domingo, 2 de novembro de 2008

0626) “Desventuras em Série” (22.3.2005)



Literatura infantil é uma das formas mais difíceis de literatura, pela simples razão de que é feita por adultos, e a esmagadora maioria dos adultos não tem a menor idéia de como uma criança pensa. É natural. Tornar-se adulto significa fazer em si próprio uma lavagem cerebral para eliminar da memória todo o pesadelo que é ser criança num mundo que pertence aos adultos. Me lembra aquele conto de ficção científica onde os astronautas terrestres num planeta remoto vivem cercados de criaturas monstruosas, e concluem que sua única chance de sobreviverem ali é transformando-se nelas. Toda criança inteligente experimenta um dia um calafrio de terror ao perceber que para se tornar adulta talvez tenha que se tornar uma pessoa tão hipócrita e obtusa quanto alguns dos adultos que a cercam.

Os três órfãos Baudelaire do filme Desventuras em Série entram na longa linha de heróis da literatura (e agora do cinema) infantil que podem ser descritos como As Crianças Jogadas na Jaula dos Adultos. Um incêndio destrói a mansão de seus pais e os deixa órfãos, à mercê do terrível Conde Olaf, um canastrão caricato que a partir daí fará de tudo para livrar-se das crianças e herdar sua fortuna. O Conde Olaf é interpretado por Jim Carey, careteiro como sempre, mas perfeitamente sintonizado com o tom do filme. A direção artística, fotografia e cenografia do filme são nota dez. O roteiro tenta resumir três livros numa só história, e o resultado é um tanto atropelado e descontínuo.

Ao que parece, a série completa de livros de Lemony Snicket terá 13 volumes. São divertidos, caricaturais, sombrios, melodramaticamente pessimistas. Por outro lado, qualquer leitor sabe que tudo aquilo vai acabar bem, tal como acontece nos filmes da Família Adams, nos livros ilustrados de Edward Gorey ou nas histórias de terror de Tim Burton. São produtos semelhantes para leitores/espectadores de faixas de idade um pouco diferentes. Dirigem-se àqueles garotos e garotas, um pouco sádicos mas fundamentalmente bem-humorados e otimistas, que têm uma queda pelo nosso lado monstruoso, ameaçador, gótico. Gente que adora vampiros e lobisomens, porque sabe que não existem, mas vê com repulsa os serial-killers e outros monstros demasiado reais.

Falo com conhecimento de causa, porque fui (e de certo modo ainda sou) um desses garotos, gosto de mansões empoeiradas cheias de passagens secretas e armadilhas maquiavélicas. Gosto de vilões caricaturais que se disfarçam tão bem que nenhum adulto é capaz de reconhecê-los. Lemony Snicket batiza seus órfãos de Baudelaire; o inepto tutor das crianças é Mr. Poe. Fico com a vaga esperança de que meu filho, que já está no nono livro da série, reencontrará estes sobrenomes quando crescer, sentir-se-á afeiçoado a eles, e terá neles duas portas para o mundo sombrio de verdade, para o que de fato acontece na mente de quem foi um dia uma criança obrigada a enfrentar sozinha as armadilhas do mundo e a obtusidade dos adultos.

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