Já vi várias vezes, no cinema e na TV, o trabalho de dubladores profissionais, e tiro o chapéu para essa rapaziada. Num certo sentido, é mais difícil ser dublador do que ser ator. O Ator, quando dá suas falas no filme, está vestido a caráter, está contracenando de verdade com outros atores, está mergulhado na ilusão momentânea da cena. O Dublador não: está com o texto na estantezinha à esquerda, um cronômetro digital à direita, uma tela à frente e fones nos ouvidos. É muito mais frio, mais entrecortado. Dois atores que berram um para o outro durante uma luta de espadas ofegam porque estão ofegando mesmo; já os dubladores têm que recriar não só a intenção emocional da voz, mas também a falta de fôlego. E assim por diante.
A dublagem brasileira pode até não ser a melhor do mundo, mas já vi trabalhos muito bons. E no entanto... por que motivo a gente tem (eu pelo menos tenho) uma certa rejeição aos filmes dublados? Por que motivo a gente sente que existe ali alguma coisa de falso, alguma coisa faltando, alguma coisa que não bate com o que era para ser?
Os cinéfilos mais puristas queixam-se da ausência da voz de seus atores preferidos. Jorge Luís Borges (em Discusión) comenta as criaturas híbridas da mitologia (a Quimera, etc.) e depois diz: “Hollywood acaba de enriquecer este inútil museu teratológico; por obra de um artifício maligno chamado dublagem, propõe monstros que combinam as ilustres feições de Greta Garbo com a voz de Aldonza Lorenzo.” Concordo que a voz da sueca toca um diapasão oculto que a das suas dubladoras nem sonha; mas não é só isso.
O que de fato nos incomoda, ao ouvir frases em português coloquial emergindo dos lábios de Sean Connery, Harrison Ford ou quem quer que seja, é percebermos que um ator não é uma criatura una e indivisível, alguém que surge por inteiro e desaparece por inteiro. Um ator é uma combinação de camadas áudio-visuais (feições, movimentos, voz, etc.) que podem ser separadas entre si, mantendo-se umas, modificando-se outras. Percebemos que aquilo foi mexido; houve uma interferência no processo que produz em nós a ilusão pela qual pagamos. E, se houve esse nível de interferência, quem nos garante que não há outro? Quem nos garante que aquela que vemos na tela é mesmo Isabela Rosselini, e não uma sósia? (Admito que um mundo onde existam sósias de Isabela Rosselini não tem muito do que se queixar) Quem nos garante que não é computação gráfica?
O grau de interferência possível na imagem e no som do cinema aumenta exponencialmente a cada década. Os filmes dublados não são a primeira, nem os colorizados (já vi Casablanca em cores, A colina dos homens perdidos em cores) a pior das interferências que estão por vir. Quem impõe seu uso é a indústria, mas a Arte deveria encampá-las, como o fêz há um século. Talvez o que nos incomoda na dublagem é nunca termos visto um só exemplo em que a voz de um ator tenha sido substituída para que disto resultasse um efeito estético.
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