Ele foi um diretor de filmes B norte-americanos. Essa fórmula
é meio escorregadia, mas não é exagero dizer que Samuel Fuller (1912-1997) foi
um diretor que nunca deu muita bola para altos orçamentos ou elenco de
estrelas. Preferia a relativa liberdade de fazer filmes com orçamento de
mediano para baixo, onde ninguém tinha
muita expectativa de lucro. De vez em quando, dava a sorte de trabalhar com um
produtor que confiava nele e lhe dizia: “Vá em frente, eu garanto”.
Para os cinéfilos do cinema de arte, é bom lembrar da
ponta que ele faz em O Demônio das Onze
Horas (“Pierrot Le Fou”, 1965) de Jean-Luc Godard, aparecendo como ele mesmo
durante uma festa e trocando algumas frases com Jean-Paul Belmondo.
Andei vendo alguns filmes de Fuller nos últimos meses. O
excelente policial noir com Richard
Widmark , Pickup on South Street (1953),
que lhe trouxe problemas com o FBI de J. Edgar Hoover.
The Big Red One (1980),
um filme de guerra magnífico, com um grupo de soldados jovens chefiados pelo
veterano Lee Marvin, registro autobiográfico das campanhas de que Fuller
participou na II Guerra Mundial (invasão da Sicília, invasão da Normandia,
descoberta dos primeiros campos de concentração).
E Run of the Arrow (1957),
um western envolvendo soldados da cavalaria e índios, influência clara sobre Dança Com Lobos (1990).
Tudo isto me conduziu ao saite do Sesc Digital (filmes
muito bons para ver online, gratuitamente) onde estão dois filmes sobre o
diretor.
O primeiro filme é A
Fuller Life (2013), dirigido por sua filha Samantha Fuller. Ela soube
aproveitar muito bem o enorme material autobiográfico deixado pelo pai. Até
entrar para o Exército, Fuller trabalhou como jornalista: repórter, colunista,
caricaturista. Publicou alguns romances, e deixou um extenso material de
memórias, que no fime são lidas por amigos seus – um time que inclui Mark
Hammill, Wim Wenders, Tim Roth, Jennifer Beals, William Friedkin e vários
outros.
Os longos e perspicazes depoimentos de Fuller são
cobertos com imagens que ele mesmo registrou durante a guerra – sua família
localizou, após sua morte, inúmeras bobinas
de filme em 16mm. que ele levou consigo durante os combates, fazendo um
precioso registro dos campos de batalha.
https://sesc.digital/conteudo/cinema-e-video/tigrero-o-filme-que-nunca-existiu
O outro filme, Tigrero:
a Film That Was Never Made (1994) tem muito interesse para nós brasileiros.
Num certo momento em sua carreira, em 1954, Fuller, que era um aventureiro nato
e gostava de se meter a filmar nos lugares mais inóspitos, teve a idéia de
vir ao Brasil para filmar os índios carajás, em Mato Grosso.
O pretexto era um argumento intitulado Tigrero, a história de um casal de
brancos que se aventura na selva junto com o personagem-título, um caçador de
onças local. Acontecem aventuras variadas, e um triângulo amoroso acaba se
formando entre os protagonistas, que em tese iriam ser interpretados por Tyrone
Power (o marido), Ava Gardner (a esposa) e John Wayne (o caçador).
Fulller foi ao Mato Grosso e filmou centenas de metros de
película registrando a vida dos índios, que iria servir de pano-de-fundo ao
drama principal, mas por motivos variados (e narrados no filme) a produção não
avançou.
(Jim Jarmusch e Samuel Fuller em frente ao Copacabana Palace)
Quarenta anos depois, coube a dois jovens cineastas a
idéia de levar Fuller de volta à tribo dos carajás, para se reencontrar com
alguns índios que ele filmara da primeira vez. O “mestre de cerimônias” do
filme é Jim Jarmusch (Daunbailó, Estranhos no Paraíso, Dead Man, etc.), que acompanha Fuller na
viagem, entrevistando-o e extraindo dele toda a complicada história do filme
que não foi feito.
O segundo é o diretor do filme, Mika Kaurismaki, um
finlandês que, como seu irmão Aki Kaurismaki, dirige documentários e filmes de
ficção muito interessantes e que às vezes passam despercebidos. Mika Kaurismaki
morou vários anos no Rio de Janeiro, e tinha um bar (Mika’s Bar) na Praça N. S. da Paz, em Ipanema, onde eu próprio
assisti vários shows e cheguei a cantar também, no tempo em que era cantor
independente [sic].
Tigrero leva
esse trio improvável para os cafundós do Mato Grosso, filmado pela câmera de
Jacques Cheuiche, e ali Samuel Fuller reencontra vários dos seus colegas de
aventura fílmica do passado, numa tribo já bastante modificada pela invasão da
cultura branca. Ele exibe para os indígenas o material filmado anos atrás,
conversa com eles, etc.
Além da curiosidade de um diretor com esse perfil
filmando no Brasil, a atração do filme é mesmo a personalidade de Fuller. Se no
filme póstumo, dirigido pela filha, vimos uma biografia em imagens com o
depoimento dele na primeira pessoa, em Tigrero
vemos o próprio Fuller, já com mais de 80 anos, caminhando inquieto pra lá
e pra cá, e falando sem parar diante da câmera.
Ele tem o carisma dos diretores aventureiros,
inteligentes e com vasta leitura, mas sem grandes elucubrações intelectuais.
Fumando charutos o tempo inteiro, com uma inquieta cabeleira branca, queimado
de sol, visualmente ele parece um cruzamento improvável entre Harpo Marx e o
ex-ministro Roberto Campos. É do tipo capaz de contar um filme inteiro e
segurar a plateia o tempo todo, e no fim dar uma de suas gargalhadas desarmantes,
como quem diz: “Não se preocupem, tô só viajando numa idéia”.
Fuller era incensado pela turma do Cahiers du Cinéma nos anos 1960, e sem dúvida os franceses
contribuíram decisivamente para que ele, perseguido ou esnobado em seu país,
mantivesse a chama acesa, bem como o charuto.
Os EUA devem à França uma compreensão mais profunda dos artistas que
eles mesmos produzem, desde Edgar Allan Poe (resgatado por Baudelaire) até
Philip K. Dick e os músicos de jazz
do pós-guerra. Vive la France.
Um dos maiores. O que Fuller fez em White Dog mexeu muito comigo. Continua sendo um dos meus filmes favoritos! Vida longa ao mestre!
ResponderExcluirPerfeito relato de parte da vida de um dos grandes mestres do cinema. Braulio Tavares mais uma vez se superando.
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