terça-feira, 14 de abril de 2009

0974) A razão e a emoção (30.4.2006)





(Rob Gonsalves - "House by the Railroad")

Tempos atrás eu conversava com um poeta, discutindo algum detalhe de um poema dele, não me lembro o quê. Falei: “Tá legal. Mas qual foi a idéia que você tinha em mente com este verso?” E a resposta foi: “Eu não escrevo sobre idéias, idéias são uma coisa muito superficial. Eu quero ir mais fundo, quero atingir as emoções.” Pense num impasse filosófico de primeira grandeza! O camarada achava que as idéias estavam na superfície e as emoções nas profundezas, quando eu acho exatamente o contrário. Por sorte havia uma TV no bar, eu apontei e disse: “Eita! Parece que teve um atentado não-sei-onde!”

Entendo o raciocínio do meu amigo. Acostumado ao freudianismo-de-bolso da imprensa de hoje, ele acha que as idéias são essas coisas que nós tagarelamos no dia-a-dia: se vai chover ou fazer sol, se o dólar vai subir ou descer, se o ataque da Seleção vai deslanchar... E as emoções são aqueles terremotos profundos que brotam do Inconsciente, onde estão guardados os nossos desejos incontroláveis, as nossas paixões em brasa, nossos traumas, sonhos e pesadelos. Se for isso mesmo, até lhe dou razão, mas mesmo assim quero ir mais longe.

Emoção é superfície, é mero sintoma, reação desencadeada em nosso organismo por algo que ocorre em nossa mente. O coração bate mais rápido. O sangue aflora à pele, ou reflui, deixando-a lívida. As mãos ficam frias e suadas. As pupilas se contraem. A respiração se acelera. Tudo isto são sintomas de uma emoção forte, que acompanham nossos momentos de raiva, medo, alegria, excitação sexual, ansiedade... Sentimos que estamos vivos. É o animal em nós que desperta, a memória remota de milhões de anos lutando pela sobrevivência.

A literatura, no entanto, não é feita com a emoção, e sim com o intelecto. A emoção fornece apenas a vontade imperiosa de escrever; mas o valor literário de um texto se deve ao modo como organizamos as palavras para gerar emoção no leitor. Claro que nossa própria emoção pressiona o intelecto na hora de escrever, mas arrrisco-me a dizer que tal emoção deve ser mantida sob controle. É como uma criança pulando e pedindo: “Vamos, pai! Arma logo o meu trenzinho!” e o pai dizendo, “Calma, está quase pronto, faltam só algumas peças”. Se não tivermos esse lado intelectual, tranquilo, discriminador (capaz de distinguir o que serve e o que não serve), jamais produziremos literatura de boa qualidade: escreveremos apenas um tumulto desencontrado, repleto de clichês, repleto de citações conscientes ou inconscientes de versos ou frases que um dia nos produziram uma emoção parecida.

Imagine um pianista. Já vi gente sair de uma sala de concerto queixando-se: “É um porre esse pianista, não tem a menor emoção”. E em outras vezes pessoas entusiasmadas: “Que concertista maravilhoso! Que emoção intensa!” Pois literatura é como piano. Pode-se fazer literatura com emoção ou sem ela: mas sem técnica, até hoje, eu sinceramente não vi.





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