sábado, 14 de março de 2009

0886) O verso de embolada (18.1.2006)



Todo brasileiro já ouviu muito esse tipo de verso; se for nordestino, já ouviu o dobro. Eu o chamo de “verso de embolada” porque para mim é no coco de embolada que ele tem sua origem histórica, mas ele se impregnou de tal forma em nosso inconsciente métrico que acabou abrindo franquias na Música Popular Brasileira, no Rock-BR e na poesia erudita.

“Vou lhe falar / meu amigo e camarada / eu aqui nessa calçada / canto até o sol raiar! // Eu sou poeta / sou artista brasileiro / na batida do pandeiro / na pancada do ganzá!” Todo mundo já ouviu algo assim, confere? À primeira vista parecem quadrinhas, estrofes de quatro versos setissílabos que herdamos de Portugal. O único detalhe que os diferencia é esse primeiro verso, curiosamente quebrado em relação aos demais. Em alguns casos (como no exemplo acima) o primeiro verso vem com quatro sílabas, mas às vezes são três, ou duas, ou cinco, depende do caso.

Já escrevi uma peça de teatro chamada Trupizupe, o Raio da Silibrina (ou O Casamento de Trupizupe com a Filha do Rei) em que o personagem-título era um embolador-de-coco. Ele se apresentava com uma embolada cujo refrão dizia: “Canta canta sabiá / no galho da bananeira / que a pedra da balieira / vem voando pelo ar!” Como tudo que eu faço, tinha um erro idiota (“Bananeira não tem galho”, diziam meus amigos naturebas, “tem folha”), e um grave defeito métrico. Na hora do palco, eu não conseguia cantar o refrão (que, como se vê acima, eram quatro versos setissílabos) duas vezes emendadas: era muito rápido e eu ficava sem fôlego. Solução: “dei uma comida” no primeiro verso, e o refrão ficou assim: “Oi canta sabiá / no galho da laranjeira”, etc. e tal.

Tecnicamente, o que caracteriza o verso-de-embolada é essa primeira linha quebrada, para que o recitante ou cantador (porque é verso oral, falado, boca-pra-fora) tenha tempo de respirar. Nesse rápido “buraco” métrico a gente enche o pulmão com ar suficiente para cantar os quatro versos seguintes. Uma quebra dessa natureza jamais ocorreria a quem escreve com caneta e papel. É fruto da poesia oral, “a plenos pulmões” como dizia Maiakóvski.

Essa peculiaridade técnica sobrevive em muitas letras da MPB. Não citarei exemplos de Gonzagão e Jackson porque seria covardia; mas os há de Catulo da Paixão Cearense (“Oh que saudade / do luar da minha terra / lá na serra branquejando / folhas secas pelo chão”; de Juca Chaves: “O tempo passa / só não passa este tormento / que corrói meu pensamento / de viver pensando em vão” (“O Tempo Passa”); de Chico Buarque: “O homem da rua / fica só por teimosia / não encontra companhia / mas pra casa não vai não” (“A Televisão”); de Renato Russo: “Não tinha medo / o tal João de Santo Cristo / era o que todos diziam / quando ele se perdeu” (“Faroeste Caboclo”); de Gilberto Gil: “Abacateiro / acataremos teu ato / nós também somos do mato / como o pato e o leão” (“Refazenda”)... Um verso 100% oral e 90% brasileiro.

0885) Shelley Winters (17.1.2006)



Faleceu semana passada Shelley Winters. Confesso que ao ver a notícia minha reação foi como a dos amigos de Dorothy Parker ao ver seu obituário nos jornais: “Oi, e ainda era viva?” Somos tão acostumados ao círculo vicioso da exposição à mídia, da indústria de fofocas, do tráfico de eventos, da política dos divulgadores e assessores de imprensa, que quando passamos alguns anos sem ouvir falar de alguém... bem, se não está aparecendo na TV, é porque deve ter morrido, não é mesmo?

Grande Shelley Winters, atriz rubicunda e desabusada. Nunca a considerei uma beldade, se bem que olhando agora algumas fotos suas com 20 ou 30 anos reconsiderei este julgamento. Não importa. Era boa atriz e, curiosamente, tinha algo de atriz brasileira ou italiana. Era aquela loura sem papas na língua que faz excelentes papéis de sogra atemorizante, de vizinha encrenqueira, de matriarca mão-de-ferro, de solteirona lamurienta. Suas interpretações às vezes passavam do limite, por excesso de veemência. Seu erro nunca era a falta de talento, mas o descontrole dele, o transbordamento, o desperdício de energia naquelas situações em que a metade teria produzido o dobro.

A única vez que vi uma estátua do Oscar em “carne e osso” foi quando visitei o Museu Anne Frank, em Amsterdam,. Não era réplica: era a estátua que Shelley Winters (de ascendência judaica) doou ao museu, depois de tê-la ganho em O Diário de Anne Frank, de George Stevens. Vi este filme aos 16 anos e me tornei um fã de Anne Frank até hoje. Shelley fazia a mãe de Peter Van Daan, o garoto que Anne parece ter amado em sua curta vida. Ela interpretou também a mãe da ninfeta no Lolita de Kubrick, e fez uma impagável mãe judia em Próxima Parada: Bairro Boêmio de Paul Mazursky.

Shelley brilhou mesmo, para mim, como Ma Barker, a matrona incestuosa que chefia os próprios filhos numa quadrilha durante a Depressão, em Bloody Mama (1970), um daqueles filmes-demo de Roger Corman, feitos em dez dias e com dez tostões. Irascível, desbocada, furibunda, ela rouba o filme inteiro. Ajudou Corman a escolher o elenco, inclusive mostrando-lhe um teipe de um jovem e pouco conhecido ator chamado Robert De Niro. Diz Corman que antes de rodar suas cenas ela ouvia, em todo volume, árias de ópera cantadas pelas grandes divas. Quando o diretor gritava: “Ação!” ela desligava o toca-discos e entrava triunfante no cenário.

Era o que nos EUA chamam de “uma atriz do Método”, discípulos do método de Stanislawski, muito usado no famoso Actor’s Studio de Nova York. Mergulhava de cabeça no personagem. Para filmar em Bloody Mama o enterro do filho viciado em drogas, rodado ao amanhecer, passou a noite num velório de verdade, olhando para o defunto desconhecido e vendo cenas do Vietnam na TV. Quando Corman preparou a cena, e perguntou por ela, viu-a irromper em prantos, descomposta, gritando pelo filho. Corman mandou rodar, e a cena estava pronta. Ela cultivava a estética do trapézio-sem-rede.

0884) O Maior Espetáculo da Serra (15.1.2006)



O milênio irá avançando. O mundo irá crescendo, e com ele as dimensões da vida. A população do Brasil será igual à da China de hoje. As cidades irão se expandindo, e na altura do Cajá os derradeiros subúrbios de Campina Grande já estarão se misturando aos primeiros de João Pessoa, as duas metrópoles com milhões de habitantes, estendendo-se uma rumo à outra como duas gotas dágua prestes a transformar-se numa só. Haverá um excesso de gente, um excesso de produtos e de consumo, excesso de demanda e de oferta; e um excesso de tempo a ser preenchido para o lazer das multidões insaciáveis.

Nesse tempo futuro, os acontecimentos míticos se agigantaram. A população presta culto aos grandes embates cuja estatura lendária só fez crescer ao longo das gerações. Campina Grande já é uma megalópole maior que Tóquio ou a Cidade do México, e seus milhões de habitantes mantém viva a chama do Treze x Campinense como o Grande Clássico.

Inchaço populacional, “boom” econômico, mega-indústria do lazer: tudo convergiu para criar a Idéia do Século: o “Clássico 24 Horas”. À meia-noite do reveillon de 2110-2111, perante um estádio lotado onde não cabia mais uma pessoa sequer, ao trilar do apito do árbitro, rolou a bola para o início do Grande Clássico dos Maiorais. Desde então, há várias décadas, Treze e Campinense estão sempre em campo, em tempos sucessivos de 45 minutos, enfrentando-se sem parar, com emocionantes alternâncias no placar. Um jogo 24 horas, que não pára. Jogadores são substituídos, voltam a campo dias ou meses depois. Atletas famosos de passagem pela Paraíba são convidados a dar uma “canja” de 45 minutos. Artilheiros célebres, que estrearam no clássico aos 17 anos, despedem-se dele aos 40. E o jogo não pára.

O jogo não pára. São 24 horas por dia, sete dias por semana. Chova ou faça sol, seja o pingo do meio-dia ou altas horas da madrugada, Treze x Campinense estão sempre em campo, diante de uma platéia flutuante que vai de 20% até a lotação completa do estádio, mas sempre presente, porque na cidade, no Nordeste e no Brasil todos conhecem a lenda do Jogo Que Não Pára. Ônibus de turistas uniformizados de Galo ou Raposa (vindos do Japão, da Índia, da Califórnia) desembarcam diariamente diante dos portões do Estádio. Equipes se revezam transmitindo o jogo por canais de rádio, TV e Internet exclusivos para a transmissão do Clássico dos Maiorais.

Quem vai ganhar? Não se sabe. Em certas épocas, um dos times chega a colocar sobre o outro uma vantagem de dezenas de gols; mas a sorte e a persistência ajudam o perdedor a reduzir essa vantagem até conseguir (num dia de “casa cheia”, ansiosamente esperado ao longo de anos) passar de novo à frente do placar. Gerações de jogadores e de torcedores se sucedem, recordes são batidos, estatísticas se avolumam... O jogo continua, eterno como a vida das espécies, intenso como a vida dos indivíduos: o Maior Espetáculo da Serra.

0883) Canções de amigo (14.1.2006)




("Clube da Esquina 1" de Milton Nascimento)


Canção de amor qualquer sujeito de boa memória faz, não é mesmo? “Eu te amo demais, sem você não sei viver, em você encontrei minha paz, não vejo a hora de abraçar você...” Três minutos desse repetitório e estamos conversados. Canção de amor, amigos, virou xerox de clichê. 

Assim como hamburger do MacDonald’s e churrasquinho-no-espeto de porta de Estádio são as mais rudimentares entidades que ainda podem ser chamadas de “comida”, canção de amor desse tipo é a pizza-congelada-de-supermercado da música popular.

Fazer canção de amigo é outra história. O amor é diferente da amizade, e, como disse Caetano Veloso, “quem há de negar que esta lhe é superior?” O amor pode ser um sentimento mais intenso e mais profundo, mas a amizade é algo mais equilibrado e mais amplo. 

Os Beatles têm um clássico como “With a little help from my friends”, ou então “Two of Us”, cançãozinha que exprime como nenhuma outra a sensação de excitação e liberdade de garotos correndo à solta pelo mundo, sem compromisso, “aprontando” sem preocupações: “Nós dois, mandando cartões postais, escrevendo cartas em cima do muro, riscando fósforos, destrancando portões...” (Embora algumas versões digam que MacCartney fez a música para sua então recente namorada Linda: “Eu e você temos recordações mais vastas do que a estrada que se estende à nossa frente”)

Lembrem-se de “Morro Velho”, a canção em que Milton Nascimento conta a vida de dois garotos de fazenda, um branco e um preto. É uma história da amizade que, na infância, se resume ao afeto puro e irrestrito, sem malícia, de garotos que vivem soltos no mato, tibungando em barreiro, caçando passarinho. O tempo passa, e a diferença de classes os separa na vida adulta: “E o seu velho camarada já não brinca, mas – trabalha...” 

Existem as amizades cuja origem só se explica no final, como em “Chico Mineiro” de Tonico e Tinoco, em que a tristeza do narrador após a morte do amigo se explica (folhetinescamente) ao descobrir que Chico era seu “legítimo irmão”.

A canção clássica que define os parâmetros da amizade é “You’ve Got a Friend” de James Taylor, que aliás pede uns versinhos emprestados a “Any Time at All” dos Beatles: “All you’ve got to do is call, and I’ll be there...” O próprio Taylor, ao vir cantar no Rock in Rio em 1985, quase caiu para trás ao ver 200 mil brasileiros cantando a música inteira a uma só voz. 

Em português, não conheço outra tão singela e tão tocante quanto a homenagem de Roberto Carlos para Erasmo: “Você, meu amigo de fé, meu irmão camarada... Amigo de tantos caminhos e tantas jornadas...” Dentro da singeleza poética de Roberto, é uma canção mais verdadeira e mais contidamente emocionada do que muitas das canções de amor que ele (ou melhor, a dupla) compôs ao longo de muitas décadas. 

Dizer que você está doido por uma mulher é relativamente fácil; eu quero ver é o camarada fazer uma música falando de seu afeto por outro homem.





0882) O mundo de Holmes e Watson (13.1.2006)



No prefácio da recente reedição das aventuras de Sherlock Holmes (Jorge Zahar Editor, com notas de Leslie Klinger), John Le Carré afirma: “Ninguém escreve sobre Holmes e Watson sem amor”. Mulheres são vulneráveis a este amor (está aí minha filha Maria que não me deixa mentir), mas eu ouso afirmar que o universo sherlockiano é acima de tudo um universo masculino, ainda que não machista. As mulheres são tratadas com respeito e reverência, à maneira vitoriana, mas aquele é um mundo moldado pelos sonhos de homens autoritários, intelectuais, reunidos numa espécie de clube fechado onde sentam diante da lareira, bebem, fumam, jogam xadrez e decidem o destino do mundo.

A Inglaterra de Holmes e Watson é o símbolo do colonialismo no que ele tem de admirável. O que ele tem de desumano e terrível já o sabemos, nós, povos morenos do Terceiro Mundo, que estudávamos o marxismo e torcíamos pela guerrilha latino-americana. O lado admirável do colonialismo do século 19 pode ser cristalizado em dois tipos humanos a quem eu chamo os ícaros e os dédalos. Os ícaros são os aventureiros, os que gostam de enfrentar perigos, correr risco de vida, mergulhar no desconhecido, desbravar regiões selvagens. Os dédalos são os que gostam de se trancar em enormes bibliotecas onde estão acumulados os tesouros do saber, gostam de investigar o passado, solver enigmas, construir intrincados labirintos de idéias.

A fascinação que Sherlock Holmes desperta em todos nós é pelo fato de ele ser, ao mesmo tempo e alternadamente, um dédalo e um ícaro. E diante dele nós somos o Dr. Watson, o “homem comum” fascinado por aquele indivíduo (por aquela nação) que concilia aspectos tão opostos. Holmes é capaz de se enrolar num roupão velho e passar duas semanas encolhido numa poltrona, fumando e pensando, enquanto junta as peças de um quebra-cabeças que está tentando desvendar. No momento em que ele entende o que está acontecendo, e o que é preciso fazer, ele se transforma. Agarra o companheiro pelo ombro, com a frase famosa: “Come on, Watson! The game is afoot!” (frase que pode ser traduzida como “A caça está à solta” ou “O jogo começou”) Daí em diante, Holmes é outra pessoa: disfarça-se até ficar irreconhecível, enfrenta adversários de mãos limpas ou de revólver em punho, cruza e recruza Londres em caçadas frenéticas, pratica incríveis façanhas de coragem e de resistência física.

O escritor e diplomata Richard Francis Burton é uma figura histórica que também reúne estes dois lados (erudição e aventura) que caracterizaram a peculiaríssima forma de civilização que foi a Inglaterra vitoriana e, por extensão, a Europa colonialista do século 19. São personagens e histórias de um tempo em que o mundo tinha centro, e este centro era de raça branca, de sexo masculino, de mentalidade científica e materialista, exibia títulos de nobreza, e acreditava que sua civilização tinha por fim alcançado o Fim da História.

0881) Um primo mais distante (12.1.2006)



Talvez você não lembre, caro leitor, mas afinal, aqui nesta coluna só quem tem obrigação de lembrar sou eu. Em 21.12.2003 comentei aqui a descoberta do maior número primo (até então). Descobrir o “último número primo”, o maior de todos, é impossível, pois já foi provado que eles são uma série infinita. O grande lance é descobrir o próximo número primo, a partir do maior já conhecido, mas o problema é que esse próximo número parece cada vez mais distante, e descobri-lo requer sempre o uso de milhares de computadores interligados, rodando o mesmo programa. Estes números são expressos na forma de 2 elevado a uma potência enorme, menos 1. São conhecidos como “Primos de Mersenne”, em homenagem ao matemático francês que teorizou sobre eles há três séculos. Se você só lê português mas é cobra em matemática, pule aqui: http://www.mat.puc-rio.br/~nicolau/papers/mersenne/mersenne.html.

O número descoberto agora é o 43o. primo de Mersenne. Andei comendo mosca, porque o que noticiei em 2003 era o de número 40. Não faz muita diferença, até porque se eu visse ambos escritos lado a lado não conseguiria distingui-los. O de 2003 era um número com mais de 6 milhões e 300 mil dígitos; este novo, recém-saído do forno, tem exatos 9.152.052. Como o “Jornal da Paraíba” iria gastar muito papel e tinta para transcrevê-lo por inteiro, podemos recorrer à útil fórmula mersenniana: 2 elevado à 30.402.457a potência, menos 1. Há um prêmio de 100 mil dólares, oferecido pela Electronic Frontier Foundation, para a equipe que descobrir um Primo de Mersenne com mais de 10 milhões de dígitos. Tudo indica que será a turma do Projeto GIMPS (Great Internet Mersenne Prime Search), que descobriu os nove mais recentes: http://www.mersenne.org/prime.htm.

A utilidade disto tudo? Não sei, assim como não sei a utilidade de escrever sinfonias ou pintar paisagens. Acho que nos dá a sensação de estar tocando na medula da beleza universal, e em alguma lei não-escrita na fronteira entre a Ordem e o Caos do Universo. Em seu livro A Experiência Matemática Philip Davis e Reuben Hersh comentam que os números primos parecem se distribuir irregularmente ao longo da série dos números inteiros. Seu aparecimento é imprevisível, daí ser necessária toda essa gigantesca checagem, número por número, para saber se o próximo número inteiro é primo ou não. David & Hersh observam que na lista dos números primos notamos “a falta de qualquer tipo detectável de ordem ou de regularidade”. Por exemplo: nos 100 números inteiros entre 9.999.900 e 10 milhões existem nove números primos; mas nos 100 inteiros seguintes só existem dois. Por quê?

Minha teoria pessoal é de que os primos são os únicos números verdadeiros, de existência puramente matemática. São irredutíveis como os elementos químicos. Os tijolos básicos de uma matemática pura, pura Linguagem, não contaminada pela natureza física, pelo mundo das coisas contáveis.

0880) Osman Lins e o fragmento (11.1.2006)




(Osman Lins, por Gil Vicente)

Osman Lins diz em algum livro seu que (os termos não são bem estes, mas vá lá) não existe produto literário mais reles do que o Fragmento. 

Sempre tenho um pouco de remorso quando discordo de meus autores preferidos. Por mais que os respeite, nunca me passa pela cabeça que eles possam estar certos e eu errado, mas discordar deles me constrange tanto quanto me constrangia contradizer meu pai em público (coisa que nunca fiz, embora às vezes a língua coçasse que era uma beleza, pelos despautérios que de vez em quando ele dizia).

Eu entendo a idéia de mestre Osman. Ele era um desses indivíduos que têm um vislumbre do Universo e permanecem fiéis a essa idéia de grandeza, à missão de reproduzir o que entreviram dessa enorme Máquina de Idéias. As imagens recorrentes no discurso de Osman são imagens de estruturas monumentais (a Catedral, a Cidade) ou complexas (o Relógio, a Tapeçaria, o Labirinto). Quem desenha ponte-pênsil desdenha quem faz ponta de lápis.

É natural que um arquiteto assim tenha um leve menosprezo pelo fragmento literário, pelo rabisco bem-intencionado que não chegou a se concretizar em obra, por esse embrião de idéia cuja evolução foi sustada pela indolência ou pela inépcia de quem o concebeu. 

Quando o fragmento de texto é medíocre, e sua existência parece sobrecarregar o mundo, não é grande problema, basta descartá-lo e esquecê-lo. Mas o fragmento de texto brilhante nos incomoda porque deixa entrever o talento que o produziu e as alturas a que este talento teria podido chegar, se tivesse tido coragem para encarar a Guerra da Criação.

Osman Lins sempre exigiu o máximo de si e dos outros. Não deve ter sido um sujeito de convivência fácil, porque seus parâmetros estéticos eram muito altos. Os parâmetros éticos também, como vemos em seus demolidores ensaios sobre literatura e mercado editorial (Guerra sem Testemunhas) e sobre o sistema educacional e a indústria cultural no Brasil (Problemas Inculturais Brasileiros, Evangelho na Taba). 

Não admira que ao tratar a criação literária ele fosse impiedoso com o pedacinho, o trechinho, o rascunho, o esboço, a coisa deixada pela metade, o quase-texto.

Se existem muitas obras prontas no mundo, maior ainda deve ser a quantidade das obras abortadas no meio do caminho. Sinfonias inacabadas, capítulos iniciais de romances inconclusos, primeiros-atos de peças que nunca viram o palco, músicas sem letra, letras sem música, filmes encalhados para sempre no copião. 

Em muitos desses fragmentos vemos o relampejar do gênio, e esta é uma razão a mais para lamentarmos a perda da Obra. Artistas que nos deixam mais fragmentos do que obras nos fazem pensar naquilo que Manuel Bandeira descrevia como “a vida inteira que poderia ter sido e não foi”, ou lamentar, com Augusto dos Anjos, “a dor da Força desaproveitada, o cantochão dos dínamos profundos, que podendo mover milhões de mundos jazem ainda na estática do Nada!”.