terça-feira, 24 de setembro de 2024

5105) A palavra incontornável (24.9.2024)



 
De vez em quando o povo descobre (ou inventa) uma palavra. Ela começa com um susto-de-novidade, projetando uma luz diferente e interessante na frase onde se instala. “Que maneira legal de dizer isto”, pensam as pessoas, e se danam a usá-la a torto e a direito. 
 
É nova.  É diferente.  Desperta a atenção de quem ouve, e é sempre bom ter um jeito-de-dizer capaz de arrancar as pessoas do piloto-automático. Tirar as pessoas do transe-zumbiforme em que elas parecem estar mergulhadas, até mesmo quando estão andando, olhando, falando alto. 
 
É o caso atual da palavra “incontornável”. Num efeito curiosamente metalinguístico, ficou difícil contornar essa palavra, que volta e meia insiste em se postar à nossa frente, mãos nos quadris, atitude desafiadora. Não importam as voltas e volteios do nosso discurso verbal, a gente acaba indo na direção dela, tentando contorná-la como um motorista contorna um girador, mas... debalde. 
 
Depois que esbarrei nela cinco vezes seguidas antes das três da tarde, nas redes sociais, fiz uma promessa muda de nunca utilizá-la. Percebi que já estava se fossilizando em clichê, adquirindo as mesmas propriedade anti-pensantes da maioria do nosso vocabulário comum. Estava indo para a mesma prateleira onde já estão, por exemplo, instigante e camadas. 
 
“Camadas” é a besta-sinistra do meu confrade Lira Neto, cuidador do idioma, a quem irrita a onipresença dessa metáfora em tudo quanto é assunto. Tudo hoje em dia se define em termos de “camadas”. 


 

Há, de fato, muitas camadas superpostas no uso desse termo.  No começo de tudo, foi útil trazer esse aspecto para o meio da discussão, porque todo mundo começou a admitir que, sim, não só no mundo físico como no mundo das idéias tudo se organiza em películas superpostas. Tudo é constituído de layers, como as cascas geológicas que se recobrem umas às outras em nossos continentes. Por baixo de alguma coisa há sempre uma coisa diferente. 
 
Já disse algum pensador que se arranharmos a superfície de um cínico vamos sempre encontrar um idealista desiludido. E Fausto Fawcett, o Bardo Cibernético de Copacabana, já observou que se a gente raspar um Jetson vai encontrar por baixo um Flintstone. Camadas. 
 
Por que apareceu, de um momento para outro, essa necessidade de definir tudo em termos de camadas? Porque se trata de uma palavra instigante, e aí chegamos a esse outro piercing verbal, penduricalho que, por volta dos anos 1980, todo mundo trazia na ponta da língua. 
 
Falei disso aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/01/0755-palavra-instigante-1982005.html
 
São palavras que já existiam no idioma mas estavam meio que na despensa ou no freezer, e quando alguém lhes dá uma requentada e as traz para o centro da mesa não chegam pra quem quer. 
 
É longa a lista de palavras atualmente na moda, e já com verniz de clichê, a ponto de franzir a testa de muita gente.  Ressignificar.  Potente.  Território.  Narrativa.  Imersão.  Literalmente.  Icônico.  Multifacetado.  Resiliência.  Empoderamento.  



(Lewis Carroll, Through the Looking-Glass, ilustração de Sir John Tenniel) 
 

Estas palavras são idiotas? De jeito nennhum, são palavras bastante úteis e expressivas, e eu já devo ter usado todas elas. Só que, no momento, faço questão de não usar mais – porque já prevejo as caretas resignadas de muita gente. “Ai meu Deus, de novo essa palavra idiota, não aguento mais.” 
 
As palavras são como um chiclete, começam com um gosto agradável de hortelã ou de cereja, mas esse gosto logo desaparece, vai-se embora o susto-de-novidade que uma palavra invulgar contém. O açúcar se dissolve todo, e fica só a borrachinha. O chiclete vira clichê. 



(arte: Philadelpho Menezes)

 
Penso às vezes que isto acontece porque vivemos numa bolha cultural onde é muito rápido, para uma palavra, entrar na moda; e pelas mesmas razões é muito rápido tornar-se lugar-comum. Num país de mais de 200 milhões de usuários do idioma, essas sucessões de modismos e clichês se dão numa bolha minúscula de meio milhão a um milhão de leitores, se tanto.  
 
O ricochete interno nas paredes da bolha (leia-se imprensa eletrônica; leia-se redes sociais) é muito rápido. As palavras viralizam nas redes sociais, com todo seu charme de novidade e potência (êpa) expressiva; e logo viralizam mesmo, literalmente (êpa), como vírus, doença, uma coisa chata que quando a gente vê já contraiu.  
 
Alguns meses de uso intenso, de incômoda reiteração... e pronto, a palavra está puída, desgastada, desvalorizada, eu diria quase prostituída por tantos usos e abusos. 
 
Pobres das palavras, que culpa alguma carregam. Pobre da palavra incontornável, quando descobre que não é indispensável, inevitável, imprescindível.    


 


 



4 comentários:

  1. Ancestralidade: ótima palavra pra me fazer evitar um livro.

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  2. a linguagem é um vírus que se auto vacina pra retastar o programa e upar o DNA.

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  3. A maioria dessas palavras nasce no mundo acadêmico, por necessidade do autor de expressar uma ideia nova com o vocabulário disponível. Quando se populariza, vem o desgaste. Ocorreu nos anos 60 com a expressão "i seriso no cobtexto", nos anos 90 com o termo "paradigma", para citar dois exemos. Mas a língua é viva e dinâmica. O que tem que permanecer, permanecerá.

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  4. Eu odeio ouvir/ler "agregar valor". Outro dia, na tevê, o fiel disse à repórter que a missa "agregava valor"!!!

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