domingo, 18 de julho de 2010

2284) Drummond: “Infância” (3.7.2010)



O segundo poema de Alguma Poesia (livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, completando 80 anos de publicação) é dedicado ao poeta e tradutor Abgar Renault, seu amigo de juventude, e intitula-se “Infância”. Diz ele: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre mangueiras / lia a história de Robinson Crusoé / comprida história que não acaba mais”. A infância interiorana está toda contida aí nessa paisagem doméstica, brasileira, provinciana, onde aparece como sintoma da Modernidade invasora o livro de Defoe, a literatura estrangeira, o mundo civilizado... A lembrança certamente é autobiográfica, mas Drummond articula a presença de Robinson no poema revertendo os signos: o menino lê a história do náufrago numa ilha de aconchego e segurança.

A segunda estrofe diz: “No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu / chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / café gostoso / café bom”. Os “longes da senzala” referem-se à Abolição, coisa de poucas décadas atrás. No tempo deste poema, o Brasil estava cheio de ex-escravos, o que não era muito diferente de estar cheio de escravos. Mas cada escritor dessa época guarda saudades culinárias das Tias Nastácias que serviam seu café, o qual surge como mais um sintoma de aconchego doméstico e familiar. E a preta velha de Drummond é uma parenta próxima da Irene de Manuel Bandeira, da Fulô de Jorge de Lima, da Guilhermina de Augusto dos Anjos, da Mãe-Preta de Raul Bopp e por aí vai. Negras acolhedoras e confortáveis como uma poltrona velha.

“Minha mãe ficava sentada cosendo / olhando para mim: / -- Psiu... Não acorde o menino. / Para o berço onde pousou um mosquito. / E dava um suspiro... que fundo!” O poeta assume aí o papel intermediário entre criança e adulto. Porque criança mesmo é o irmão mais novo, que até um mosquito pode ameaçar; ele não, ele lê livros de aventuras! E que sutileza esta linha repetida na íntegra, tintim por tintim: “Minha mãe ficava sentada cosendo”, a mãe congelada no âmbar da rotina e depois no da memória.

Última estrofe: “Lá longe meu pai campeava / no mato sem fim da fazenda. // E eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. O paralelismo entre a infância e a literatura está contido nas duas coisas sem fim (o mato da fazenda, a história de Robinson). E esta enigmática afirmação final, afirmação óbvia se a considerarmos apenas no plano da nostalgia açucarada tipo “ai-que-saudades-eu-tenho-da-aurora-da-minha-vida”. Mas não é absurdo vermos nessa lembrança dourada um lado negro e soturno finalmente domado e redimido na vida adulta. Porque o menino que lia Robinson queria com todas as forças abandonar aquele mato (como abandonou), até mesmo para, naufragado e sozinho na angústia dos 28 anos, ter o direito de ter saudade da roça de onde fugiu.

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