sábado, 12 de dezembro de 2009

1419) “O Engenho de Zé Lins” (30.9.2007)




Vi dias atrás este documentário, já exibido na Paraíba, no festival Cineport, em maio. É o filme mais pessoal da obra de Vladimir Carvalho. Pessoal não no sentido da pessoa do realizador, mas do seu tema. Vladimir faz filmes sobre o Brasil, ou melhor, sobre segmentos históricos ou geográficos do Brasil: O País de São Saruê, Conterrâneos Velhos de Guerra... 

Seus filmes, mesmo quando têm o foco sobre uma pessoa famosa ou anônima (O Homem de Areia, A Pedra da Riqueza), usam esse indivíduo como uma vidraça transparente através da qual enxergamos uma face do Brasil que nos era desconhecida. O público vai ao cinema para ver aquela pessoa, e acaba vendo a si próprio.

O Engenho... é sobre a pessoa de José Lins do Rêgo, que talvez seja o maior romancista paraibano, e é de longe o mais amado. O retrato que nos dá o filme confirma essa impressão. Zé Lins era aquele sujeito gordo, sorridente, de óculos, expansivo, falador pelos cotovelos, entusiasmado com a vida. Era impossível não se deixar envolver pela sua presença, por sua espontaneidade emocional. (Digo isto sem tê-lo conhecido, claro. Quando ele morreu eu tinha 7 anos.) 

Era um meninão. Um menino “de engenho”, de engenhosidade, de talento. Isto é visível na sua literatura antropomórfica, centrada nos personagens e no vaivém das sua emoções contraditórias, de seus conflitos interpessoais, e das crises sociais do mundo desconjuntado e injusto dos engenhos canavieiros.

Sua vida tinha também uma zona de sombra, horas de depressão e desespero. O filme de Vladimir revela um fato pouco conhecido. Na infância, Zé Lins teria morto acidentalmente, com um tiro, um garoto com quem brincava. O terror e o remorso lhe marcaram a alma para sempre. Já adulto e famoso, no Rio, os amigos cochichavam, quando o viam deprimido: “Está pensando no menino”. Para um sujeito bom e emotivo como ele, um fato assim é um “núcleo de fogo e sangue” que marca a ferro em brasa uma vida inteira.

A última meia-hora do filme mostra a decadência física dos engenhos onde ele viveu (arruinados, esboroando-se aos poucos, invadidos pelo mato e pelos cupins) e a história da doença (esquistossomose) que o consumiu até a morte (com um longo e angustiado relato do poeta Thiago de Melo, que esteve ao seu lado até o fim, junto com a família). 

Zé Lins, um sujeito com a afetividade à flor da pele, escondia de todos a doença, para não fazê-los sofrer. Escondida, camuflada, a doença prosperou e tomou conta de seu corpo. Os engenhos, suas chaminés, suas casas-grandes, suas relíquias arquitetônicas, estão sendo consumidos por uma doença igualmente insidiosa, o tempo e o descaso. Como se a Paraíba moderna, jovem, turística e cosmopolita tivesse vergonha do seu passado. Zé Lins era como a Paraíba, um rosto ensolarado e feliz que esconde uma doença grave, dramas profundos, corrosão silenciosa e oculta. Quando se abre os olhos, babau Tia Chica.





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