É um texto famoso de Fernando Pessoa, desses que se incorporam à memória cultural de um povo. Cito de memória: “Navegadores antigos tinham um lema: navegar é preciso, viver não é preciso. Quero para mim este lema, adaptando-o à minha vida e à minha missão no mundo: viver não é necessário, o que é necessário é criar.”
Para a minha geração, a frase lembrada por Pessoa foi popularizada por Caetano Veloso em sua canção “Os argonautas”, no seu “disco branco” saído em 1969, logo após sua prisão pelo regime militar.
Nenhum de nós tinha a menor idéia de quem fosse Fernando Pessoa. Era apenas um nome que Caetano tinha bradado, enfurecido, para a platéia que o vaiava durante sua interpretação de “É proibido proibir”, num daqueles festivais. Com a vaia, o cantor interrompeu o canto e disparou na direção da platéia um monólogo a plenos pulmões com uns dez minutos de duração, no qual, a certa altura, gritava: “Hoje não tem Fernando Pessoa!”
Fernando Pessoa? Quem diabo é esse cara? Corremos todos para as enciclopédias e descobrimos que era um “poeta modernista português, falecido em 1935”. Ficamos mais perplexos ainda. Oi... quer dizer que o Modernismo tinha chegado em Portugal?! Pensávamos que Portugal tinha estacionado em Camões e Gil Vicente.
Aí saiu um compacto simples, tendo no lado B a faixa “Ambiente de festival”, com a vaia do teatro e a diatribe de Caetano, e no lado A a canção “É proibido proibir” (“A mãe da virgem diz que não... e o anúncio da televisão... e estava escrito no portão...”), na qual, a certa altura, brotava a voz surda e angustiada de Caetano recitando: “Esperai! Cai no areal e na hora adversa que Deus concede aos seus...” Eram os versos do poema “D. Sebastião”, na parte III de Mensagem, único livro publicado em vida por Fernando Pessoa.
Até hoje não sei o que diabo têm a ver Dom Sebastião e o slogan “É proibido proibir”; mas foi este talvez o primeiro link “pessoano” na obra de Caetano, retomado depois com “Os argonautas”: “O barco... meu coração não agüenta tanta tormenta, alegria, meu coração não contenta...”
"Os Argonautas":
https://www.youtube.com/watch?v=Pi34gRiCt_Y
Era um fado nostálgico em tom menor, ao som de bandolins, onde se misturavam temas como a navegação sem rumo e o vampirismo (“O barulho do meu dente em tua veia... o sangue, o charco...”). E o refrão, em tom maior ascendente, triunfante: “Navegar é preciso... Viver não é preciso!”
Só muitos anos depois é que vi comentários sobre a ambigüidade da frase. “Precisão” pode significar necessidade: navegar é necessário, viver não é necessário. Mas pode significar também exatidão, e aí teríamos: navegar é uma ciência exata, viver não o é. O que está muito mais de acordo com os argonautas da Escola de Sagres, com suas bússolas, astrolábios e portulanos.
Naufrágios, calmarias e tempestades, no entanto, nos mostram a ingenuidade dessa distinção. Viver e navegar estão submetidos ao mesmo princípio de incerteza. Não nos esqueçamos de que para navegar é preciso viver, não é preciso?
Era um fado nostálgico em tom menor, ao som de bandolins, onde se misturavam temas como a navegação sem rumo e o vampirismo (“O barulho do meu dente em tua veia... o sangue, o charco...”). E o refrão, em tom maior ascendente, triunfante: “Navegar é preciso... Viver não é preciso!”
Só muitos anos depois é que vi comentários sobre a ambigüidade da frase. “Precisão” pode significar necessidade: navegar é necessário, viver não é necessário. Mas pode significar também exatidão, e aí teríamos: navegar é uma ciência exata, viver não o é. O que está muito mais de acordo com os argonautas da Escola de Sagres, com suas bússolas, astrolábios e portulanos.
Naufrágios, calmarias e tempestades, no entanto, nos mostram a ingenuidade dessa distinção. Viver e navegar estão submetidos ao mesmo princípio de incerteza. Não nos esqueçamos de que para navegar é preciso viver, não é preciso?
Excelente texto, como muitos seus. Aliás, depois que o divulguei a alguns amigos, um comentário comum é de que o Mundo Fantasmo só pode ser lido em momentos de ócio, porque começando, não se consegue parar, tal a qualidade e variedade do blog. Continuo seu fiel leitor.
ResponderExcluirInteressantíssima a observação sobre exatidão. Eu jamais tinha notado esse enfoque. Sempre ouvi os versos de Caetano como necessidade.
ResponderExcluirE também "precisa" sua colocação sobre ser necessário viver para conseguir navegar, hehehehe.
Percebam que a frase está na moda, se considerarmos navegar em termos internéticos. E nesse caso poderíamos considerar viver como a vida fora do PC. Ou seja, para muitos viciados por aí, não há necessidade de vida fora da Internet, pois através dela podemos trabalhar, comprar alimentos, nos divertir, ter uma vida virtual.
Ademais, concordo com o Ítalo. Eu já desisti de ler os textos antigos, apenas passeei em alguns com temas que me atraíram. Mas acompanharei de agora em diante. =)
Obrigado a ambos pela leitura e pelas observações. Eu não tinha atentado para o "navegar" no sentido internético, que acabou atualizando a frase de FP de maneira inesperada. Será que existe por aí alguma saite, blog ou webring chamado "Navegar é preciso"?...
ResponderExcluirBem, achei três links interessantes:
ResponderExcluir- o primeiro deles fala da poesia do FP, e atenta sobre o sentido da palavra "preciso". Acessem aqui;
- o segundo fala sobre navegar no sentido velejador da palavra e pode ser lido aqui;
- o último é um artigo, sim, sobre navegar na Internet. Não é bem um site, mas... vejam aqui.
Bráulio,
ResponderExcluirTrago-te, transplantado dos jardins lá do CANTO GERAL:
GIRASSÓIS
Preciso a primeira página
Preciso Picasso, Pessoa e girassol
Preciso a virgem vermelha lágrima
Preciso o peixe, a pedra e o anzol.
Preciso a terceira margem
Preciso coragem, comida e girassol
Preciso viajar a última viagem
Preciso poesia, música e futebol.
Preciso a pílula e o elefante
Preciso a coruja, a noite e o girassol
Preciso amores eternos e diamantes
Passar a tarde inteira em teu lençol.
Preciso o cacto e a primavera
Preciso o vento, o vinho e o girassol
Preciso o pêssego, a morena e a quimera
Preciso a pétala íntima, manhã com sol.
(Dedicado ao professor, poeta e engenheiro AL-Chaer de Goiânia)
(Pedro Ramúcio)
*
Abraços precisos e necessários,
Ramúcio.
Infelizmente, Braulio, a glosa simpática quanto ao "preciso" no lema "navegar é preciso, viver não é preciso", ter também a ver com a questão da precisão, da falta de bússola, mapas etc., NÃO tem fundamento histórico algum, sendo invencionismo recente. O lema em português é tradução direta do latim "navigare necesse est, vivere non necesse", esta do grego "πλεῖν ανάγκη,ζῆν ούκ ανάγκη" e que era divisa dos marinheiros fenícios de Tiro, adotada por Pompeu, o rival de César, e tanto no latim de onde a haurimos, quanto no grego de onde eles a houveram [o fenício se perdeu, da língua toda somente sobraram algumas palavras e frases soltas e não essa], não há mínima relação com "precisão" no sentido de navegação por instrumentos, ambos falam apenas em necessidade ("necesse" ou "ανάγκη" — você sabe "anánke", a 'necessidade' como 'destino', 'fado', que escreve a cigana Esmeralda em "Nossa Senhora de Paris", de Victor Hugo, mais conhecida como "O Corcunda de Notre Dame"). Enfim, isso tudo de navegação imprecisa é bonitinho, mas completamente falacioso e balela do ponto de vista histórico. Abraços do seu chato de sempre, Joaquim.
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