(desenho de Tomi Ungerer)
Dizem que Jacques Lacan definiu assim o amor: “Amar é dar algo que não se tem a uma pessoa que não quer receber.” As definições de amor são tão subjetivas quanto preferências culinárias ou futebolísticas. Vai daí, proponho uma variante: “Amar é dar algo que a gente não sabia que tinha a uma pessoa que não sabia que precisava.” Porque se a gente prestar atenção vai perceber que o amor é assim: um enriquecimento emocional e espiritual para ambos os envolvidos, uma expansão do que eles tinham sido até então. Como se cada um descobrisse facetas de si mesmo que desconhecia, novas maneiras de ser, de reagir e de pensar.
Se não for assim, não adianta muito, não é mesmo? A tragédia dos grandes conquistadores, como Don Juan ou Casanova, é o fato de que eles são imunes a esse tipo de convivência, que exige em primeiríssimo lugar um enorme interesse pela outra pessoa. Casanova, ao “traçar” uma madame da corte atrás da outra, estava interessado apenas no ato e no fato, e para ele a mulher era um mero complemento. Colin Wilson, em Origins of the Sexual Impulse (1963) descreve argutamente Casanova e seus epígonos como indivíduos dotados de muita vitalidade e baixa auto-estima. As conquistas sucessivas servem-lhe como reposições momentâneas para esse amor próprio que lhes é eternamente deficitário. Existe, como observa Wilson, uma semelhança essencial entre o conquistador e o “serial killer”. É a reiteração daquele ato que lhe interessa, e a pessoa que dele participa é o que menos importa.
O amor, essa atitude de interesse inesgotável pela pessoa que está “do outro lado” é, aliás, a mesma relação recíproca que deve existe idealmente entre um escritor e o leitor. A relação literária é uma relação amorosa, sem sexo, sem corpo, mas impregnada de um profundo e inesgotável interesse pela outra pessoa. Eu sinto esse interesse pela pessoa de Jorge Luís Borges ou de Philip K. Dick, pela pessoa de Augusto dos Anjos ou de Agatha Christie. Tudo que esses indivíduos sentiram, pensaram, experimentaram e viveram me interessa. O que eu sinto por eles é amor, não o amor-desejo, amor-erótico, mas o amor-de-almas. Por razões misteriosas e inexplicáveis, eu me identifico com eles, por mais diferentes que possam ser uns dos outros.
Amar um autor, contudo, é muito fácil. Um autor é visibilíssimo, através de livros, entrevistas, biografias. Mais complicada é a relação inversa, o amor que um escritor sente pelo seu leitor. Como sentir amor por essa coisa abstrata e sem rosto? Muitos autores tentam escrever para um “leitor ideal” (ver “Cinqüenta anos falando sozinho”, 20 de outubro) que eles próprios constroem em sua mente. Muitas vezes, o ato de escrever envolve esse esforço de dedicar algo a alguém cuja presença só podemos imaginar. Escrever, nesses casos, é dar algo que a gente não sabe se vai ter ou não, a uma pessoa que a gente nem sequer sabe que existe.