A Editora Record está lançando a coleção “Clássicos da Aventura”, que abre com o romance Ela, de H. Rider Haggard. O livro já teve uma edição brasileira nos anos 1950, nas coleções de livros-de-bolso da “Edições de Ouro” (Tecnoprint), com o título Ela, a feiticeira. É um clássico do romance de aventuras, por um autor relativamente esquecido. Digo “relativamente” porque os romances de Haggard têm sido de vez em quando adaptados para o cinema, com resultados invariavelmente desastrosos. Seu clássico As minas do Rei Salomão, que tem uma primorosa tradução portuguesa de Eça de Queirós, foi filmado de maneira ridícula (com Richard Chamberlain no papel), em tom de comédia, numa tentativa frustrada de imitar o sucesso de Indiana Jones. E seu personagem mais conhecido, Allan Quatermain, apareceu recentemente, vivido por Sean Connery, no caótico A Liga Extraordinária, reunião de super-heróis que banalizou e distorceu uma boa aventura de quadrinhos escrita por Alan Moore.
Ela (She) foi escrito em 1887, e é um dos pontos altos daquela literatura vitoriana em que exploradores se embrenham nos confins da África em busca de aventuras. É o lado deslumbrante da aventura do colonialismo, onde impecáveis cavalheiros britânicos enfrentam perigos, combatem povos selvagens, e descobrem tesouros espantosos, além de vestígios ou remanescentes de antigas civilizações. Ela nos conta a aventura de Horace Holly e seu pupilo Leo Vincey, que no curso de uma dessas aventuras vão parar no reino perdido de Kôr, governado por uma rainha ímortal, de tal beleza que só pode ser vista através de véus. Dotada de poderes sobrenaturais, a rainha Ayesha descobre que Leo Vincey é a reencarnação do seu amado, que havia morrido milhares de anos antes, e cujo regresso ela continuava a esperar.
Diz-se que quando Haggard terminou seu romance, levou o manuscrito ao escritório do seu editor, jogou-o em cima da mesa e disse: “Aí está o livro que fará meu nome ser lembrado no futuro.” Além de ser uma excelente história de aventuras, “Ela” foi interpretado também como um raio-X no inconsciente de sua época. Carl Jung viu em Ayesha a personificação da “anima”, da imagem feminina que mobiliza o desejo e as energias vitais de todos os homens. Ela é irresistível, dominadora; é a personificação “dos humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e o relacionamento com o inconsciente”. Bela, cruel, apaixonada, Ayesha tornou-se um símbolo da feminilidade sem freios e sem censuras. A sociedade que produziu Sherlock Holmes, símbolo do racionalismo frio e impassível, despojado de emoções, produziu também a sua contrapartida. No mundo vitoriano, de moralidade repressora e hipocrisias públicas, os arquétipos emergiam em estado puro, como jorros de lava do inconsciente subterrâneo.