sexta-feira, 19 de junho de 2009

1103) Penumbras do idioma (28.9.2006)



Há um pequeno artigo de Freud (“The Antithetical Sense of Primal Words”, 1910) onde ele comenta uma característica da língua do Antigo Egito, observada pelo filólogo K. Abel. Ao que parece, existiam nessa língua palavras que significavam coisas exatamente opostas. A mesma palavra servia para dizer, p. ex., “quente” e “frio”, ou “forte” e “fraco”. Além disso, havia também palavras compostas de dois sentidos contrários, mas que se referiam a apenas um deles. Por exemplo: a palavra “velhojovem” significando “jovem”, a palavra “pertolonge” significando “longe” e assim por diante. Abel sugere que palavras assim indicam um processo de evolução da língua, processo em que os conceitos vão ficando gradualmente mais nítidos e mais independentes com o passar do tempo.

Freud retoma esta discussão em seu ensaio “The Uncanny” (1919), onde ele começa discutindo o termo alemão “Heimlich”, que tem um duplo significado: algo que é conhecido, familiar, comum, e ao mesmo tempo algo que é secreto, oculto. O “Unheimlich” (em inglês, “the Uncanny”; em português, “o Estranho, o Sinistro”) é uma forma negativa que de certo modo acaba intensificando ambos os conteúdos, contraditórios, da palavra inicial. Freud define o Estranho ou o Sinistro como algo que era familiar mas foi reprimido e ficou oculto, e quando emerge parece-nos ao mesmo tempo estranho e próximo.

Já comentei aqui este conceito (“Freud explica o Unheimlich”, 4.6.2006), quero agora comentar essa questão de palavras contraditórias. Nossa linguagem é cheia delas. No Nordeste, por exemplo, uma solteirona é chamada de “moça velha”, onde “moça” não significa jovem, e sim virgem. Usa-se menos (mas usa-se) o termo “rapaz velho” para um solteirão; “rapaz” no caso não indica que o sujeito é virgem, mas que não constituiu família. Envelheceu na idade sem atingir a maturidade social, por assim dizer.

Quando dizemos “Comi um cachorro-quente frio” não sentimos contradição porque a palavra “quente” incorporou-se ao nome do produto, não é mais indicativa da eventual temperatura dele. O mesmo se dá com termos como “gelo seco”, “carne de soja”, etc., onde os termos são usados comparativamente e não soam como contradição. Ainda assim, nossa linguagem é cheia de “oxímoros”, conjuntos de duas palavras que parecem negar-se mutuamente. O Dr. Mardy Grothe dedica a isto seu saite Oxymoronica (http://www.oxymoronica.com/oxymoralist.shtml), onde lista (em inglês) expressões equivalentes a “fogo amigo”, “aproximadamente igual”, “realidade virtual”, “morto vivo”, “rock clássico” e assim por diante.

Estas expressões não nos levam de volta ao estado remoto e indiferenciado do vocabulário do Antigo Egito. Elas são um estágio mais avançado em que a multiplicidade de usos enriquece as conotações e funções de uma palavra, que pode ser usada fora do contexto original, ou ironicamente, ou comparativamente, ou só num sentido muito específico. Figuras da linguagem – para usar mais um oxímoro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário