terça-feira, 26 de maio de 2009

1050) A Cidade do Sexo (28.7.2006)



Apareceu aqui no Rio de Janeiro mais uma dessas idéias megalomaníacas que sob a manta protetora da “geração de empregos” e do “potencial turístico” propõem fazer algumas dezenas de milhões de reais trocarem de mãos, molhando generosamente, na passagem, as mãos dos envolvidos. É uma tal “Cidade do Sexo”, uma estrutura vagamente fálica, que lembra, pelas fotos que vi, dois espermatozóides copulando (!). Não é um projeto oficial ainda, é o trabalho de fim de curso de um jovem arquiteto. Mas um troço desse é um perigo numa cidade como o Rio de Janeiro, cuja dieta básica é um “fast-food” dos factóides publicitários, da badalação planejada.

Os defensores da Cidade do Sexo dizem que o Brasil é um país sensual, que o Rio de Janeiro é uma cidade erotizada, que somos um povo sem preconceitos, etc. e tal. Já que é assim (raciocinam) precisamos criar um mercado para isto, ainda maior do que o que já existe. Conversa fiada. O brasileiro e o carioca não são tão liberados e tão sem preconceitos como se apregoa. Não existe “o Brasileiro”, não existe “o Carioca”. Isso são clichês dirigidos, abstrações usadas por quem (no caso, imprensa e publicidade) tem alguma coisa a vender.

A Cidade do Sexo, um shopping com cabines para relações sexuais, consultórios de urologistas e proctologistas, museus de arte erótica, cinematecas de filme pornô, é o sintoma de uma espécie de stalinismo do prazer, um dos sonhos do Capitalismo Publicitário, que é quem que manda no Brasil. Centralização. Concentração. Investimento maciço. Criação de um espaço preferencial, valorizadíssimo, disputado a tapa e a dólar. Em vez do sexo livre, pessoal, anônimo, gratuito, doméstico, em vez do sexo das casas, o sexo do zé-das-couves com a maria-ninguém, o Poder (não o Governo, mas o verdadeiro Poder: o Dinheiro, cujo nome artístico é “o Mercado”) oferece essa visão grandiloqüente, disneyana, uma monstruosidade híbrida que concentra em si três prósperas máquinas caça-níqueis: Shopping Center, Termas e Motel.

Não estou sendo moralista, amigos. Sou até “docemente pornográfico”, como Drummmond. É que o sexo é uma coisa pessoal. Quem procura torná-lo faraônico não quer que o público areje os conceitos: quer que ele abra a carteira. Quer fazer o que já faz com este outro chamariz infalível, o Amor. “Amor” é uma palavra prostituta que serve para vender qualquer coisa para os carentes de amor real. Na TV, um marido surpreso exclama; “Meu Deus! Esta comida está muito gostosa! Foi feita com quê?” A esposa-cozinheira ergue o pote de Margarina XPTO e diz: “Com amor...” Sexo é a mesma coisa. O Rio de Janeiro já é conhecido mundialmente como a Cidade da Bunda. O que é falso. Os Cafetões do Mercado estão tornando o Rio mais e mais, a cada década que passa, a cidade da grana esperta, da sujeira maquilada, a cidade batatinha-de-isopor, a cidade da permissividade financiada, da promiscuidade compulsória, a cidade-isca ideal para os fabricantes de anzóis.

1049) Micro-arte (27.7.2006)




Não, não se trata de arte feita com o auxílio de micro-computadores. São obras de arte em miniatura, algo tão velho quanto obras de arte em escala faraônica. Se alguém disser um dia “É mais fácil a Estátua da Liberdade passar pelo fundo de uma agulha do que o Flamengo ser campeão brasileiro”, não acredite, porque Willard Wigan, um escultor de olho agudíssimo e mãos precisas, realizou a primeira destas proezas, o que pode ser verificado (junto a muitas outras façanhas) no endereço: http://www.willard-wigan.com/art.html

No fim do século 19, um tal de Schiller, preso por falsificação no cárcere de Sing Sing, foi encontrado morto. Revistado, descobriram com ele sete alfinetes, sendo seis de prata e um de ouro, com cabeças que mediam 1,17mm. Schiller passou os últimos 25 anos de sua vida gravando na cabeça de cada alfinete o texto completo do “Pai Nosso” em inglês, um texto com 65 palavras e 254 letras. 

Quando Bill Clinton era presidente dos EUA, um grupo de engenheiros puxa-sacos criou uma imagem mostrando a silhueta do presidente tocando sax. A imagem, com cerca de um centímetro quadrado, era composta de 287.900 minúsculos saxofones, cada um deles com cerca de 6 a 8 milionésimos de metro, o tamanho de um glóbulo vermelho do sangue. As imagens, contudo, eram formadas pela superposição de camadas planas, praticamente bi-dimensionais. 

Coube a engenheiros da Universidade de Osaka (Japão) a criação da menor escultura tridimensional do mundo, um pequeno touro medindo 10 por 7 micrômetros, esculpido em plástico com raios laser. 

No reinado de Elizabeth I da Inglaterra um artífice de nome Mark Scaliot fabricou uma corrente de ouro, com 43 elos; fabricou para ela um cadeado com onze peças de ferro, aço e latão, além de uma chave. A corrente foi então colocada, e fechada, em torno do pescoço de uma pulga, que conseguia arrastá-la sem muito esforço. 

Tá bom, chega de “Você Sabia?”. O propósito deste artigo é teorizar que existe, no campo da Estética, uma região onde o objetivo não é a Beleza, nem o Sublime. Existe uma região da Arte (vizinha ao distrito do Artesanato) onde a manipulação do conceito de Tamanho, Dimensões, etc. é muito mais importante do que o Belo. 

As instalações de Christo, aquele artista que “embrulha” prédios e pontes; as esculturas monumentais como as do Monte Rushmore; os concertos de John Cage, previstos para durar séculos; tudo isto são obras de arte onde o conceito de dimensões e tamanho é o ponto crucial. 

A micro-arte brota daí, embora nesta caso o resultado ainda se mantenha no campo do Artesanato, até mesmo pela dificuldade de transformar o produto final em algo acessível, compartilhável por um público. Não é uma simples demonstração de malabarismo e proficiência técnica. É uma tentativa de impor o espírito humano, a linguagem humana, em domínios (o Micro e o Macro) que parecia vedado aos humanos, mas que a ambição faustiana desses artistas consegue invadir.






1048) O detetive Freud (26.7.2006)




(Ilustração: Nerilicon)

Um amigo meu dizia: “Freud foi o maior antropólogo do mundo”. Já vi uma crítica a Freud dizendo que ele era um sujeito que, baseado numa premissa falsa, construiu um edifício de deduções impecavelmente corretas. Várias pessoas, inclusive eu mesmo, já tentaram indicá-lo para o Prêmio Nobel de Literatura. 

Certas ou erradas as suas premissas, poucos sujeitos de obra densa e difícil terão sido tão absorvidos pela cultura-de-massas, pela linguagem cotidiana. Todo mundo hoje em dia fala em trauma, em complexo, em neurose, em inconsciente; e todo mundo acha que sabe perfeitamente do que está falando.

Freud foi o primeiro grande detetive de nossa era, ao lado do seu contemporâneo Sherlock Holmes. 

As duas figuras já foram comparadas por muita gente, e aconselho a todos o divertido filme de Nicholas Meyer, Uma Solução Sete por Cento (1976), onde Holmes (Nicol Williamson), sofrendo com o vício da cocaína, é levado por Watson (Robert Duvall) a Viena para se consultar com o jovem e desconhecido Dr. Sigmund Freud (Alan Arkin). Eles acabam se envolvendo e agindo juntos numa trama de crime e mistério, onde os poderes dedutivos de Holmes se somam à percepção psicológica de Freud.

Lendo ensaios como “Leonardo da Vinci e uma Memória de Infância”, onde ele compara um quadro de Leonardo a um trecho de seus diários, não há como não visualizar Freud, sentado à noite, na solidão do gabinete, numa poltrona dentro do círculo de luz de uma luminária, tendo ao lado o cachimbo, e nas mãos um álbum com reproduções das pinturas de Leonardo. 

De quando em quando ele se levanta, vai à estante, localiza um livro, volta a sentar, lê durante trinta ou quarenta minutos, tomando notas num papel. Depois volta a contemplar as pinturas, recorre a outro livro, a dois, a três, em busca de uma informação fugidia, tentando comparar diferentes versões de um fato, ou diferentes interpretações de um detalhe. Noite adentro, o olho do detetive olha para aquela imagem que todos já viram, e vai descobrindo ali algo que ninguém tinha enxergado.

O psicanalista, como o detetive, é um sujeito que trabalha por indução e por dedução. Ele se depara com três ou quatro indícios aparentemente desconexos e sem sentido. Examinando-os, pensando bem, ele esboça uma primeira hipótese para justificar a presença daqueles dados contraditórios. Com a hipótese formulada, ele volta ao “local do crime” em busca de outros indícios que, caso a hipótese seja verdadeira, deverão estar ali. 

Neste processo, ele oscila entre a imaginação criadora, que formula a hipótese, e a observação dos fatos, o grande teste, o rochedo implacável onde tantas belas teorias acabam se espatifando. 

Freud e Sherlock Holmes são dois picos vizinhos da grande cordilheira da racionalidade do final do século 19, que talvez tenha sido o ponto mais alto da Razão humana em nossa época, antes do mergulho, no século 20, nos princípios da Indeterminação, do Relativismo, da Incerteza e do Caos.





1047) Heloísa Helena (25.7.2006)



Fiquei sabendo pela imprensa que o furacão Heloísa cruzou o território paraibano no sentido sertão-litoral, causando mais alvoroço do que “El Niño”, o que é compreensível numa terra de brisas mansas como a nossa. Dias atrás a imprensa revelou pesquisas eleitorais mostrando que em um mês a senadora do P-Sol pulou de 6% para 10% nas intenções de voto.

Heloísa está atraindo para si todos os eleitores que acreditaram no discurso do PT anos atrás. Para muita gente é um discurso raivoso, ressentido, cheio de santimônia, um discurso arrogante que diz: “Todo mundo é ladrão, todo mundo é corrupto, menos eu, que sou superior a todos”. Foi a desmoralização deste discurso durante o escândalo do mensalão que esfrangalhou a imagem do PT (para muitos, de forma irremediável).

Não sei se terá chances de ser eleita. Talvez, por que não? Erundina não foi? O problema é que hoje em dia mesmo os discursos mais veementes, mais moralmente sinceros, acabam se transformando em jogada de marketing. Se a campanha de Heloísa decolar, vai começar o marketing. Nomeiam logo um Assessor Retórico que vai dizer: “Use linguagem que o povo entenda, não fale economicamente desfavorecidos, fale mendigos”. Aí chega um Assessor Estratégico: “Não bata em Alkmin, Lula já está tirando os votos de Alkmin, bata em Lula”. E um Assessor de Visual: “Encomendei trinta jeans desbotados e consegui uma confecção que fabrica camisas-sociais já com as mangas arregaçadas, um-lu-xo!”

Um amigo meu, tucano até a medula, esnobou HH: “Parece uma professora primária”. Excelente definição para quem pisa e repisa alguns mandamentos primários: não pode roubar, não pode mentir, não pode favorecer, tem que saber administrar. Ficaremos sabendo nos próximos meses quantos brasileiros gostariam de viver num Brasil com a brava Heloísa na presidência. O que mais gosto dela é a atitude decidida, sem papas na língua, o jeito de mulher nordestina braba que só uma capota, aquela mulher-de-morador que escuta uma piadinha do senhor de engenho e volta em cima dos pés, passa-lhe uma descompostura de dedo em riste na frente de todo mundo, e ai dele se fizer cara feia.

No primeiro ano do governo Lula, quando o PT começou a fazer conchambranças a torto e a direito, um grupo de petistas insurgiu-se contra isto, e foi expulso. Os três mais notórios eram a senadora Heloísa, mais os deputados Babá (aquele que tem um cabelo que dá no meio das costas) e Luciana Genro. Na época, propus um mote em martelo agalopado a alguns amigos repentistas: “Heloísa, Babá e Luciana: / isto é tudo o que resta do PT!” Foi muito antes do escândalo do mensalão. O trio saiu do PT e fundou o P-Sol, partido minúsculo com um nome que parece nome de detergente, mas isto talvez tenha até um simbolismo freudiano. Se deixarem o P-Sol chegar ao poder, pode ser que ele desintegre com raio-laser estes cinco séculos de sujeira acumulada. Ou então faz como fez o PT. E a vida continua.