC de hoje, colocou um capítulo sobre o autismo em seu romance Distress (1995). O tema do livro é outro, e o autismo só aparece no capítulo 6, numa entrevista feita pelo protagonista, um jornalista investigativo. Ele dá voz a um personagem, James Rourke, pertencente a um grupo chamado Associação dos Autistas Voluntários (a história se passa em 2055). Nesse futuro hipotético, foi descoberta uma área do cérebro chamada “área de Lamont”, e se postula que o autismo resulta de uma lesão produzida nessa área por uma variedade de razões. O mais interessante do caso, no entanto, é a existência da própria associação. Descobertas as causas do autismo, esses autistas não querem ser curados. Preferem permanecer do jeito que são.
Diz James Rourke que a mente humana desenvolveu ao longo de milênios de evolução uma capacidade para compor modelos das outras mentes. Somos capazes de imaginar o que os outros estão pensando ou sentindo. Somos capazes de nos identificar com esses sentimentos, desenvolvendo um senso de intimidade, ou de empatia. A evolução foi fortalecida pelos laços monogâmicos que os homens criaram com suas companheiras. Intimidade, empatia e amor são três aspectos básicos do nosso quadro de valores emocionais.
O que ocorre quando um indivíduo – um autista – é incapaz de produzir esses modelos de outras mentes? Segundo o personagem, esse talento não passa, na verdade, de um talento para a auto-ilusão. As pessoas na verdade não sabem o que as outras pensam ou sentem: elas apenas imaginam saber. E como é necessário, por razões evolutivas, que sejamos capazes de manter essa ilusão, que “dá liga” a nossa vida em grupo, somos condicionados a achar que somos capazes de empatia e de compreensão, mesmo quando encontramos provas e mais provas de que isso não ocorre. Mas precisamos dessa ilusão para que a espécie continue evoluindo.
Os Autistas Voluntários do livro não querem alimentar essa ilusão. Eles consideram que não sabem e nunca saberão, intuitivamente, o que se passa nas mentes alheias, e que só podem se relacionar com outras pessoas através de processos mais formais e explícitos, como a linguagem verbal. Para eles, continuar autista é uma recusa a deixar-se enganar. E Rourke faz uma provocação final, ao comparar os Autistas Voluntários com os transexuais. Diz ele que nossa sociedade acha que é justo uma pessoa mudar de sexo para que seu corpo corresponda à sua imagem mental de si mesma. Por que então proibir que pessoas acostumadas a interagir sem emoções, sem empatia, sem intimidade com as outras, mantenham essa condição? Será que mudar de sexo é normal, mas não ter empatia é uma anomalia que precisa ser curada? Um autista pode viver sem abraços, sem olho-no-olho, sem demonstrações de afetividade e ainda assim ser querido e respeitado pelas outras pessoas, e sentir-se em paz consigo mesmo. Por que motivo a sociedade quer lhe negar este direito?
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
2386) Drummond: “Cantiga de viúvo” (29.10.2010)
É um dos poemas mais melancólicos de Alguma Poesia, o primeiro livro de Carlos Drummond, cujos 80 anos de publicação estamos comemorando. (Se o leitor ainda não percebeu, estabeleci o projeto de comentar aqui nesta coluna todos os poemas desse livro, até o final do ano.) É uma pequena história de amor tristonho, ou melhor, um curtíssimo episódio de uma história de amor. O poeta diz: “A noite caiu na minh’alma / fiquei triste sem querer. / Uma sombra veio vindo, / veio vindo, me abraçou. / Era a sombra de meu bem / que morreu há tanto tempo”. O poema começa com um metro menos comum (um octossílabo) e daí em diante sofre uma regressão à redondilha de 7 sílabas, bem confortável, bem folclore, com as irresistíveis aliterações e repetições das cantigas populares (“veio vindo, / veio vindo”).
O primeiro verso difere do restante, também, pela presença deste “minh’alma” tão Romântico ou Parnasiano, com apóstrofo e tudo. Porque daí em diante a linguagem relaxa, torna-se coloquial, modernista, com as heresias típicas do Modernismo, como iniciar a frase com pronome oblíquo: “Me abraçou com tanto amor / me apertou com tanto fogo / me beijou, me consolou”. É o ritmo oral, ritmo de romanceiro, que o poeta voltará a usar inúmeras vezes, e cujo ponto de síntese mais alto ele encontrou, talvez, no “Caso do Vestido”.
Uma primeira estrofe totalmente sombria (a cena não é necessariamente noturna, a noite é da alma; tudo isto pode ocorrer numa casa banhada de sol). Uma segunda mais terna, e até meio impudica (“me abraçou com tanto fogo”). E a terceira e última estrofe diz: “Depois riu devagarinho / me disse adeus com a cabeça / e saiu. Fechou a porta. / Ouvi seus passos na escada. / Depois mais nada... Acabou”. Em termos de linguagem, a linha mais modernista, para mim, é esse ótimo, tão desconcertante e tão coloquial “me disse adeus com a cabeça”.
Que sombra é essa que fecha portas, ao invés de passar através delas, e cujos passos se ouvem na escada? Mistério. Será uma mulher de carne e osso que veio visitar o viúvo, tão casmurro, coitado, para lhe fazer uns agrados? E que ele, até por fidelidade póstuma, identifica com a finada? Drummond tinha carinho pelos grandes solitários (“o sineiro, e a viúva e o microscopista”, em Sentimento do Mundo) e, tão jovem e recém-casado já se dava o luxo de imaginar as fantasias eróticas de um viúvo. A presença viva e atuante dos mortos é um tema constante em sua poesia, com exemplos mais evidentes em “Canção da Moça Fantasma de Belo Horizonte”, “Os rostos imóveis”, etc. Como num filme de Bergman os mortos passeiam por entre os vivos, sem serem percebidos. Vêm quando lhes dá na veneta, e somem sem explicações. Não são fantasmas, são fantasias ou devaneios diurnos, mas não são menos reais por isso. Fazem parte de nossos sonhos, parte de nós, que somos câmara escura para as imagens luminosas em que se tornaram.
quinta-feira, 28 de outubro de 2010
2385) Casal de artistas (28.10.2010)
(Sylvia Plath e Ted Hughes)
Uma vez alguém me falou, com toda seriedade: “Casal de artistas nunca dá certo. Todo artista tem personalidade instável. Para criar em paz, ele precisa da companhia de uma pessoa prática, com os pés no chão, que lhe dê segurança enquanto ele levanta voo, vai em busca das suas fantasias”. Como toda generalização, esta é uma ideia plausível, chega a parecer uma verdade evidente por si própria. Todos conhecemos exemplos que a comprovam. Por outro lado... Conheço inúmeros exemplos de casais de artistas (maluquíssimos, ambos) que vêm dando certo há muitos anos. E fico um pouco desconfiado com esse papo de que ser artista é alguém que precisa “ir em busca de fantasias”.
Lembrei dessa discussão por causa da recente descoberta de um poema de Ted Hughes, que chegou a ser Poeta Laureado do Reino Unido, uma coisa que os ingleses inventaram e que é a maior honraria literária entre eles. Hughes foi casado por anos com a poetisa norte-americana Sylvia Plath. É um dos romances-entre-famosos mais discutidos no mundo literário; infelizmente nunca li uma das muitas biografias de ambos e não sei os detalhes. Só sei que a certa altura, Sylvia, que era meio depressiva, não obstante ser ótima poetisa (ou “poeta” – tem um desses rótulos que as mulheres detestam, mas nunca decoro qual), enfim, Sylvia acabou se suicidando. E durante muito tempo Hughes foi acusado de ser o responsável pela morte dela. Não que ele lhe desejasse a morte, claro, mas (aí é que entra o tema deste artigo) diziam que teria sido melhor para ela ter casado com um sujeito mais sensaborão, mais careta, mas que lhe desse uma segurança emocional que ele, poeta também, sensível e instável também, parecia incapaz de lhe fornecer.
Essas discussões voltaram à tona agora, devido ao poema escrito por Hughes logo após receber a notícia do suicídio de Sylvia. Volta-se a repetir o chavão de que dois artistas juntos não podem dar certo. E no entanto conhecemos inúmeros casais de cineastas, atores, músicos, etc., que vivem bastante bem. Essas lendas têm origem naquela faixa do público para quem a Arte é uma atividade meio interplanetária, meio distante do mundo em que vivem. Pensam que um artista é alguém diferente dos simples mortais. Não é (mesmo que alguns artistas, por ingenuidade ou deslumbramento, tentem se comportar como se fossem). Os artistas têm os mesmos sentimentos, as mesmas inseguranças, os mesmos problemas de todo mundo – ressalvado o fato de que cada artista é diferente dos outros, como cada não-artista também o é. A única diferença do artista é ser capaz de produzir arte, assim como a do futebolista é saber jogar futebol. Fico pasmo quando um artista se suicida e alguém diz: “mas também, era um poeta, portanto tinha sensibilidade...”, como se um médico, uma advogada, um motorista, uma enfermeira, um administrador, uma engenheira, um radialista ou uma professora não pudessem também ter sensibilidade – na vida real.
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
2384) Uma Ópera em 1787 (27.10.2010)
Um artigo de Richard Fairman no Financial Times (http://tinyurl.com/2c2are6) procura imaginar, baseado em documentos de época (cartas, memórias, etc.) como teria sido a première da ópera Don Giovanni de Mozart, que foi apresentada pela primeira vez no Teatro Nacional de Praga, em 29 de outubro daquele ano.
Não sei se as avaliações dele são fundamentadas; em todo caso, dão o que pensar. Hoje uma ópera de alto nível é um evento exaustivamente ensaiado por semanas ou meses a fio por cantores, coro e orquestra. Em 1787, diz Fairman,
“...Mozart ficou perplexo ao chegar em Praga e descobrir que o elenco ainda não estava pronto. Como era costume naquela época, ele havia deixado alguns números musicais para compor depois de chegar na cidade (a abertura, algumas árias e todo o final do segundo ato), talvez para adaptá-los aos recursos dos intérpretes. Mesmo adiando a estreia por duas vezes, parece que a abertura só ficou pronta na véspera do ensaio geral, e a tinta ainda estava úmida nas partituras na noite da estreia”.
Parece mais com o nosso showbiz MPB/Pop do que com o que entendemos por ópera, a menos que a gente lembre que a ópera era o MPB/pop daquele tempo.
Hoje, o imenso repertório de óperas dos grandes teatros do mundo é em cima de partituras e libretos com séculos de idade. Um intérprete profissional que sobe ao palco para cantar Mozart ou Verdi já os vem cantando desde o Conservatório.
Havia uma certa descontração, por cima dessa pressa toda, talvez porque uma ópera nem sempre fosse (como um show de MPB de hoje nem sempre é) um espetáculo formal, tenso, onde nada pode dar errado. Em certos ambientes, o texto escrito (música e letra) era apenas um ponto de partida para improvisos dos intérpretes.
Fairman cita Luigi Bassi, o jovem (22 anos) intérprete do papel título, comparando a estreia e uma performance posterior em Dresden:
“A cena da ceia estava sem a espontaneidade, a liberdade que o Grande Mestre esperava. Em Praga, não cantamos esta cena da mesma maneira duas vezes seguidas. Sem ligar muito para o tempo, trocávamos piadas, piadas novas a cada noite, e ficávamos de olho na orquestra. Tudo era quase que falado, como se estivéssemos improvisando, de acordo com o desejo do próprio Mozart”.
E ele lembra que a audiência não ligava muito, porque apenas uma minoria das 800 pessoas que enchiam o Teatro de Praga iam lá para ouvir a música. O restante ia para “aparecer socialmente” ou para paquerar as cantoras. Não era raro que no intervalo entre dois atos de uma ópera um admirador conseguisse convencer uma cantora a sair com ele, e o resto da apresentação tinha que continuar sem ela.
Já ouvi falar que Shakespeare começava suas peças com cenas impressionantes (um fantasma em Hamlet, bruxas em Macbeth) para fazer com que a plateia se calasse. Talvez ele e Mozart ficassem espantados com a gravidade quase religiosa com que são tratados hoje em dia, logo eles, tão populares, tão pop.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
2383) A Presidência segundo P K Dick (26.10.2010)
O livro de estreia de Philip K. Dick foi Loteria Solar (1955), onde ele misturou a “pulp fiction” de ação & aventura da sua época e as ideias inesperadas que passaria a introduzir no gênero até sua morte em 1982.
No ano de 2023, a escolha do Presidente (chamado de “Quizmaster”) é realizada através de um sorteio entre os ”power cards” dos cidadãos (uma mistura de cartão de crédito e CPF), de modo que qualquer um, em tese, pode ser levado à presidência de um momento para outro.
A criação desse sistema visa a diluir as tradicionais formas de pressão política (partidos, etc.), e reflete um mundo (numa data futura que para Dick era muito mais distante do que para nós) influenciado pela Teoria dos Jogos:
“Minimax, o método para sobreviver ao grande jogo da vida, tinha sido inventado por dois matemáticos do século 20, von Neumann e Morgenstern. Tinha sido empregado na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coréia, e na Guerra Final. Estrategistas militares, e depois financistas, tinham experimentado com essa teoria. Em meados daquele século, von Neumann tinha sido nomeado para a Comissão de Energia Atômica dos EUA, como um reconhecimento da importância crescente de sua teoria. E em dois séculos e meio ela tinha se tornado a base do Governo”.
Essa sociedade começa sorteando bens de consumo para os cidadãos:
“Mas, para cada homem que ganhava um carro, uma geladeira, uma TV, havia milhões que não ganhavam nada. Gradualmente, ao longo dos anos, os prêmios dos sorteios evoluíram de bens materiais para itens mais realistas: poder e prestígio. E, por fim, para o posto mais cobiçado: o de Quizmaster, o que distribuía o poder”.
A influência da Teoria dos Jogos de von Neumann é deixada explícita por Dick; o que não sei é se ele teria, em 1955, lido o conto de Borges “A Loteria de Babilônia”, que é exatamente isto, a história de uma sociedade que começa sorteando prêmios em dinheiro e evolui para o sorteio de “elementos não pecuniários”: benefícios e castigos.
(O conto é de 1941, e não sei se em 1955 já teria sido traduzido para o inglês; sua primeira tradução inglesa em livro é de 1962.)
A coexistência de prêmios e castigos também está presente no livro de Dick, pois o Quizmaster eleito está permanentemente sob a ameaça de robôs assassinos que fazem parte do jogo. Ou seja, ninguém obtém o Poder sem algum tipo de risco.
A ideia de que um governante pudesse ser escolhido por sorteio sugere um sistema de poder tão bem estruturado que é capaz de diluir qualquer idiossincrasia do eleito, e de compensar suas deficiências. O governante seria uma espécie de figura decorativa, “rainha da Inglaterra”, servindo acima de tudo para manter diante da população a ilusão de que “qualquer um pode chegar lá”. Uma Mega-Sena política em que todo cidadão em dia com o Estado está automaticamente inscrito. O Poder pouco influi na sociedade, vira mero objetivo de disputa entre o que o ocupa e os que querem abatê-lo.
domingo, 24 de outubro de 2010
2382) A arte de se defender (24.10.2010)
Nos anos 1990 fui um grande fã do time de basquete do Chicago Bulls. Vivia ligado na TV a cabo assistindo os jogos da NBA, na época em que Phil Jackson era o técnico e Michael Jordan era o craque do time, ladeado por Scottie Pippen e outros. Era um timaço capaz de deslumbrar até um leigo como eu, que não percebo as sutilezas do jogo. A questão é que Jordan fazia coisas que contrariavam as leis da gravidade e do movimento, coisas que fariam até um marciano coçar a cabeça, incrédulo, e rasgar seu livro-texto de Física. O Bulls era um time com a volúpia de atacar – e uma incapacidade genética de se defender. Ganhava jogos por 110x100, ou por 130x120, o que equivale a ganhar no futebol por 4x3 ou 5x4. E houve uma época em que, escaldada por derrotas surpreendentes e dolorosas, a torcida do Bulls (cuja euforia e orgulho vejo hoje reproduzidos na torcida do Barcelona), quando via o time perder a bola, começava um coro ensurdecedor: “Defence! Defence!”. Já imaginaram o Nou Camp inteiro gritando: “Defesa! Defesa!”?
Temos a tendência de considerar que no esporte o belo é atacar, e que é feio defender-se. Por que? Talvez porque o torcedor não-apaixonado está mais interessado em ver um grande jogo, e não na vitória de A ou B. Para ver um grande jogo, é preciso que os dois times ataquem muito. E afinal de contas a palavra “goal” significa “objetivo” em inglês. O jogo existe para que gols aconteçam. Evitar os gols do adversário deve ser encarado sempre como uma segunda prioridade, não como a principal.
E, de um modo geral, para atacar é preciso um mínimo de talento e de tática, e para defender-se, aparentemente, não. Conduzir a bola até a área e acertar o gol requer habilidade individual e coletiva, inclusive para evitar que os defensores interrompam a jogada. Quanto a estes, basta-lhes interromper a jogada e sua função já foi cumprida. Devem existir umas 100 maneiras de fazer um gol, e umas 100 mil de evitá-lo. Prensar a bola, dar um bico pro lado, empurrar para a lateral, jogar para escanteio, chutar pro alto... Qualquer coisa que o zagueiro-zagueiro faça chama-se missão cumprida. Não precisa técnica nem muito talento. Aparentemente.
Há, contudo, quem faça da defesa uma arte. O futebol italiano é quase todo assim. Vi numa revista inglesa uma bela descrição de como as seleções italianas costumam se comportar numa Copa: “Atacadas, elas se retraem como uma mola de metal, e, ao retomar a bola, atiram-se para diante como o bote de uma serpente”. É mais ou menos como jogava o Inter de Milão do técnico José Mourinho, recente campeão europeu, eliminando inclusive o melhor time do mundo, o Barcelona. Em vez do chutão pra cima, uma ocupação sistemática do campo por um semicírculo de jogadores cercando a bola onde ela vá, prontos para tomá-la e desfechar o contra-ataque. Para muitos um futebol feio. Para os gurmês, um raro exemplo de defesa elevada à categoria de grande arte e de refinada estratégia.
sábado, 23 de outubro de 2010
2381) A estética do Por Essa Eu Não Esperava (23.10.2010)
(www.killmydaynow.com)
O folhetim é o reino da surpresa. Um autor hábil sabe manipular os dois tipos: a surpresa para o leitor, e a surpresa para o personagem. Na primeira, o leitor está acompanhando a história, tranquilo, cheio de confiança, quando de repente algo acontece, um fato extraordinário, uma revelação inesperada, e é como se o chão se abrisse por baixo dos seus pés. O leitor fica boquiaberto. A revelação que foi feita altera tudo que ele vinha pensando sobre um aspecto qualquer da história. Muitos leitores são forçados a pousar o livro enquanto reorganizam os pensamentos. Quando é na novela da TV, muita gente espera o intervalo comercial para pegar o celular e ligar para uma amiga: “Você viu o que eu acabei de ver?!”.
As revistas de TV acabaram com esse carrossel de emoções. Hoje, grande parte das pessoas já sabe o que vai acontecer no capítulo daquela noite, e liga a televisão apenas para curtir os detalhes e saborear o já sabido. Isto está sabotando um dos prazeres principais do folhetim, o prazer de ser surpreendido. Mas por outro lado as redes estão cultivando um outro prazer, aquilo que poderíamos chamar a “prelibação”da surpresa. É o segundo tipo de surpresa: quando ela ocorre para o personagem, não para o público. O exemplo clássico disto é o da comédia. Se mostramos um personagem correndo na rua e de repente ele escorrega numa casca de banana e cai, temos uma explosão repentina de riso. Mas, ao invés dessa explosão repentina, temos um riso mais contínuo e mais cumulativo se mostramos o personagem correndo, a casca no chão, o personagem avançando, a casca mais próxima, até o escorregão e a queda. O fato de saber o que vai acontecer leva o espectador a rir por antecipação, sem que isto o impeça de rir de novo quando a queda de fato acontece.
Isto vem ao encontro da famosa teoria do suspense de Hitchcock. Ele dizia que o suspense nasce da onisciência do espectador: ele sabe algo que o personagem não sabe. Se dois homens conversam num restaurante e vimos alguém, antes da chegada deles, colocar embaixo da mesa uma bomba relógio, isto provoca o suspense: a bomba vai explodir? Os homens, sem saber de nada, conseguirão ir embora a tempo? Suspeitarão da bomba e tentarão desarmá-la? A onisciência do espectador o faz considerar várias soluções, ficar hesitando entre diversos desfechos possíveis para a cena. Ou seja, é uma cena com resultado emocional muito mais rico e prolongado do que a mera surpresa repentina.
O folhetim tanto pode nos dar a surpresa brusca quanto a surpresa solidamente construída diante de nós, visando o personagem. Somos capazes de acompanhar as maquinações tenebrosas do vilão, a vidinha sossegada e desprevenida da futura vítima, a atividade febril do herói que tenta evitar o pior... Sabemos de tudo, antevemos tudo. Mas quando o personagem se surpreende, quando cai sobre ele o terrível raio da fatalidade, a surpresa é também um pouco nossa.
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
2380) Os direitos dos autistas (22.10.2010)
(Ari Ne'eman)
Amigos meus postaram um texto no Facebook dizendo: “As pessoas precisam entender que as crianças com necessidades especiais não estão doentes. Elas não procuram uma cura, apenas aceitação”. Eu estava justamente começando a preparar uma coluna sobre este assunto, abordando a questão dos autistas. Autistas são aquelas crianças que por alguma razão têm dificuldade de se relacionar com outras pessoas, demoram a aprender a falar, a andar; são ensimesmadas, têm baixa afetividade, comportam-se de maneira mecânica, têm hábitos extravagantes (embora inofensivos). A variedade de sintomas é enorme.
Muitos autistas crescem e tornam-se funcionais. Este é o termo pragmático, utilitário, egoísta, com que nossa sociedade premia os que se integram nela. Funcionam – como uma máquina obediente. Há pouco, o presidente Obama nomeou um autista para o National Council of Disability (NCD), um painel que assessora medidas na área da saúde pública, escolas, e reformas em geral para favorecer os portadores de deficiência (ver: http://tinyurl.com/2cptc8p). Ari Ne’eman afirmou à imprensa que os autistas precisam de respeito, direitos civis e acesso aos serviços da comunidade; o que não precisam é de piedade e de cura. Os autistas, diz ele, não querem se tornar iguais às outras pessoas, querem ser como são (pois se sentem bem sendo assim) e ter os mesmos direitos. “A comunidade dos autistas”, diz ele, “não tem se focado nessas questões de qualidade de vida e de direitos civis, porque tem sido distraída por questões como a causa da doença e as possíveis curas”.
O autismo consiste, em grande parte, na incapacidade de ter empatia, de criar um modelo mental dos pensamentos das outras pessoas e reproduzi-lo, identificando-se com elas. Mesmo os autistas funcionais têm dificuldade em perceber duplos sentidos, ironias, gozações, etc. Um autista tende a interpretar ao pé da letra tudo que vê. Um autista tem dificuldade em perceber quando alguém está blefando; e é praticamente incapaz de blefar. Autistas não sentem necessidade de falar com outras pessoas com os olhos nos olhos (isto não tem uma função especial para eles, como tem para nós); não têm disposição para o que se chama de “small talk”, conversar bobagem na companhia de outras pessoas, apenas para criar um momento de camaradagem, de comunicação sem compromisso. E os autistas (diz Ne’eman) querem continuar sendo assim.
O autista está integrado num movimento de “neurodiversidade”, em torno da ASAN (Autism Network International - http://www.autisticadvocacy.org/) . É o movimento dos que têm uma mente diferente da nossa. E que se sentem no direito de tê-la. Diz Ne’eman: “A vida diária num mundo organizado para as outras pessoas é, para nós, como atravessar um campo minado. Há um grande número de regras sociais que não compreendemos. E as consequências para quem viola essas leis são terríveis”.
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
2379) A Presidência segundo William Tenn (21.10.2010)
(o livro onde o conto aparece)
Comentei aqui o conto de Isaac Asimov, “Democracia Eletrônica” (1955) em que o processo eleitoral no futuro consistirá em encontrar um eleitor perfeitamente mediano para escolher, sozinho, o melhor presidente para os EUA. É possível que Asimov tenha se inspirado no conto “Null-P”, de William Tenn, publicado em 1950 na revista Worlds Beyond. Tenn foi um dos melhores satiristas da FC dessa época, principalmente através das revistas Galaxy e The Magazine of Fantasy and Science Fiction, que trouxeram uma abordagem mais literária e menos tecnológica aos temas da FC.
O conto narra como, após a II Guerra Atômica, o mundo está feito em pedaços e os EUA tentam se reorganizar politicamente. Tanto a Costa Leste quanto a Costa Oeste desapareceram, e “uma vez que tudo que restava do país era o Meio Oeste, o Partido Democrata não existia mais”. A insegurança é total; e então um hospital descobre, durante exames de rotina, um indivíduo estatisticamente normal, chamado George Abnego: “Por uma combinação de circunstâncias não mais notável do que a que produz um ‘royal straight flush’ no pôquer, o físico de Abnego, sua psique e outros atributos variados haviam produzido essa criatura lendária: alguém estatisticamente mediano. (...) Ele tinha casado na idade exata, no ano, mês e dia, em que segundo os estatísticos um americano médio casava; escolhera uma mulher com uma diferença de idade exatamente igual à média estatística; sua renda declarada era a exata renda média de um americano naquele ano”. E assim por diante.
Abnego é eleito presidente dos EUA. A explicação filosófica é que “o homem do século 20 escapara das estreitas fórmulas filosóficas gregas, o bastante para ser capaz de imaginar uma lógica não-aristotélica e uma geometria não-euclidiana; mas até então não tivera a temeridade intelectual de criar uma política não-platônica”. Platão definira a política como o governo dos melhores, e durante milênios a única divergência era sobre quais seriam os critérios para definir essa “melhoridade” e quais os métodos de escolha. Ninguém questionara o princípio básico, até o partido lançador de Abnego propor o conceito do “não-melhor”, da “não-elite”, do governo do médio. Tenn sugere que indícios atuais deste processo são as campanhas que insistem o tempo inteiro para que os candidatos afirmem ser iguais a todo mundo, tomem cafezinho, beijem bebês, etc.
Abnego reelege-se sem parar. Segue-se um período de imensa calma política, em virtude da sua incapacidade de tomar decisões. Ele escolhe ministérios igualmente medianos e inexpressivos. A corrida armamentista desaparece junto com as inovações tecnológicas. Quando uma fonte de energia se esgota, eles regridem à solução anterior. “Os americanos”, diz Tenn, “sempre conhecidos por sua loucura, tinham finalmente se especializado em cretinismo”. Por fim ele se torna Presidente da Terra. Milênios depois, são os cães que estão governando o planeta.
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
2378) “Modesty Blaise” (20.10.2010)
Conversando estes dias a respeito de adaptações de quadrinhos para o cinema, me veio à lembrança este filme de Joseph Losey que vi por volta dos 16 anos, e que é baseado numa HQ britânica. Na época, o filme me pareceu a encarnação da Modernidade. Cenas extravagantes e meio surrealistas, narrativa rápida, entrecortada, descontínua (o que para mim, na época, era sinônimo de genialidade). Eu tenho uma, hmmm, cópia para colecionadores; botei no DVD e assisti. David Thomson comenta que o filme é “divertido, mas desnecessário”, e que significava “uma ruptura de Losey com a seriedade, mas sem demonstrar senso de humor”. É isso mesmo.
Modesty é uma espécie de espiã informal que o governo britânico usa como despiste para evitar o roubo de uma valiosa coleção de diamantes. Como é de se esperar, a ação pula de Londres para Amsterdam, daí para a África árabe, de lá para ilhas tropicais... Peripécias se sucedem, sem a necessidade de explicações ou de encadeamento lógico. Como numa HQ despretensiosa (e como em qualquer filme em que o sensorial se sobreponha ao intelecto), as paisagens e as situações surgem pelo seu potencial de ação ou de imagem, e pouco importa se a narrativa as pede; mas são dirigidas por um cineasta mais propenso à reflexão do que à ação. Há cenas divertidas: um agente apertando a campainha de uma casa com a ponta do guarda-chuva, e a casa explodindo; o gangster-dândi (Dirk Bogarde) tendo que escolher entre duas lagostas para o almoço e queixando-se: “Decisões! Decisões! Quero as duas”; Modesty trocando de roupa, exibindo um escorpião tatuado na coxa, e dizendo: “Tenho um ferrão na cauda”; o gangster bebendo um drinque enorme onde nada um peixinho dourado; no final, amarrado ao chão do deserto, ele implora: “Champanhe... champanhe...” São algumas das cenas marcantes, e as únicas que eu lembrava.
Modesty Blaise é uma tentativa de fazer um cinema pop britânico, algo que a série James Bond estava conseguindo com sucesso. Mônica Vitti, a estrela de Antonioni, é um dos charmes do filme, com aquela sua boquinha “vem cá”. O ano de 1966 foi a era da “Swinging London”, quando a capital inglesa, com Beatles e Rolling Stones à frente, era a Meca do pop. Modesty compartilha o espírito descontraído, ilógico e “banda vuô” de filmes como Help de Richard Lester. Também tem algo de Blow Up, que Antonioni estava rodando em Londres, ao mesmo tempo. É curioso que os filmes de Losey e Antonioni compartilhem dois detalhes que chamam a atenção: um plano de detalhe de uma mão fazendo prestidigitação (em Modesty com uma bolinha, em Blow Up com uma moeda), e um mímico com rosto pintado de branco, que aparece com destaque em Modesty e, em grupo, em algumas cenas cruciais do filme de Antonioni. Prestidigitação e teatro são duas palavras chave para o entendimento da angustiada fábula existencialista de Antonioni, e da divertida e inconsequente HQ animada de Losey.
terça-feira, 19 de outubro de 2010
2377) O Ulisses espanhol (19.10.2010)
Ao indicar o Ulisses espanhol, surge uma situação curiosa: o livro escolhido por Cohen é Larva, de Julián Rios, de 1983. Ora, isto é mais de meio século após o livro de Joyce. O Modernismo é considerado um momento típico das primeiras décadas do século; será que somente nos anos 1980 a Espanha tomou conhecimento disto?
Em parte, é possível. Desde a Guerra Civil nos anos 1930 a Espanha mergulhou na ditadura franquista que manteve o país num clima cultural fortemente hostil a manifestações de modernidade. Talvez um concorrente espanhol possível para o livro de Rios fosse o romance de Felipe Alfau Locos: a Comedy of Gestures, de 1928 (um romance de contos interligados, muito elogiado pela crítica), mas este foi escrito em inglês, e publicado nos EUA em 1936.
Em todo caso, Cohen escolheu o livro de Rios, e justifica assim esta escolha:
“Talvez seja mais adequado considerá-lo o Finnegans Wake espanhol. A reescritura do mito de Don Juan feita por Julián Rios é acima de tudo um romance com a linguagem. Milalias, vestido de Don Juan, vai em busca de Babelle, vestida de Bela Adormecida, pelo meio de um baile à fantasia, numa mansão decadente em Londres. Os comentários sobre as identidades dos convivas mascarados acabam dando lugar à crítica sobre o poder de mascaramento das palavras – o modo como elas eclipsam significados mais antigos por trás de seu uso cotidiano. A façanha verbal de Rios é igualada apenas pela dos seus tradutores, Suzanne Levine e Richard Francis, o que prova mais uma vez que a verdadeira natureza de um romance antecede o ato de sua escrita, sendo uma espécie de forma ideal buscando concretizar-se em todas as línguas do mundo”.
Sendo uma obra modernista tardia, temporã, Larva se beneficia de toda uma cultura acumulada de décadas, não apenas em obras literárias seguidoras de Joyce, mas também da fortuna crítica que analisou seus processos, e da sua recepção por parte dos leitores, algo que acaba pavimentando o caminho para que obras futuras sejam aceitas com mais naturalidade. Ainda assim, inquietou por causa de seus trocadilhos multilinguísticos, seus neologismos, suas mutações verbais, sua narrativa sem foco fixo.
Juan Goyttisolo, ele próprio um grande experimentalista, comentou que Larva era “um terremoto literário e linguístico” que inquietou a literatura espanhola oficial, porque “revelava, através de ilações e de jogos que magnetizam o leitor, conhecimentos e leituras de cuja seiva criadora o nosso Parnaso está carente”.
Rios, que em geral ajudou nas traduções de seus livros, costumava dizer que “a tradução é uma nova oportunidade de melhorar o original; nenhum livro é perfeito”.
domingo, 17 de outubro de 2010
2376) Drummond: mais “Lanterna Mágica” (17.10.2010)
(Itabira, MG)
Nos oito poemas curtos de “Lanterna Mágica” (em Alguma Poesia, seu livro de estreia de 1930), Carlos Drummond, como um turista dos anos 1920 que chega de viagem, usa essa engenhoca-de-época para projetar na parede imagens coloridas dos lugares por onde andou. O terceiro poema, “Caetés”, é uma minúscula vinheta de cinco linhas, meio irrelevante, na qual ele inclusive repete praticamente a mesma imagem que usara no poema anterior, sobre Sabará, ao dizer: “A igreja de costas para o trem”. (Em Sabará, é a cidade que está “atrás daquele morro, com vergonha do trem”, e “só as torres pontudas das igrejas não brincam de esconder”).
O poema IV, Itabira, promete pelo título autobiográfico algum tipo de epifania pessoal, mas é seco como uma foto em preto-e-branco: “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê. / Na cidade toda de ferro / as ferraduras batem como sinos. / Os meninos seguem para a escola. / Os homens olham para o chão. / Os ingleses compram a mina. / Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável”. Este poema é uma espécie de anotação para o que é talvez o primeiro grande poema de CDA sobre sua terra natal, “Confidência do Itabirano” (em “Sentimento do Mundo”).
O poema V, “São João Del-Rei”, volta a evocar o onipresente trem, ao se abrir com a pergunta: “Quem foi que apitou? / Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho”. Mais uma vez Drummond fotografa a imobilidade das cidadezinhas mineiras: enquanto Sabará era “entrevada”, São João Del-Rei é “paralítica”. Lá, “o Rio das Velhas lambe as casas velhas”; aqui, as ruas estão “cheias de mulas-sem-cabeça / correndo para o Rio das Mortes”. Embora a intenção do poeta pareça ser (como a de qualquer turista que fotografa) registrar o que mais lhe chama a atenção em qualquer paisagem, captar o que lhe parece mais único e mais característico, vê-se que acaba registrando sempre as mesmas coisas. As cidades de Minas lhe parecem todas parecidas.
Meu fragmento preferido neste poema-conjunto é o de número VI, “Nova Friburgo”. Consta de apenas uma frase: “Esqueci um ramo de flores no sobretudo”. Isto é tudo que o poeta anota sobre a cidadezinha fluminense. Esta frase me marca de um modo especial porque o Padre Massote, diretor da Escola Superior de Cinema da UCMG, onde estudei, certa vez a citou erradamente numa aula sobre roteirização. Disse ele: “Às vezes uma única imagem é o bastante para captar o espírito de um ambiente. Drummond tem um poema sobre Nova Friburgo que tem apenas uma frase: ‘Um cravo na lapela’”. O fato de Massote confundir as frases é menos importante do que o fato de as duas frases terem uma certa equivalência simbólica ou poética. Tanto o ramo de flores no sobretudo quanto o cravo na lapela parecem evocar um ambiente de uma certa formalidade no trajar, de um certo cavalheirismo meio fora de moda, de uma certa afetividade reprimida. E a lição dele, via Drummond, estava coberta de razão.
sábado, 16 de outubro de 2010
2375) Um Nobel para Vargas Llosa (16.10.2010)
O peruano Mario Vargas Llosa acaba de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Quando essas coisas acontecem, minha primeira reação é lamentar as inúmeras vezes em que me sentei com um livro do autor laureado, li 50 páginas e larguei para ler um livro de outro cara. No “boom” da literatura latino-americana, nos anos 1970, comecei a comprar tudo quanto era livro traduzido dos autores latinos. Pelas minhas mãos passaram livros de Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Manuel Scorza, Carlos Fuentes, Lezama Lima, Manuel Puig, Miguel Ángel Astúrias, Juan José Arreola, e provavelmente outros que não lembro agora. Todos ótimos escritores, claro, mas, por alguma razão misteriosa, os únicos que me ficaram na preferência até hoje foram Garcia Márquez, Borges, Cortázar e Bioy Casares.
Vargas Llosa é um caso especial, porque tentei sem sucesso ler La ciudad y los perros (em português, “Batismo de Fogo”), suas memórias de estudante num colégio militar peruano, mas o livro que acabou caindo nas minhas graças foi Pantaleão e as visitadoras (que dizem ser uma obra menor), uma sátira muito divertida sobre um oficial do exército, muito conservador e emproado, a quem cabe a (in)grata tarefa de fornecer prostitutas para os soldados acampados num posto avançado na selva. As situações são hilárias, o personagem é impagável, e Llosa ainda consegue um “tour de force” com seu modo de narrar a maior parte do livro num esquema aparentemente impossível de manter por muito tempo, invertendo diálogo e descrição.
Nunca li o famoso A Guerra do Fim do Mundo, que Llosa escreveu sobre a Guerra de Canudos, porque sempre achava que primeiro precisava reler Os Sertões (o que só fiz recentemente), e depois porque muitos amigos meus detestam o livro, consideram-no uma interferência indevida em assuntos íntimos e privados de nossa História e da nossa Literatura. Dividido, fui ler outras coisas. Como por exemplo o divertidíssimo Tia Júlia e o Escrevinhador, que é para mim o grande livro dele. É uma história meio autobiográfica, sobre a paixão de um rapaz pela própria tia (que ele insiste em dizer: “Você não é minha tia, é apenas a viúva do meu tio”), alguns anos mais velha. Ele se apaixona por ela e insiste até convencê-la a casar; mas isto é apenas o começo das dificuldades. O caso de amor é intercalado com os capítulos dos melodramas radiofônicos escritos por um radialista que reencarna os folhetinistas do século 19 e os autores de pulp fiction dos EUA. O livro dá um retrato veraz do que era o Peru nessa época. (Houve uma desconchavada adaptação para o cinema, com Keanu Reeves e Barbara Hershey, transpondo a ação para Nova Orleans, já que o público dos EUA não se interessa por histórias passadas em países que ele não sabe onde ficam.) Não sei se o Nobel foi justo, sei que os dois livros que li de Vargas Llosa podem ser relidos até o fim da vida.
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
2374) Os mineiros e os anões (15.10.2010)
O resgate dos 33 mineiros chilenos nos lembra as individualidades ocultas por trás dos números. Quando ouvimos falar que 33 mineiros estão soterrados não é muito diferente de sabermos que 2.900 pessoas morreram no ataque ao World Trade Center. É um número. Quando ouvimos notícia sobre uma guerra, ficamos sabendo que 20 mil soldados morreram. No outro dia, vem uma correção: não foram 20 mil, foram 21 mil. Que diferença faz, para nós, essa mudança da algarismos? Nenhuma. O Globo de hoje (quarta, dia 13) traz uma página inteira sobre os mineiros, fazendo algo que a imprensa aconselha a si mesma há décadas: “personalize a notícia”. Ao invés de estatísticas, conte histórias individuais. No fim da história, quando você fornecer um número, pode ser que algum leitor mais inteligente pegue aquela história e multiplique pelo número: “são 33 casos como este, são 20 mil casos como este”. Mas se começar a discussão pelo aspecto quantitativo, o leitor não vai ter o que multiplicar. Morreram 20 mil ou 200 mil, tanto faz.
Dizem que na história tradicional de Branca de Neve os sete anões (que, aliás, também trabalhavam com mineração) eram um grupo indiferenciado. Uma porção de anões sem nome e sem rosto. Foi o talento de Walt Disney e seus redatores que decidiu dar a cada um deles um nome e uma característica: daí que temos Mestre, Zangado, Soneca, Dunga, Feliz, Atchim e Dengoso. Disney sabia que a riqueza de possibilidades e de situações (dramáticas ou cômicas) se multiplica quando temos um grande número de individualidades bem marcadas. Uma situação qualquer envolvendo Zangado e Soneca vai ser desenvolvida, necessariamente, de um modo diferente do que se fosse a mesma cena envolvendo o Mestre e Atchim. Roteiristas de cinema fazem isso há milênios.
À medida que os mineiros emergem do túnel vertical, já se tornaram tão individualizados quanto os anões de Branca de Neve. Este aqui é o mais velho, com mais de 60 anos; aquele ali é o mais novo, com 19. A mera percepção desses números faz com que cada um deixe de ser um “número” e ganhe um traçozinho de individualidade. Tem um que tem duas namoradas. Outro que já sobreviveu a três desmoronamentos. Tem um que é o escritor do grupo. Outro que estava em seu primeiro dia de trabalho quando ocorreu o acidente. Tem um que é boliviano; e outro cujo filho estuda Medicina. À medida que surgem, vão se transformando num nome, num pequeno parágrafo de biografia, num rosto sisudo ou sorridente. Nunca saberemos quem são, como pessoas, mas tornam-se personagens visíveis, cada um com suas peculiaridades. É para personalizar números que a imprensa existe, para contar dramas coletivos através de retratos individuais. É mais fácil com sete anões do que com 33 mineiros, e mais fácil com estes do que com 20 mil mortos de uma guerra, mas mesmo com meia dúzia pode-se dar uma pequena amostra do drama individual a ser multiplicado pela frieza das cifras.
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
2373) Livro Eletrônico Incrementado (14.10.2010)
A Feira do Livro de Frankfurt está recolocando em novos termos a evolução do livro eletrônico e o eterno debate sobre “o Fim do Livro de Papel”. A tendência agora é o que eles chamam de “Livro Eletrônico Incrementado” (“enhanced e-book”). Já vi uns protótipos dele por aí, de diversas fábricas e modelos. As variações são muitas, como em todo produto novo que está tateando o mercado. É um tablete leve, achatado, com uma tela e alguns comandos, e uma memória onde a gente pode descarregar arquivos digitais com milhares de títulos.
Ali você tem a chance de ver o livro em diversos formatos, com as opções de mudar o estilo da fonte, o tamanho da fonte, a cor da fonte, a cor do fundo... Eu sou meio fetichista visual, e gosto de variar o aspecto da minha página. Quando escrevo estes meus artigos, por exemplo, raramente estou usando letras pretas sobre página branca (por acaso, é justamente o que estou usando agora; mas sou honesto, e não mentirei). Em geral gosto de usar (por exemplo) fundo preto com letras brancas em fonte Courier New; ou letras amarelas em fonte Paladino Linotype sobre fundo vermelho; ou letras azul-marinho em fonte Georgia sobre fundo vermelho-claro; e assim por diante. Por que isso? Ora, porque isto me dá uma sensação de enorme liberdade visual, depois de quatro décadas contemplando letras pretas sobre papel branco.
O Incrementado, no entanto, traz muito mais do que isto. Ilustrações à pampa, é claro, sem que isto modifique o preço do livro. Profetizo que o livro eletrônico será o grande mercado para as obras sobre pintura, História da Arte, etc. – imagine só, todas as obras do Louvre, em alta resolução, com opção de zoom nos detalhes, num livro bem levezinho, e pelo mesmo preço dum livro comum! Além disso, o Livro Eletrônico incrementado terá hipertextos com ensaios críticos, históricos, biográficos. Links para fontes específicas na Internet onde será possível baixar arquivos ou informações atualizadas sobre o assunto do livro. Clips de entrevistas com o autor ou com críticos literários; trechos de filmes ou de séries de TV baseadas na obra. Pequenas ilustrações animadas, grande atrativo para os livros infantis. Brincadeiras interativas que darão ao livro um perfil quase de jogo.
Tudo muito bom, mas por alguma razão o gutemberguiano em mim olha isto com desconfiança. Porque na verdade não é o livro que está se expandindo, é o mundo do videogame e da TV que estão se expandindo para dentro do livro. O livro eletrônico é do mesmo tipo sanguíneo que essas coisas, e vai virar um “recebedor universal”. Eu não coloco em momento algum a questão do eletrônico versus papel. O problema aqui é texto versus imagem. Em vez de nos preocuparmos com o fim do livro de papel, deveríamos nos preocupar com o encolhimento do Texto, da Literatura, espremida por mídias mais intuitivas. Estamos inventando, passo a passo, o Livro Para Quem Não Sabe Ler.
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
2372) Colégio de Brotos (13.10.2010)
Oscarito é a cara da chanchada brasileira, e uma coisa que ele fazia muito bem era macaquear o discurso pomposo, fosse científico ou político. No começo de Nem Sansão nem Dalila ele aparece como um professor universitário dando uma aula sobre o Tempo, e utilizando-se do Paradoxo de Zenão, que Jorge Luís Borges cita a três-por-dois em sua obra. Em Colégio de Brotos de Carlos Manga (1956), ele é Agapito, o zelador de um colégio interno. Em sua primeira aparição na tela, está fantasiado de professor, empunhando uma caveira, e dando para uma sala vazia uma aula sobre as teorias de Lombroso, para quem um criminoso tinha sempre um conjunto característico de traços faciais.
Colégio de Brotos foi sucesso naquela época, e um dos meus filmes preferidos quando garoto. Dele eu lembrava, acima de tudo, uma cena que se passa no museu do colégio, quando Oscarito entra lá à noite e é ameaçado seguidamente por uma armadura medieval, estátuas de guerreiros primitivos, e uma múmia. No fim descobre-se que era o vilão, infiltrado no colégio para roubar umas moedas raras, mas mesmo na época eu ficava me perguntando se o vilão se vestia de múmia e ficava à espera, para o caso de alguém entrar ali de madrugada.
Essas incoerências são a coisa mais encantadora do filme B, uma vez que os filmes A têm na equipe alguém para cortar tudo que não tenha uma explicação lógica. Vai daí que as chanchadas da Atlântida tinham de vez em quando essa saborosa imprevisibilidade. Por exemplo: o filme se passa num colégio interno, onde estudam rapazes e moças, todos dormindo nos respectivos alojamentos (assim como os professores); mas eles chamam aquilo o tempo todo de “universidade” e “faculdade”. E à noite alunos e professores ficam dançando numa boate (visivelmente dentro do colégio) ao som de uma orquestra!
Sérgio Augusto, no indispensável Este Mundo é um Pandeiro (Cia. das Letras, 1989), diz que o filme se inspira em Escola de Sereias (“Bathing Beauty”, 1944, filme de George Sidney com a anfíbia Esther Williams). O filme de Manga é uma chanchada curiosa, porque não se passa no Rio, ou pelo menos em nenhum momento se fala no Rio. Como o astro do filme é Francisco Carlos, a ação se divide entre o colégio, com boate e tudo, e uma emissora de rádio onde ele faz carreira. As únicas cenas externas são os jardins do colégio, onde rapazes e moças caminham sobraçando livros e cadernos, e, à noite, sentam nos gramados, ouvindo Francisco Carlos cantar serenatas. A noção de espaço e de tempo do filme B, principalmente o brasileiro, merece uma tese de mestrado. No caso de Colégio de Brotos, não sei se alguma universidade brasileira dos anos 1950 se parecia com aquele ambiente, e por que motivo é chamada de “colégio”. Há rapazes de terno, e há rapazes de pulôver, inclusive Augusto César Vanucci e Daniel Filho fazendo papéis, bem diluídos, de quase vilões. Por um lado, uma chanchada típica; por outro, um filme único e curioso.
terça-feira, 12 de outubro de 2010
2371) A Presidência segundo Asimov (12.10.2010)
Isaac Asimov tem um conto, “Democracia Eletrônica”, sobre o possível futuro das eleições presidenciais nos EUA (o conto está traduzido na antologia Sonhos de Robô, Editora Record).
Num futuro distante, as eleições presidenciais são controladas pelo grande computador Multivac. A família de Norman Muller está em polvorosa, porque o Estado de Indiana, onde eles vivem, será escolhido para a eleição. Esta é a primeira estranheza que o autor infiltra no conto.
Vemos a expectativa da família, e o mau humor do sogro de Norman, que resmunga o tempo todo, relembra os bons velhos tempos, critica as eleições atuais: “Disseram que o sistema acabaria com os políticos radicais, o desperdício de dinheiro dos contribuintes na campanha e os joões-ninguém sorridentes, vendidos e anunciados para o Congresso ou para a Casa Branca...”
E de pista em pista vamos descobrindo como os presidentes são eleitos nesse futuro. Asimov explica que tudo mudou após o advento dos computadores, e principalmente do Multivac, o sistema que “tinha meia milha de comprimento e três andares”, e “cinquenta técnicos não paravam de andar pelos corredores, dentro de sua estrutura”. Pois é, amigos... o conto é de 1955, que poderíamos chamar A Era dos Computadores-Dinossauros.
E logo ficamos sabendo que ele, Norman Muller, foi escolhido para ser O Eleitor. Agentes do Serviço Secreto ocupam sua casa, cortam as comunicações, e no dia marcado o conduzem para um lugar secreto. Ele é plugado a sensores que avaliam sua pressão sanguínea, batimento cardíaco, condutividade da pele, ondas cerebrais, etc. , enquanto ele responde perguntas sobre uma infinidade de assuntos, desde coleta do lixo até ser contra ou a favor de um incinerador central.
Mas... por que Norman? Resposta: porque Multivac examinou os dados da população dos EUA, e considerou que ele era “...não o mais esperto, o mais forte, ou o mais sortudo, mas o mais representativo desse ano”. O mais mediano. O eleitor padrão. E é de acordo com as opiniões de Norman que o próximo Governo será eleito.
No fim do interrogatório, Norman é liberado, e pergunta timidamente quem foi o candidato que ele acabou de eleger. Respondem-lhe que é segredo, e que terá de esperar a proclamação oficial. O que me lembra a velha história do coronel nordestino – o morador do sítio entrega-lhe a cédula em branco, o coronel preenche, bota na urna, o morador pergunta em quem votou e o coronel diz: “Oxente, meu filho, que pergunta é essa?! O voto é secreto!!!”.
O conto de Asimov ilustra um velho ideal científico: a perfeição total na arte da projeção estatística. Dizem os Ibopes que numa pesquisa de recorte bem feito (idade, classe social, região, etc.) chega um ponto a partir do qual a resposta é a mesma, com 2 mil, 200 mil, 2 milhões de pessoas.
Asimov se pergunta se conseguiremos um dia encontrar a Amostragem Perfeita. Tema atualíssimo... abordado há 55 anos.
domingo, 10 de outubro de 2010
2370) Nova viagem à Lua (10.10.2010)
Pesquisando a história remota da FC no Brasil, buscamos algo que se assemelhe aos livros que Julio Verne ou H. G. Wells estavam publicando na Europa, e ficamos decepcionados quando não os encontramos. Os livros de Verne e Wells eram produto de sociedades muito diferentes da nossa. Surge aqui um ou outro título concebido no mesmo espírito (como o prova, por exemplo, O Doutor Benignus, de Augusto Emilio Zaluar), porém o mais normal é encontrarmos obras que tratam aqueles temas com outro espírito, outras intenções, e afeitas às expectativas de outro público.
Nessa linha, uma curiosa referência teatral é a opereta em 3 atos Nova Viagem à Lua, de Artur Azevedo e Frederico Severo. Artur Azevedo foi um dos principais autores teatrais de sua época. Sua peça Amor por anexins, escrita aos quinze anos, é montada ainda hoje. Esta opereta foi lançada em 1877, quando ele tinha 22 anos, com música de Le Coq, e foi representada pela primeira vez no Teatro Fênix Dramática, no Rio.
Trata-se de uma comédia de costumes, típica do autor, em que a viagem à Lua é apenas o elemento desencadeador de situações cômicas. A ação do primeiro ato passa-se em Ubá (MG), e os dois últimos na Corte (o Rio). Luís, o filho do fazendeiro Arruda, de Ubá, quer casar com Zizinha, filha do velho Santos, que é um antigo amigo de Arruda, embora agora os dois estejam com as relações estremecidas. Santos diz que só cederá a mão da filha a Luís se este convencer o pai a vir à Corte (ao Rio de Janeiro), coisa que ele jurara nunca mais fazer.
Machadinho, amigo de Luís e membro da sociedade carnavalesca “Netos da Lua”, fica sabendo do entusiasmo do velho Arruda com a leitura de Da Terra à Lua de Julio Verne, e convence o fazendeiro de que é possível construir um foguete e ir à Lua. Pede dinheiro emprestado e manda construir uma alegoria carnavalesca em forma de foguete, que fotografa e mostra a Arruda para convencê-lo de que está tudo pronto para a viagem.
Arruda é levado ao Rio, narcotizado e, ao acordar, está no meio de um baile carnavalesco na sede dos “Netos da Lua”. Os rapazes o convencem de que está na Lua e que o filho dele foi coroado Rei da Lua sob o nome de Luís I. O Dr. Cábula, um intelectual de discurso comicamente empolado, colabora na farsa. Depois, com o aparecimento do velho Santos, tudo se esclarece; os dois velhos retomam a amizade e Luís casa com Zizinha.
Podemos desenvolver a partir daí uma teoria da vocação carnavalizadora (inclusive no sentido proposto por Bakhtin) que a narrativa brasileira (literatura, cinema, teatro) pratica com os temas tratados a sério pela Europa e EUA. Não é privilégio brasileiro: na Europa de 1870 certamente havia “farsas selenitas” nesse estilo. Mas essa carnavalização é coisa nossa, não há dúvida. Na chanchada cinematográfica, no filme B, no teatro, nas letras de MPB, os temas da FC são geralmente pretexto para a sátira, a paródia, a brincadeira, em que tudo acaba num baile à fantasia.
sábado, 9 de outubro de 2010
2369) O gorila invisível (9.10.2010)
Dois grupos de voluntários recebem um vídeo de cerca de um minuto, mostrando dois times de basquete (um time vestido de branco e o outro de preto) que fazem um “esquente” na quadra, passando a bola uns para os outros. O primeiro grupo simplesmente assiste o vídeo. O segundo grupo recebe a instrução de contar o número de vezes que a bola é passada pelo ar ou repicando no chão.
A certa altura do vídeo, uma pessoa vestida de gorila entra na quadra, para, dá murros no peito e sai pelo outro lado. Todos os voluntários do primeiro grupo viram o gorila. Os do segundo grupo, que tinham a tarefa de contar os passes, não o viram, mesmo estando com os olhos pregados na tela no momento em que ele aparecia.
A conclusão inicial dos pesquisadores é que a concentração na tarefa (e a obrigação de ficar contando mentalmente) drena a maior parte da atividade mental dos voluntários. Quando exibiram novamente o vídeo e eles viram o gorila, deram um pulo de susto.
Isto parece ter algo a ver com uma coisa que já me disseram: se você pedir algo a uma pessoa que está falando ao telefone, ela lhe obedece sem prestar atenção. Garotos esperam o telefone tocar e o pai atender para, alguns instantes depois se aproximar e pedir: “Pai, me dá dez reais”. O pai, dialogando através do fio, puxa a carteira do bolso, dá o dinheiro e continua conversando. É como se a parte principal da nossa cabeça estivesse totalmente concentrada numa tarefa e deixasse as demais no piloto automático.
Também me vem à memória uma espécie de enigma ou “pegadinha”. Você avisa o interlocutor que vai propor um problema e diz algo como: “Um trem sai da estação de origem com 30 pessoas. Na próxima estação, descem 11 e sobem 23. Na outra, descem 20 e sobem 40. Na outra, descem 35 e sobem 14. Na outra, descem 18 e sobem 16...” E assim por diante. No final, pergunta: “Em quantas estações o trem parou?”
Note-se que em momento algum foi dito à “vítima” que iríamos perguntar com quantos passageiros o trem chegou na estação final; mas essa sugestão foi induzida pela própria mecânica da narrativa. Alertada (falsamente) pelo entra-e-sai de passageiros, a vítima começa a fazer contas rapidamente, e esquece de observar quantas paradas fez o trem.
Este último truque é o que eu chamo “The Agatha Christie Effect”. Como sabem os leitores da Dama do Crime, ela é especialista em distrair a atenção do leitor, principalmente quando, por uma questão de “fair play”, está lhe dando informações essenciais, que mais tarde serão usadas por Hercule Poirot ou Miss Marple para deduzir quem foi o criminoso. O trem está indo de estação em estação diante dos nossos olhos, mas, distraídos na contagem dos passageiros, esquecemos de reparar quantas vezes ele parou.
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
2368) Os Detetives Selvagens (8.10.2010)
Este imenso, inesgotável romance de Roberto Bolaño é (entre outras coisas) a crônica de um movimento poético de vanguarda. Só quem já participou de algo parecido sabe o quanto esses movimentos, mais do que literários, são “vivenciais”. Mais do que preocupadas em escrever e teorizar as pessoas estão ligadas em viver a vida intensamente: beber, farrar, namorar, travar polêmicas intermináveis, descolar dinheiro de uma maneira ou de outra. É o que fazem os “visceral realistas”, ou “real visceralistas”, ou “realistas viscerais” da Cidade do México na década de 1970, em que se concentra a maior parte do livro.
O romance começa sob a forma do diário de um jovem poeta que adere ao grupo, Garcia Madero. Segue-se uma longa segunda parte, que ocupa a maior extensão no livro, com depoimentos de pessoas que pertenceram ao grupo, ou que entraram em contato com seus membros. A terceira e última parte é a conclusão do diário de Garcia Madero. Este diário é de uma saborosa verossimilhança; quem quer que tenha escrito poesia a sério, na adolescência, irá se reconhecer em numerosos momentos. Garcia Madero é um desses garotos que leem muito e sabem a diferença entre um epitalâmio e uma ode sáfica. Adere ao grupo com entusiasmo, vive preocupado porque tem 16 anos e ainda é virgem (se bem que, depois de perder esta condição, ele trata de botar a contabilidade em dia com um zelo de fanático), e é ele quem nos dá as primeiras impressões sobre os poetas que são na verdade os protagonistas do livro, Arturo Belano (alter-ego do autor) e Ulises Lima. Dois rapazes escolados, radicais, cheios de expedientes, irreverentes, angustiados. E que nunca vemos “por dentro”. Só os enxergamos, no livro inteiro, pelos olhos das outras pessoas.
Na parte do meio, cada um dos depoimentos sobre os poetas é uma fatia da vida do depoente. São pequenos contos que chegam a ter 15 ou 20 páginas, o que torna o livro um “romance de contos” como outros autores já tentaram. São poetas, acadêmicos, críticos literários, boêmios, homossexuais, turistas, esposas de poetas, jornalistas, gente da América e da Europa, gente de todos os tipos. Cada um deles conheceu Belano ou Lima em diferentes circunstâncias, e narra esse encontro na primeira pessoa, como se estivesse falando para um gravador. Muitos destes textos poderiam ser lidos como contos isolados, sem relação com o livro.
Em momento nenhum Roberto Bolaño cita os poemas de seus poetas, os quais, na teoria e no discurso, são de um radicalismo de fazer inveja a André Breton. Ao invés de tentar produzir poemas à altura da fúria surrealista deles, Bolaño simplesmente pula por cima e nos deixa intuir, obliquamente, que tipo de poesia indivíduos como aqueles estariam produzindo. A palavra “detetives” está no título para despistar. O título mais fiel para este grande livro poderia ser Os Passos Perdidos. A Idade de Ouro. A Poesia em Pânico. Doce Pássaro da Juventude.
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
2367) Noites de Autógrafos de Reinaldo (7.10.2010)
Não entendo por que motivo ninguém leva os humoristas a sério. Vejam o caso do carioca Reinaldo, por exemplo. É um intelectual, conhecedor da melhor literatura, músico de jazz, mas o público só pensa nele como aquele sujeito de óculos que se veste de flamingo-cor-de-rosa no programa Casseta & Planeta. A própria imprensa, se exigida a apontar um intelectual na família, provavelmente indicará algum dos seus irmãos, como o escritor e tradutor Rubem Figueiredo ou o jornalista Cláudio Figueiredo, autor de uma ótima biografia do Barão de Itararé. E no entanto, e no entanto...
Noites de Autógrafos, o novo livro de Reinaldo (Editora Desiderata, Rio, 2010) é um passeio pelo mundo-pesadelo dessas ocasiões aparentemente festivas, em que o autor de um livro se submete à mortificação pública de ficar sentado, escrevendo dedicatórias para desconhecidos que ele logo descobre com horror tratar-se de amigos de infância, irreconhecíveis por trás de uma barba ou da ausência dela. Não há tormento maior para um autor do que perguntar, timidamente: “E o teu nome, como é?...”, apenas para ouvir algo como: “Ora, sou Fulano, teu editor, que publicou esse livrinho aí”.
Sem falar nos muitos casos em que a gente troca Leila por Lélia, Edilson por Adilson, coisas assim. Pensando nisto, as livrarias adquiriram o hábito de, na venda do livro, perguntar o nome do comprador e anotá-lo num papelzinho, para socorrer o infeliz. Mas basta o sujeito ter tomado uns chopes com o autor cinco anos atrás, para afirmar, confiante: “Não precisa! Somos amigos.” E não se sabe qual a decepção pior, a do autor ao constatar que não lembra ou a do fã ao descobrir que não é lembrado.
Parece que estou fazendo cerca-lourenço, mas não: o livro de Reinaldo é exatamente para explorar todas as gafes e desencontros possíveis nessas ocasiões. Só que, aqui, com autores consagrados. Stevenson escreve: “Para o dr. Jekyll, excelente figura humana...” enquanto Mr. Hyde brota do smoking do outro, facão em punho. Kafka contempla a barata morta diante da mesinha, junto à placa: “Esta livraria foi dedetizada”. Dom Quixote e Sancho pressionam Cervantes: “Autografa logo, porque o cavalo e o burro ficaram mal estacionados”. Jorge Luís Borges, cego, espera em vão numa mesa no centro de um enorme labirinto vazio. Machado se alegra ao ver um esqueleto: “Brás Cubas! Quem é morto-vivo sempre aparece!”. Ariano Suassuna, pedindo um autógrafo a Luís Fernando Verissimo, faz um longo discurso armorial diante do silêncio do colega.
São 61 cartuns com estes e outros personagens envolvendo-se em pequenas confusões e perplexidades diante de um livro a ser autografado. (Meus preferidos são os que envolvem Clarice Lispector, Ivan Lessa, Thomas Pynchon, Millôr Fernandes, Sartre, Lima Barreto). Todos com o traço anguloso e preciso de Reinaldo, todos revivendo a antiga arte de fazer da tragédia alheia a nossa comédia.
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
2366) Palavras incômodas (6.10.2010)
Por que motivo a gente gosta de umas palavras e não gosta de outras? As razões variam em cada caso, mas o fato é que palavras assim nos dão uma sensação de incômodo, de desconforto, quando por pressa ou por falta de um equivalente mais palatável temos de enfiá-las numa frase.
Veja-se por exemplo a palavra “disponibilizar” e seus derivados, tão empregada hoje, principalmente em referência à internet, para exprimir a ideia de algo colocado à disposição de qualquer pessoa que se interesse. Se eu digo que estou colocando um texto meu à disposição do público, esta frase não dispara nenhum alarma. Mas todas as (raras) vezes em que escrevi “estou disponibilizando um texto”, a mera visão desse polissílabo numa frase de minha autoria me produziu um calafrio de horror, como se visse uma centopeia sobre a minha escrivaninha. Por que? Acho que porque me parece uma palavra desajeitadamente longa, e além disso uma palavra pretensiosamente metida a erudita. Pertence a uma longa família de palavras pomposas vindas do jargão administrativo/gerencial: disponibilizar, operacionalizar, viabilizar, etc. Palavras que se formam à maneira alemã, somando prefixos e sufixos para dar pequenas torções do sentido. O verbo “dispor” sugere o adjetivo “disponível” e este adquire a comprida cauda que o transforma em “disponibilizar”. Por mim prefiro dizer que “estou colocando à disposição”, ou, caso seja preciso dizer uma palavra somente, que estou oferecendo, expondo, entregando, distribuindo, qualquer coisa que se aplique melhor ao contexto.
Outra palavra terrível que está na moda: “pertencimento”. A toda hora tem alguém dizendo: “Este projeto pretende aumentar a sensação de pertencimento das comunidades rurais...” Neste caso a origem parece ser o inglês, o termo “belonging”, que exprime essa ideia de pertence a algo contexto mais amplo. Temos o verbo pertencer mas não temos o substantivo correspondente, e traduzimos ao pé da letra “belonging” por “pertencimento”. Eu preferiria dizer integração, assimilação, vínculo, união... Há várias alternativas, cada uma mais indicada a um diferente contexto.
Mais um termo do jargão administrativo-gerencial: “empoderamento”. Quem diabo autorizou a circulação dessa coisa horrenda? Mais uma vez trata-se da tradução-às-cegas de um termo inglês, “empowerment”, que exprime a ideia de conferir maior poder a uma pessoa, seja o mero poder advindo de um novo cargo, seja uma atitude mais positiva que brota do próprio indivíduo, tornando-o mais dinâmico e mais capacitado. A única desculpa possível é que faltava ao idioma uma palavra isolada, baseada no mesmo radical (“poder”) capaz de exprimir esta ideia. O resultado, porém, ficou antieufônico e pouco evidente – é uma dessas palavras que precisam ser relidas e avaliadas para que a gente possa deduzir o que significam. Péssima receita para uma palavra não-literária, que se pretende de uso corrente.
terça-feira, 5 de outubro de 2010
2365) Drummond: “Lanterna Mágica” (5.10.2010)
“Lanterna Mágica” é na verdade um conjunto de pequenos poemas numerados que Carlos Drummond incluiu no seu primeiro livro, Alguma Poesia, que está completando 80 anos. São oito poemas ao todo, sendo cinco deles sobre cidades mineiras, um sobre Nova Friburgo (RJ), um sobre o Rio de Janeiro e outro sobre a Bahia. A expressão “lanterna mágica” sugere a projeção de imagens coloridas, de “slides” com cartões postais projetáveis na parede, mostrando imagens de pontos turísticos do mundo inteiro.
O primeiro poema, “Belo Horizonte”, lembra em alguns aspectos o famoso “Noturno de Belo Horizonte” de Mário de Andrade (1924). O poema de Mário, ao que parece, surgiu da famosa visita que ele fez à capital mineira juntamente com Oswald de Andrade, Tarsila do Asmaral e Blaise Cendrars, servindo-lhes de cicerone para conhecer as cidades históricas de Minas. Hospedado no Grande Hotel de BH, o grupo paulista recebeu a visita de jovens intelectuais mineiros, entre eles Drummond. E a BH do curto poema de Drummond (“Debaixo de cada árvore faço minha cama, / em cada ramo dependuro meu paletó. / Lirismo. / Pelos jardins versailles / ingenuidade de velocípedes”) mantém algo do clima lírico e melancólico do longo poema de Mário (“Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos / calma do noturno de Belo Horizonte... / O silêncio fresco desfolha das árvores / e orvalha o jardim só.”). Retorna no poema de Drummond uma das figuras de linguagem preferidas dos modernistas, o contraste por justaposição entre o solene e tradicional (“versailles”) e o banal e moderno (“velocípedes”).
O segundo poema, “Sabará”, é o mais longo do conjunto, e de certo modo o que tem mais autonomia. Todo ele se trava nesse choque de imagens entre o antigo e o moderno. Drummond transforma o ambiente em personagem, dando às coisas inanimadas alma e emoções de seres vivos: “A dois passos da cidade importante / a cidadezinha está calada, entrevada. / (Atrás daquele morro, com vergonha do trem”). Nesta linha uma sutileza, pois não fica claro se a cidadezinha tem vergonha de ser avistada pelo trem, ou se se envergonha dele. A maioria dos modernistas fazia esses contrastes para ironizar o passado; Drummond ironiza os dois lados.
Este poema é um dos poucos em que ele emprega repetidamente o “português errado” que Mário usava com tanto liberalismo e descontração: temos “jinelas”, “Penção”, “Juaquina”, “maginando”, “quede”. Retorna aqui o “forde” usado em “Também já fui brasileiro”, num tempo em que essa marca era sinônimo de automóvel. Drummond faz um retrato visual da cidadezinha entre montanhas, e na penúltima estrofe deflagra a ruptura modernista: “O presente vem de mansinho / de repente dá um salto: / cartaz de cinema com fita americana”. Como o “forde”, a “fita” americana é símbolo do futuro, ou melhor, do Presente que encurrala as cidadezinhas refugiadas atrás dos morros.
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
2364) A entrevista de Vandré (4.10.2010)
A TV Globo exibiu a entrevista feita por Geneton Moraes Neto com Geraldo Vandré, feita no dia em que este completou 75 anos.
Foi ótimo para desmentir os boatos que ouvi nas últimas décadas: Vandré ficou doido, Vandré aderiu aos militares, Vandré está com depressão profunda, Vandré perdeu a memória, Vandré está incoerente.
Pelo contrário. O autor de “Ventania” se tornou um cara ensimesmado, solitário, introvertido. Isto se soma à idade e à desilusão com a música para dar uma imagem diferente do cantor passionário e grandiloquente que arrastou multidões. Mas Vandré mostra em toda a entrevista ser um sujeito tranquilo, articulado, de vez em quando bem-humorado e brincalhão.
Ajuda a desmontar algumas das lendas que se criaram em torno dele, recusa com sensatez e bons argumentos a pecha de “antimilitarista”, rejeita o ambiente de showbiz que se criou para a MPB de hoje.
Foi uma das entrevistas mais sensatas e equilibradas que vi de um músico brasileiro, mesmo discordando de algumas de suas opiniões. Vandré só parece um excêntrico porque não exibe o comportamento dos compositores e cantores de hoje, cheios de frasezinhas espirituosas, caras e bocas, humildade fingida, etc. É um cara que olha de frente para a câmara e diz: “Perdi a guerra, paciência, a vida continua”.
Vandré era de uma faixa radical da MPB que unia de um lado a visão-do-mundo marxista e nacionalista, e do outro a curiosidade pelas formas populares e “folclóricas” de escrever e compor.
Suas melhores canções pertencem a esta linha: “Disparada”, “Caminhando”, “Cantiga brava”, “Aroeira”, “Requiem para Matraga”, “Porta Estandarte” e tantas outras. Mas suas canções de amor, bem trabalhadas e de melodias intensas, são igualmente fortes: “Quem quiser encontrar o amor”, “Pequeno concerto que virou canção”, etc.
Seu talento ninguém discute. O que se discutiu na época foi sua aposta kamikaze no confronto ideológico. Compositores igualmente engajados (Chico Buarque, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, etc.) souberam recolher as velas e se manter à tona na hora da tempestade. Vandré tentou beber a tempestade. Não conseguiu.
Vandré diz que a única coisa da MPB que lhe chamou a atenção nas últimas décadas foi o Movimento Armorial. Isto mostra que seu esquerdismo pode ter se atenuado com o tempo, seu nacionalismo não. O Armorial não faz a música que ele fazia, mas certamente faz a música que ele gosta de ouvir.
Vandré não aceitava a guitarra, não aceitava o Tropicalismo, as roupas de plástico, a parafernália pop. Perdeu a guerra, porque foi esse modelo que se impôs na música brasileira. Não como modelo único (ainda há espaço para numerosos seguidores do próprio Vandré), mas como modelo predominante, preferido pela mídia e enriquecedor.
Vandré tem suas razões para balançar a cabeça e dizer: “Tô fora”. O que fez é inapagável, definitivo, mas ele não quer voltar a fazê-lo. Vandré foi o artista de um momento único, e passou com esse momento.