Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 4 de abril de 2010
1863) “O Lutador” (27.2.2009)
Randy “The Ram” (Mickey Rourke), neste filme de Darren Aronofsky, é um lutador de mentira, praticante do que chamamos aqui no Brasil de “tele-catch”: aquelas lutas encenadas em que os personagens dão tesouras voadoras, pisam na cabeça do adversário, arrancam chumaços de cabelo – tudo de mentirinha. Todo mundo sabe que tele-catch é encenação. Não é uma luta, é uma coreografia combinada. Mas o fato é que os caras se machucam pra valer. Toda a violência do filme está nos primeiros 20 minutos. Depois disso, vem o desmoronamento em câmara lenta de Randy, enfraquecido, velho, solitário, sem dinheiro, sem amigos, sem família. A única coisa real na sua vida era a luta. E agora? E agora, que teve um enfarte, botou um marca-passo, e não pode mais lutar?
Uma das melhores coisas do filme é a interpretação de Rourke, autobiográfica, se pensarmos que ele chegou a ser um galã (em filmes como 9 ½ Semanas de Amor), virou um promissor ator de talento (em Coração Satânico), depois sinalizou para onde estava indo (interpretou o bebum Charles Bukovsky em Barfly), tornou-se lutador de boxe, passou dois anos quebrando a cara alheia e deixando quebrarem a sua, e mergulhou num daqueles anonimatos em que você escuta até a queda de um centavo no chão. Seu personagem, inchado de esteróides, com uma ridícula cabeleira “Led Zeppelin” oxigenada, e a cara devastada por trinta mil porradas no ringue, é ele mesmo, numa rara adequação entre biografia e performance.
Rourke concorreu ao Oscar de melhor ator, mas não levou. (Perdeu para Sean Penn, que, um machão interpretando um gay, talvez tenha sido mais ator do que ele.) Ele é o filme. Seu rosto inchado, cansado, cheio de expectativa e crista-baixa parece verdadeiro de um modo que os numerosos e numerados “Rockys” de Sylvester Stallone nunca pareceram. Stallone, mesmo quando produz derrotas para o seu herói, está tentando nos convencer de que a luta pela vitória no ringue é o mais importante de tudo. Rourke/Aronofsky parecem dizer que todo ringue é uma encenação, que toda briga, toda guerra é uma encenação (como a guerra EUA x Irã metaforizada no embate entre Randy x Ayatollah).
A verdade é o que está nos bastidores do tele-catch: profissionais solidários, calejados, sérios, sem os fricotes e as caras-e-bocas que fazem no palco. A verdade é o que está fora dos ringues, fora das campanhas militares tonitruantes. A verdade é a vida de indivíduos durões mas indefesos, violentos mas leais; indivíduos que aceitam uma profissão que a muitos (a mim, pelo menos) parece ridícula, e lhe dão uma dignidade despojada, masculina, quase ascética. “O Lutador” se encerra com uma canção de Bruce Springsteen, mas poderia se encerrar com os versos de Paul Simon: “Aqui está o boxeador, um lutador de profissão, e ele traz as marcas de todas as luvas que o derrubaram e o machucaram até que ele gritou, cheio de raiva e de vergonha: Eu vou embora, eu vou embora, mas não deixo de ser um lutador”.
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