sábado, 14 de março de 2009

0880) Osman Lins e o fragmento (11.1.2006)




(Osman Lins, por Gil Vicente)

Osman Lins diz em algum livro seu que (os termos não são bem estes, mas vá lá) não existe produto literário mais reles do que o Fragmento. 

Sempre tenho um pouco de remorso quando discordo de meus autores preferidos. Por mais que os respeite, nunca me passa pela cabeça que eles possam estar certos e eu errado, mas discordar deles me constrange tanto quanto me constrangia contradizer meu pai em público (coisa que nunca fiz, embora às vezes a língua coçasse que era uma beleza, pelos despautérios que de vez em quando ele dizia).

Eu entendo a idéia de mestre Osman. Ele era um desses indivíduos que têm um vislumbre do Universo e permanecem fiéis a essa idéia de grandeza, à missão de reproduzir o que entreviram dessa enorme Máquina de Idéias. As imagens recorrentes no discurso de Osman são imagens de estruturas monumentais (a Catedral, a Cidade) ou complexas (o Relógio, a Tapeçaria, o Labirinto). Quem desenha ponte-pênsil desdenha quem faz ponta de lápis.

É natural que um arquiteto assim tenha um leve menosprezo pelo fragmento literário, pelo rabisco bem-intencionado que não chegou a se concretizar em obra, por esse embrião de idéia cuja evolução foi sustada pela indolência ou pela inépcia de quem o concebeu. 

Quando o fragmento de texto é medíocre, e sua existência parece sobrecarregar o mundo, não é grande problema, basta descartá-lo e esquecê-lo. Mas o fragmento de texto brilhante nos incomoda porque deixa entrever o talento que o produziu e as alturas a que este talento teria podido chegar, se tivesse tido coragem para encarar a Guerra da Criação.

Osman Lins sempre exigiu o máximo de si e dos outros. Não deve ter sido um sujeito de convivência fácil, porque seus parâmetros estéticos eram muito altos. Os parâmetros éticos também, como vemos em seus demolidores ensaios sobre literatura e mercado editorial (Guerra sem Testemunhas) e sobre o sistema educacional e a indústria cultural no Brasil (Problemas Inculturais Brasileiros, Evangelho na Taba). 

Não admira que ao tratar a criação literária ele fosse impiedoso com o pedacinho, o trechinho, o rascunho, o esboço, a coisa deixada pela metade, o quase-texto.

Se existem muitas obras prontas no mundo, maior ainda deve ser a quantidade das obras abortadas no meio do caminho. Sinfonias inacabadas, capítulos iniciais de romances inconclusos, primeiros-atos de peças que nunca viram o palco, músicas sem letra, letras sem música, filmes encalhados para sempre no copião. 

Em muitos desses fragmentos vemos o relampejar do gênio, e esta é uma razão a mais para lamentarmos a perda da Obra. Artistas que nos deixam mais fragmentos do que obras nos fazem pensar naquilo que Manuel Bandeira descrevia como “a vida inteira que poderia ter sido e não foi”, ou lamentar, com Augusto dos Anjos, “a dor da Força desaproveitada, o cantochão dos dínamos profundos, que podendo mover milhões de mundos jazem ainda na estática do Nada!”.









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