sexta-feira, 27 de setembro de 2024

5106) O susto com o mundo (27.9.2024)



(Roy Andersson, About Endlessness)

 
A literatura da imaginação, que abarca muitos gêneros editoriais (o fantástico, a ficção científica, o horror sobrenatural, o realismo mágico, a ficção absurdista, etc.) depende tanto da imaginação do leitor quanto da imaginação do autor. 
 
De nada adianta um romancista executar piruetas e acrobacias do pensamento se ele não conta com um leitor capaz não apenas de acompanhá-lo nesses voos, mas de ter prazer com isto. 
 
No caso da ficção científica, é preciso lembrar que a ficção não pede emprestada à ciência apenas a disciplina, o amor pela exatidão, o raciocínio rigoroso. Tudo isto pode vir no pacote, mas haverá sempre uma lacuna se não vier também a fascinação pelo mistério e pelo desconhecido, o prazer pela aventura mental, a busca do conhecimento, a aceitação do real mesmo quando ele parece absurdo. Tudo isto é também da essência do conhecimento científico. 



 
Richard Feynman, um dos cientistas de cabeça mais aberta que já existiram, dizia:
 
Eu não me sinto amedrontado pelo fato de não saber alguma coisa, pelo fato de estar perdido num universo misterioso, sem sentido, que é o que de fato acontece, pelo menos do meu ponto de vista. Pode ser que seja assim. Isso não me amedronta. 
 
Sem mistério não há possibilidade de descoberta. A ciência não é apenas a propensão a ensinar, é a disposição para aprender. O verdadeiro cientista sempre começa dizendo: “Não sei, e isto me dá vontade de saber.” 




Ray Bradbury colocou no seu clássico As Crônicas Marcianas (1950) esta epígrafe:
 
É bom renovar nossa capacidade de assombro, disse o filósofo. A era espacial nos transformou em crianças novamente. 
 
Essa capacidade de assombro é o que caracteriza tanto o cientista quanto o ficcionista. Conta-se que Galileu Galilei, ainda bem jovem, foi desprezado por uma namorada e decidiu, como todo jovem, atirar-se no rio para matá-la de remorso. Ao se debruçar na ponte, criando coragem para o salto final, ele ficou observando os objetos que desciam arrastados pela correnteza, e percebeu que objetos de formato diferente desciam lado a lado, mas com velocidades diferentes. Por quê?... 
 
Foi o que bastou para ele esquecer o suicídio, a namorada, e correr para casa para esboçar o cálculo matemático daquele movimento. 
 
Este episódio é verdadeiro? Pouco importa (está no capítulo inicial de A Vida de Galileu, de Zsolt Harsányi). É verdadeiro, mesmo que seja ficção, e pode nos ensinar tanto quanto um romance de Tolstoi ou de Graciliano. É uma experiência humana, em forma de ficção. A boa ficção não precisa ser verdade “lá fora”, desde que seja verdadeira “aqui dentro”. 



George R. R. Martin, o criador de Game of Thrones, começou sua carreira literária como autor de ficção científica, que para ele cumpre uma função muito semelhante à da literatura de fantasia, embora com outros recursos. 
 
A FC é a nova fantasia. A fantasia mítica, tradicional, preenchia uma necessidade de maravilhamento por parte do leitor, uma necessidade de estranheza, de algo que a ficção realista comum não podia lhe dar. Historicamente, ela usava lendas como as dos fantasmas e dos elfos, deuses pagãos com os quais convivemos por milhares de anos, e nos quais as pessoas acreditavam pra valer. 
(Locus, dezembro de 2000, trad. BT)
 
O desenvolvimento da ciência e da filosofia foi de certa forma “encurtando” nosso mundo mental, tornando-o mais próximo, mais nítido e mais explicável, mas por outro lado bem menor que o mundo imaginativo da Antiguidade. Esse processo não parou até agora. Ganhamos de um lado – a Ciência nos permite manipular a Natureza – mas perdemos por outro, o lado imaginativo e simbólico. 
 
Tenho a impressão de que perdemos nossa capacidade de assombro. Antes, havia as Sete Maravilhas do Mundo. Você podia viajar e contemplar uma dessas coisas capazes de produzir deslumbramento, espanto. O mundo em que vivemos hoje não tem Sete Maravilhas. Se você parar pra pensar, vai perceber que temos um milhão de maravilhas: edifícios, monumentos... Está tudo ao nosso redor, mas não nos afeta. E por isso começamos a sonhar sonhos cada vez mais espantosos. E criamos artefatos como o Ringworld.  (idem) 
 
Martin se refere ao ciclo de romances de Larry Niven sobre o “Ringworld”, uma construção gigantesca que a Humanidade descobre em nossa galáxia: um anel artificial, metálico, com cerca de 300 milhões de quilômetros de diâmetro, tendo ao centro um sol. A FC está cheia dessas “macroestruturas” ou “grandes objetos mudos” cujas meras dimensões causam tontura. 


 (R
ingworld)
 

Um balanço dessas misteriosas maravilhas artificiais está aqui:
https://sf-encyclopedia.com/entry/macrostructures
 
Um aspecto interessante de toda a gigantesca aventura humana na conquista do espaço (o avião, o foguete, os satélites artificiais, o pouso na Lua, os super-telescópios, a Estação Espacial em órbita, etc.) é que as descobertas da ciência são pautadas pela imaginação da literatura. É frequente alguém observar que o escritor A ou B se equivocou nos detalhes técnicos de seu romance espacial escrito há meio século ou mais. Essa crítica esquece que cabe à literatura a imaginação em larga escala, não a profecia do detalhe técnico. O voo espacial é um problema imaginado por escritores e resolvido por cientistas. 



Dizia o Padre António Vieira:
 
"Dizem os filósofos que a admiração é filha da ignorância e mãe da ciência. Filha da ignorância, porque ninguém se admira senão das coisas que ignora, principalmente se são grandes; e mãe da ciência, porque, admirados os homens das mesmas coisas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas até as alcançar, e isto é o que se chama ciência. Como filha da ignorância, me ensinará a mesma admiração a perguntar; e como mãe da ciência, a responder, posto que tão alta seja a segunda parte, como profunda a primeira. " 
(Padre António Vieira)
 
A literatura pauta a ciência, não por um processo organizado e metódico, mas porque ma imaginação dos escritores VALE TUDO. Ela parte ao mesmo tempo em todas as direções possíveis, excita a imaginação de leitores jovens, e são alguns destes que no futuro se tornarão cientistas e se dedicarão a tornar real um ou outro detalhe (quando este é factível, realizável) do que era apenas uma aventura fantástica. 
 
Nem tudo pode virar ciência. O foguete e a viagem à Lua foram concretizados. A máquina do tempo e a teleportagem instantânea talvez nunca o sejam. (Sou cético – aposto que nunca existirão.) O que de fato se realiza, porém, deve igualmente à imaginação de uns e ao senso prático dos que vieram depois. 
 
Tanto o cientista quanto o ficcionista devem ser capazes de se assustar com o mundo. Um susto que se transforma em interrogação, a interrogação em curiosidade, a curiosidade em pesquisa, a pesquisa em descoberta. 

 
Dizia G. K. Chesterton, em Tremendous Trifles:
 
O mundo nunca sofrerá uma escassez de maravilhas, e sim uma escassez de maravilhamento. Devíamos ser capazes de nos maravilhar com as coisas permanentes, e não com a simples exceção. Devíamos nos espantar com o sol, não com o eclipse. Devíamos nos assombrar menos diante de um terremoto, e mais com a própria terra. O que é maravilhoso na infância é que para as crianças tudo é fonte de assombro. Seu mundo não é simplesmente um mundo cheio de milagres, mas um mundo milagroso. 
 
Essa capacidade de se maravilhar – que na ficção científica recebeu o nome de “sense of wonder” – não é privilégio da FC. Está presente em outros tantos poetas e prosadores do mainstream. É aquilo que Carlos Drummond de Andrade chamava “o sentimento do mundo”, e que ele glosou de forma melancólica em poemas como “A Máquina do Mundo”, ecoando um deslumbramento terrífico experimentado por Augusto dos Anjos em “As Cismas do Destino”. 
 
É o que fazia Guimarães Rosa, outro menino permanentemente fascinado pelas coisas mais pequeninas da existência, dizer, arrebatado: 
 
Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes,
é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande.
(“Grande Sertão: Veredas”)
 
Sem esse susto e sem essa descoberta é possível escrever coisas belas e importantes sobre o mundo e a vida. Mas quem passa por essas epifanias escreve algo que é substancialmente diferente, algo que atrai um certo tipo de leitor como se fosse um campo magnético ou gravitacional. 


(G
uimarães Rosa)
 



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