Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 18 de julho de 2010
2284) Drummond: “Infância” (3.7.2010)
O segundo poema de Alguma Poesia (livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, completando 80 anos de publicação) é dedicado ao poeta e tradutor Abgar Renault, seu amigo de juventude, e intitula-se “Infância”. Diz ele: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre mangueiras / lia a história de Robinson Crusoé / comprida história que não acaba mais”. A infância interiorana está toda contida aí nessa paisagem doméstica, brasileira, provinciana, onde aparece como sintoma da Modernidade invasora o livro de Defoe, a literatura estrangeira, o mundo civilizado... A lembrança certamente é autobiográfica, mas Drummond articula a presença de Robinson no poema revertendo os signos: o menino lê a história do náufrago numa ilha de aconchego e segurança.
A segunda estrofe diz: “No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu / chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / café gostoso / café bom”. Os “longes da senzala” referem-se à Abolição, coisa de poucas décadas atrás. No tempo deste poema, o Brasil estava cheio de ex-escravos, o que não era muito diferente de estar cheio de escravos. Mas cada escritor dessa época guarda saudades culinárias das Tias Nastácias que serviam seu café, o qual surge como mais um sintoma de aconchego doméstico e familiar. E a preta velha de Drummond é uma parenta próxima da Irene de Manuel Bandeira, da Fulô de Jorge de Lima, da Guilhermina de Augusto dos Anjos, da Mãe-Preta de Raul Bopp e por aí vai. Negras acolhedoras e confortáveis como uma poltrona velha.
“Minha mãe ficava sentada cosendo / olhando para mim: / -- Psiu... Não acorde o menino. / Para o berço onde pousou um mosquito. / E dava um suspiro... que fundo!” O poeta assume aí o papel intermediário entre criança e adulto. Porque criança mesmo é o irmão mais novo, que até um mosquito pode ameaçar; ele não, ele lê livros de aventuras! E que sutileza esta linha repetida na íntegra, tintim por tintim: “Minha mãe ficava sentada cosendo”, a mãe congelada no âmbar da rotina e depois no da memória.
Última estrofe: “Lá longe meu pai campeava / no mato sem fim da fazenda. // E eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. O paralelismo entre a infância e a literatura está contido nas duas coisas sem fim (o mato da fazenda, a história de Robinson). E esta enigmática afirmação final, afirmação óbvia se a considerarmos apenas no plano da nostalgia açucarada tipo “ai-que-saudades-eu-tenho-da-aurora-da-minha-vida”. Mas não é absurdo vermos nessa lembrança dourada um lado negro e soturno finalmente domado e redimido na vida adulta. Porque o menino que lia Robinson queria com todas as forças abandonar aquele mato (como abandonou), até mesmo para, naufragado e sozinho na angústia dos 28 anos, ter o direito de ter saudade da roça de onde fugiu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário