sábado, 12 de dezembro de 2009

1422) O mendigo e a camisa (4.10.2007)




(ilustração: Jan Adriansz van Staveren)

Walter Benjamin (Magia e Técnica, Arte e Política, Brasiliense, pags. 159-160) conta a parábola de indivíduos que conversam numa estalagem, enquanto um velho mendigo, vestindo apenas uma camisa suja, cochila a um canto. 

Os fregueses falam sobre o que pediriam se lhes fosse dado realizar um só desejo. Um diz que queria uma oficina de ferrreiro, outro queria uma casa nova, outro um bom casamento para a filha... Resolvem perguntar ao mendigo o que ele gostaria.

O mendigo responde: “Gostaria de ser um rei poderoso que certa noite tem seu país invadido, seu palácio tomado, seus aposentos saqueados. O rei foge pela floresta, vestindo apenas a camisa com que dormia. É perseguido, mas ilude os perseguidores, e depois de muito tempo consegue se refugiar numa estalagem, sujo, cansado, faminto, mas vivo.” 

Os outros homens ficam sem entender e um deles pergunta: “E o que você ganharia com isso?” Ele diz: “Uma camisa”.

É uma ótima parábola, até porque ficamos nos perguntando se o mendigo não seria de fato o próprio rei, em desgraça e incógnito. Mas ela me recorda um episódio contado por Clarice Lispector. 

Certa noite ela vinha da casa de uma amiga e ficou esperando ônibus na Praça da Bandeira. Era uma noite chuvosa e gelada do inverno carioca, ela estava com um vestido fino, sem dinheiro para um táxi, batendo o queixo de frio, e nada do ônibus aparecer. 

Dizia Clarice que isto a ajudou a dormir pelo resto da vida. Quando se sentia desconfortável na cama, bastava imaginar que estava lá, de novo, na madrugada da Praça da Bandeira, vergastada pelo vento gelado e pela chuva. De repente, pensava: “Não! Não estou lá! Estou aqui, na minha cama quentinha!” E adormecia.

A mecânica disto é parecida com aquela famosa história do bode na cabana: o mestre zen aconselha o lavrador (que se queixa da casa desconfortável) a colocar um bode na sala durante um mês e depois tirá-lo, para ver como a casa fica uma beleza. 

E parecida também com aquela piada do garoto que esperava a mãe no portão com a bola de futebol embaixo do braço e diz: “Mãe, sabe aquele seu vaso japonês bem caro?...” Quando a mãe arregala os olhos e leva as mãos à cabeça, ele prossegue: “Pois eu quebrei aquela vidraça que fica perto dele”.

É um pouco como a obra-prima de Philip K. Dick, O Homem do Castelo Alto, ambientada num tempo alternativo em que os EUA perderam a guerra e têm seu território dividido entre a Alemanha nazista e o Japão. Ali, um escritor de FC escreve um romance em que imagina um mundo feliz, o qual, por ironia, é muito semelhante ao nosso. 

Se eu fosse escritor de auto-ajuda escreveria um livro inteiro aconselhando às pessoas: “Caro amigo, se você anda sorumbático e macambúzio, se você acha que a vida não vale a pena, não se preocupe. Seus problemas acabaram! Basta você imaginar-se noutra vida onde é infeliz, mas por algum motivo consegue sonhar com esta vida aqui como um desejo irrealizável, uma felicidade inatingível”.





1421) A literatura do presente (3.10.2007)


(Gregório de Matos)

Um entrevistador me pergunta: “Quem você destacaria na atual Literatura Nacional?”. Pergunta difícil, a começar pelo fato de que eu não considero que há uma literatura atual e outra que não o seja. Para mim, a Literatura é o conjunto de textos disponíveis. A literatura brasileira envolve desde Gregório de Matos até o jovem poeta que acaba de publicar seu primeiro livro de tentativas. Um não é mais atual do que o outro, e há muitas chances de que Gregório de Matos se mantenha atual por mais tempo do que muitos poetas que estão vivos, inclusive eu próprio.

Para mim a literatura se compõe em primeiro lugar de livros, e só depois de autores. Por isto, trato em pé de igualdade Machado de Assis e Rubem Fonseca. Não importa se um já morreu e o outro está vivo, e sim que seus livros estão lado a lado na livraria, na biblioteca, na minha estante. Os livros estão “vivos e bulindo”, e para mim é isto que constitui a atualidade da literatura.

Suponhamos, então, que a intenção da pergunta seja de recensear os autores surgidos recentemente, os que começaram a publicar há pouco tempo e que por isto podem ser vistos como novidade, renovação, algo diferente. Aí tenho de confessar algo que não pega bem para um jornalista e aspirante a crítico literário, como é o meu caso. Mas o fato é que eu não dou a menor atenção aos novos escritores que estão surgindo. Não porque julgue que são maus autores, longe disso. Penso até que estou perdendo coisas muito interessantes quando passo semanas inteiras mergulhado em livros obscuros do século passado. Mas não tenho o objetivo de me manter em dia com a produção editorial, como acontece com os jornalistas de redação, os que todo dia no jornal recebem exemplares para resenha, enviados pelas editoras. Cabe a estes dar conta ao leitor das novidades que surgem no mercado. Nada tenho contra isto, até porque sou um beneficiário direto, já que sou leitor dos cadernos literários da grande imprensa.

Só para dar uma idéia: nunca li nenhum livro de Milton Hatoum, João Paulo Cuenca, Marcelo Mirisola, Marçal Aquino, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Bernardo Carvalho, Luís Ruffato, Alberto Mussa... Estou citando autores surgidos nos últimos dez ou doze anos. Por que nunca os li? Porque acho que não são bons? Pelo contrário. Conheço pessoalmente alguns deles, e o que tenho ouvido sobre a obra de todos é, em geral, muito elogioso. Mas eu não pesquiso o momento atual da Literatura Brasileira; leio obras em torno de algo que estou escrevendo no momento. Como acabo de lançar uma antologia de contos fantásticos, nos últimos doze meses li centenas de contos de terror do século 19. Para escrever um livro sobre Ariano Suassuna, li mais algumas dúzias de livros relacionados. São leituras de trabalho, notas ao pé da página para meus próprios livros. Tem momentos na vida em que o sujeito só lê o que vai para seus próprios livros, não tem tempo de ler livros que não são seus.

1420) Explode coração (2.10.2007)



Eu acompanho futebol há mais de quarenta anos, e não me lembro de uma seqüência tão impressionante. Refiro-me à quantidade de jogadores profissionais que vêm morrendo do coração nos últimos tempos. Se fossem peladeiros de fim de semana, tudo bem, porque o Brasil está cheio de cinqüentões com excesso de peso e de colesterol. Conscientes do problema, eles resolvem queimar gorduras com uma pelada no domingo. O problema é que insistem em fazê-lo depois de um churrasco regado a cerveja. Aí, não dá outra – no terceiro pique o cidadão enfarta. Como não é famoso, não sai no jornal. Mas aposto que acontece toda semana no campo de terra de algum subúrbio brasileiro.

Só que o que está saindo nos jornais são as mortes de jogadores profissionais, em plena juventude, fisicamente bem preparados, trabalhando em clubes com monitoramento científico das condições físicas de cada um. Por que morrem? Não consigo entender. De um mês para cá tivemos a morte do jogador Puerta, do Sevilla; depois um jogador inglês cujo nome e clube me escapam; e no começo de setembro o equatoriano Jairo Andrés Nazareno, do Chimborazo, da terceira divisão do Equador. Mais recentemente, houve o caso do inglês Clive Clarke que teve um piripaque durante um jogo Leicester x Nottingham Forest (este, até agora, está sobrevivendo). No Brasil, o caso de maior repercussão ainda é o daquele zagueiro do São Caetano que morreu durante um jogo disputado em São Paulo. Falo apenas dos casos que me vêm à memória, mas é claro que existem muitos outros. Tem algo de errado num futebol como este.

Sou um indivíduo sedentário – e sedento, daí a quantidade de cerveja que ingiro. Consciente de todos estes problemas, faço minhas caminhadas de vez em quando, porque exercício faz bem à saúde. Mas já dizia minha mãe que “tudo demais é veneno”. Ao que parece cada organismo humano tem seu limite em termos de exercício, de preparação física. Não pode transpor este limite – e não sei se é possível prever com segurança qual é o limite de cada pessoa. Não sendo possível prevê-lo, cada jogador é tratado como se fosse um cavalo de corrida. E aí estão, não me deixando mentir, esses jovens de vinte e poucos anos, atletíssimos, que treinam a semana inteira desde os quinze anos, cheios de saúde, e cujos corações estouram quando menos se espera. O sujeito vira minuto-de-silêncio.

No esporte, como é impossível fabricar o talento, tenta-se fabricar a capacidade atlética, mas com o risco de perder muitas cobaias. Um antigo provérbio chinês (por falar nisso –existem provérbios chineses recentes?) diz: “Cavalo ganha uma vez? Sorte. Cavalo ganha duas vezes? Coincidência. Cavalo ganha três vezes? Aposte no cavalo!” Jogador morre três vezes? Demita o preparador físico. Como as mortes são muitas e espalhadas por todo o mapa, o problema não são os preparadores, é o conceito do preparo.

1419) “O Engenho de Zé Lins” (30.9.2007)




Vi dias atrás este documentário, já exibido na Paraíba, no festival Cineport, em maio. É o filme mais pessoal da obra de Vladimir Carvalho. Pessoal não no sentido da pessoa do realizador, mas do seu tema. Vladimir faz filmes sobre o Brasil, ou melhor, sobre segmentos históricos ou geográficos do Brasil: O País de São Saruê, Conterrâneos Velhos de Guerra... 

Seus filmes, mesmo quando têm o foco sobre uma pessoa famosa ou anônima (O Homem de Areia, A Pedra da Riqueza), usam esse indivíduo como uma vidraça transparente através da qual enxergamos uma face do Brasil que nos era desconhecida. O público vai ao cinema para ver aquela pessoa, e acaba vendo a si próprio.

O Engenho... é sobre a pessoa de José Lins do Rêgo, que talvez seja o maior romancista paraibano, e é de longe o mais amado. O retrato que nos dá o filme confirma essa impressão. Zé Lins era aquele sujeito gordo, sorridente, de óculos, expansivo, falador pelos cotovelos, entusiasmado com a vida. Era impossível não se deixar envolver pela sua presença, por sua espontaneidade emocional. (Digo isto sem tê-lo conhecido, claro. Quando ele morreu eu tinha 7 anos.) 

Era um meninão. Um menino “de engenho”, de engenhosidade, de talento. Isto é visível na sua literatura antropomórfica, centrada nos personagens e no vaivém das sua emoções contraditórias, de seus conflitos interpessoais, e das crises sociais do mundo desconjuntado e injusto dos engenhos canavieiros.

Sua vida tinha também uma zona de sombra, horas de depressão e desespero. O filme de Vladimir revela um fato pouco conhecido. Na infância, Zé Lins teria morto acidentalmente, com um tiro, um garoto com quem brincava. O terror e o remorso lhe marcaram a alma para sempre. Já adulto e famoso, no Rio, os amigos cochichavam, quando o viam deprimido: “Está pensando no menino”. Para um sujeito bom e emotivo como ele, um fato assim é um “núcleo de fogo e sangue” que marca a ferro em brasa uma vida inteira.

A última meia-hora do filme mostra a decadência física dos engenhos onde ele viveu (arruinados, esboroando-se aos poucos, invadidos pelo mato e pelos cupins) e a história da doença (esquistossomose) que o consumiu até a morte (com um longo e angustiado relato do poeta Thiago de Melo, que esteve ao seu lado até o fim, junto com a família). 

Zé Lins, um sujeito com a afetividade à flor da pele, escondia de todos a doença, para não fazê-los sofrer. Escondida, camuflada, a doença prosperou e tomou conta de seu corpo. Os engenhos, suas chaminés, suas casas-grandes, suas relíquias arquitetônicas, estão sendo consumidos por uma doença igualmente insidiosa, o tempo e o descaso. Como se a Paraíba moderna, jovem, turística e cosmopolita tivesse vergonha do seu passado. Zé Lins era como a Paraíba, um rosto ensolarado e feliz que esconde uma doença grave, dramas profundos, corrosão silenciosa e oculta. Quando se abre os olhos, babau Tia Chica.





1418) “Hitler do III Mundo” (29.9.2007)




Revi, durante a Jornada Internacional de Curta Metragem, em Salvador, este longa de José Agrippino de Paula, numa sessão em homenagem ao escritor e cineasta falecido em julho. Tive sorte, porque segundo Guido Araújo, diretor da Jornada, a cópia exibida na Bahia, hoje pertencente ao acervo da Cinemateca do MAM (Rio), é a única cópia restante deste filme obscuro, e foi localizada na cidade de Cachoeira (BA) pelo próprio Guido, depois de muita insistência do saudoso Cosme Alves Neto, diretor da Cinemateca.

Agrippino era um sujeito anticonvencional em todos os sentidos, principalmente em seus dois livros (reeditados há pouco pela Editora Papagaio, SP) Lugar Público e Panamérica. Além dos romances (que só podem ser chamados de romances com uma certa elasticidade de conceitos) ele escreveu pelo menos uma peça, As Nações Unidas, encenou um espetáculo misto de teatro e dança, Rito do Amor Selvagem e dirigiu em 1968 este longa-metragem em 16mm e preto e branco. Conversei em Salvador com Rudá de Andrade, um dos montadores do filme, que me disse: “Agrippino era inteligente e maluco. Não tinha noção de continuidade entre as cenas. Filmava do jeito que queria, e depois, para montar, era um trabalhão. O filme tinha cenas de tortura e personagens nazistas, e e corria muitos riscos numa época de ditadura militar. Nós o montamos na moviola da USP, depois da meia-noite, quando todo mundo ia embora e não havia perigo de alguém ver aquele material e nos dedurar”.

O filme mostra influências de Godard, Glauber, histórias em quadrinhos. Jô Soares faz um personagem de Teatro Kabuki, com um quimono estampado e uma cabeleira enorme; há uma cena hilária em que ele leva uma kombi para uma favela e coloca dentro dela dezenas de garotos pobres, que ficam empilhados até o teto. Como em alguns filmes de Godard, a trilha sonora (música, diálogos, ruídos) às vezes não tem nada a ver com o que está acontecendo na imagem. Com freqüência ruídos estridentes ou ensurdecedores interrompem as cenas.

Hitler prefigura muitas tendências do chamado “cinema udigrudi” que estava começando naquela época, como cenas absurdas filmadas na rua no meio de uma platéia de transeuntes perplexos. Outro personagem do filme é A Coisa, o monstro do Quarteto Fantástico (criado por Stan Lee e Jack Kirby), aquele massa-bruta cujo corpo parece feito de pedras coladas umas às outras (no filme, o ator usa placas de isopor). Há um pequeno grupo de nazistas que cria um “robô assassino” – na verdade um ator que se move com trejeitos mecânicos. Há uma cena genial com uma dúzia de pessoas numa canoa, pousada no chão, à beira de uma rodovia onde passam caminhões. Elas gritam e gesticulam como náufragos em alto mar, e de vez em quando uma lata dágua é atirada sobre o bote, de fora do quadro. Em certo momento um deles, vestido como Cristo, ergue-se, sai do bote e vai caminhando, enquanto os outros ficam assombrados com o “milagre”.





1417) Obina (28.9.2007)



As torcidas de futebol são excelentes sismógrafos do inconsciente coletivo. Revelam algumas linhas mestras de seu funcionamento. Basta ver a predileção que às vezes demonstram para com jogadores que, em tese, ninguém iria imaginar merecedores de paixões desse tipo. O caso mais recente é o do atacante baiano Obina, do Flamengo. Os flamenguistas do Brasil inteiro estão de luto desde que, dias atrás, Obina foi suspenso por 120 dias por causa da cotovelada que deu no rosto de um jogador do Inter de Porto Alegre. Isto significa que o jogador está fora do Campeonato Brasileiro de 2007, e o ano, para ele, já acabou. Este ano, Obina passou uns 3 ou 4 meses machucado: ao marcar um gol no Vasco, apoiou-se de mau jeito na perna esquerda e esbagaçou algo no joelho. Agora, com a suspensão, Obina tem todos os motivos para esquecer 2007.

Obina é o ídolo do atual time do Flamengo, o que me produz um enorme espanto, pois não é mais do que um atacante esforçado, que fez alguns gols importantes. Um deles, em 2005, ajudou o Flamengo a escapar do rebaixamento para a Série B, e outro, no ano passado, abriu o caminho para a conquista da Copa do Brasil diante do Vasco. Mas é pouco, não é mesmo? Obina tem qualidades técnicas muito limitadas. Nem é um grande jogador nem um grande artilheiro. Mesmo no medíocre time atual do Flamengo, não é um dos melhores. É um jogador de Série B; se eu fosse milionário, compraria seu passe e o daria de presente ao Treze.

Mas a torcida o adora. Em parte por causa desses gols decisivos em momentos de desespero. Em parte por causa de sua luta incansável, apesar de atabalhoada, dentro de campo (a torcida do Flamengo não admira muito a técnica, e sim a raça). E talvez porque Obina, em suas entrevistas, demonstre ser aquela espécie cada vez mais rara nos campos de futebol: o jogador puro, ingênuo. Tão ingênuo que durante o seu julgamento no Tribunal disse um monte de bobagens: que não tinha querido acertar o rosto do adversário, mas “somente o pescoço”; que aquilo era uma agressão boba, que ele “faria até num treino”. Quem diz coisas assim é pouco mais que um menino, perdido entre as raposas do futebol.

Talvez a torcida goste de Obina porque vê nele um sujeito meio primitivo, meio ingênuo, sem a maldade e a malícia dos jogadores atuais. O futebol de hoje está cheio de jogadores que se comportam como fuzileiros navais, falando o tempo inteiro em “preparo”, em “trabalho”, em “união do grupo”, em “conquista do objetivo”. A profissionalização dos clubes-empresas fez desembarcar nos Departamentos de Futebol e nos bancos de treinadores uma geração de profissionais para quem o futebol é uma forma atenuada de guerra. E de atletas que só pensam em dinheiro, inclusive atletas-de-Cristo que consideram Cristo como um misto de empresário e “personal trainer”. No meio desses maquiavéis de chuteiras, como não gostar de Obina, como não ser fã de Obina?