segunda-feira, 10 de março de 2008

0184) O estrangeiro (23.10.2003)

Existe um certo heroísmo no indivíduo que deixa para trás um mundo ao qual pertencia, e se transfere para um mundo completamente diferente. O migrante, principalmente o migrante involuntário, é sempre o herói de um poema épico. Pena que desse poema existam apenas meia dúzia de versões orais, que circulam ao longo das gerações de uma família até se esvaírem no esquecimento. Muitas vezes, netos e bisnetos mantêm registros cuidadosos das aventuras e desventuras de seus antepassados, um pouco por orgulho e afeto, e para ter certeza de que aquilo tudo não foi em vão.

Os que fogem da terra natal por causa de uma seca, de uma guerra, de uma perseguição racial ou política, sabem muitas vezes que estão num caminho sem volta. Vão para o outro lado do mundo; chegam ali ainda jovens, estudam, trabalham, casam com alguém local, criam ali suas famílias, envelhecem, ficam pensativos. Uns voltam a visitar, de vez em quando, o seu antigo mundo. Outros recusam-se a pensar nele, a falar sobre ele. Outros encolhem os ombros, indiferentes. Outros criam ficções sobre aqueles tempos remotos e acabam por acreditar nelas. Cada um tem seu modo de lidar com a existência desse mundo extra em seu passado.

Estou misturando numa só panela retirantes, exilados, refugiados políticos; não importa. Todos eles são o Estrangeiro, o sujeito que veio de fora, o indivíduo vindo de um lugar que não conhecemos, e com um passado de que é a única testemunha. No mundo que escolhe para viver, o Estrangeiro pode vir a ter uma aura de mistério, à qual alguns podem reagir com desconfiança, outros com curiosidade. Em linguagem dramatúrgica, diz-se às vezes que um personagem “tem um passado”. Todo mundo tem um passado, mas nesses casos particulares subentende-se algo que está oculto nesse passado mas que irá ser revelado ao longo da narrativa. Nos antigos folhetins, volta e meia aparece um personagem “recém-chegado das colônias, onde passara os últimos vinte anos...” Um passado assim é um baú trancado, não se sabe o que pode conter. No momento do aperreio, o dramaturgo abrirá esse baú para tirar dali uma solução de enredo.

Grupos de migrantes costumam agregar-se, criar rituais, formar pequenas comunidades artificiais onde tanto podem desenvolver um apoio mútuo quanto a neurose coletiva. Alguns livros de Julio Cortazar, como O jogo da amarelinha ou Livro de Manuel reproduzem de forma notável a vida de intelectuais argentinos morando em Paris. A falta de ajustamento ao novo mundo pode levar a pesadelos como os do protagonista de O Inquilino de Roman Polanski ou a tragédia como a de O homem do prego de Sidney Lumet. Por mais que tente se misturar, o estrangeiro vê as coisas de um modo diferente, sente diferente, reage diferente. Cedo ou tarde, alguma coisa acaba por trair a existência daquele passado, daquele outro mundo onde só ele sabe o que aconteceu, e cuja simples existência nos inquieta.

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