terça-feira, 8 de abril de 2008

0359) Calvino e a multiplicidade (14.5.2004)


(Algorithmic Art)

A quinta das Seis propostas para o próximo milênio escolhidas por Ítalo Calvino é a multiplicidade, cujo habitat natural ele situa no romance, este gênero literário que, como o Conde Drácula, tantas vezes tenha sua morte proclamada quantas retorna, mais vivo do que nunca, quando menos se espera. Calvino define o romance contemporâneo “como enciclopédia, como método de conhecimento, e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo.” O romance não seria um gênero com uma fórmula nítida, mas um campo de testes e aplicações de fórmulas; não seria um objeto, e sim um atrator de objetos.

O exemplo colhido por Calvino para dar o pontapé inicial em sua idéia de multiplicidade é o do romancista italiano Carlo Emilio Gadda, o qual, para ele, ilustra bem algumas tendências do romance do século 20: 1) a superposição, ou uso simultâneo, de diferentes níveis de linguagem; 2) a consciência do mundo como um “sistema de sistemas” que se influenciam mutuamente; 3) a percepção de cada objeto, evento ou personagem como o “centro de uma rede de relações” cuja descrição pode se estender ao infinito; 4) uma voracidade em absorver diferentes ramos do saber (que ele exemplifica com Flaubert lendo mais de 1.500 livros para escrever Bouvard e Pécuchet).

Calvino vê na literatura de hoje esta busca quixotesca pelo mais-infinito e pelo menos-infinito: “Sempre me fascinou o fato de que Mallarmé, que em seus versos tinha conseguido dar uma incomparável forma cristalina ao nada, tenha dedicado seus últimos anos de vida a conceber um livro absoluto que seria o fim último do universo...” Ele lembra Novalis, que também se propôs escrever um “livro absoluto”, ora visto como uma “enciclopedística”, ora como uma “Bíblia”, e lembra Humboldt, que em seu Kosmos se propôs a produzir uma “descrição do universo físico”. No entanto, ele acha que as tentativas mais bem sucedidas são aquelas (como em James Joyce) onde o livro, em vez de tentar trazer o universo inteiro para dentro de si, abre-se para ele: “o que conta não é o seu encerrar-se numa figura harmoniosa, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial.”

Ele vê nos contos de Jorge Luís Borges, “textos contidos em poucas páginas”, a melhor concretização dessa literatura múltipla, ponto focal da sensibilidade poética e da consciência científica: “cada texto seu contém um modelo do universo ou de um atributo do universo – o infinito, o inumerável, o tempo, eterno ou compreendido simultaneamente ou cíclico”. Seus contos são equivalentes a “romances extensos ou extensíssimos, nos quais a densidade de concentração se reproduz em cada parte separada”. A multiplicidade, portanto, não está condicionada à extensão do texto, e sim à capacidade do autor de lidar com diferentes categorias de pensamento e diferentes discursos narrativos.

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