(Carlos Drummond -- auto-caricatura)
Um ângulo interessante da poesia modernista, que de certa
forma se cristalizou após a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, é o
modo como a nova poesia começou a se aproximar da prosa, e, mais precisamente,
da crônica, um gênero literário praticado e consumido sem problemas no Brasil.
A crônica é um tipo de voz literária que se dirige ao
leitor de modo um tanto informal, e que o leitor aceita com a mesma
descontração. O que fazia muita gente rebaixar a crônica como gênero literário .
Na época em que Carlos Drummond publicou seu primeiro livro (Alguma Poesia, 1930) vigorava (embora
não por unanimidade) a visão de que a Arte teria que ser necessariamente
solene, e a linguagem poética teria que ser necessariamente uma linguagem
“elevada”. A poesia, portanto, podia se aproximar da epopéia, mas não da
crônica.
A crônica dispensava essas elevações, conversava com o
leitor, e pode ter sido, ela também, uma influência a mais no estilo que
Machado de Assis transportou para o conto e para o romance. Ao invés de um
narrador onipotente contando uma história para um leitor invisível, o romance
de Machado – a partir de Brás Cubas
(1881) – adotou esse tom conversacional, coloquial, de trocar-figurinhas com o
leitor enquanto lhe relata os acontecimentos.
Isso vazou para a poesia, e isto que eu chamo de
poema-crônica tornou-se cada vez mais frequente – e cada vez mais perseguido
pelos defensores da poesia-em-cima-de-um-altar.
Drummond assimilou, com a espontaneidade de quem por fim
encontrou sua turma, essa irreverência que hoje pode nos parecer meio bobinha,
mas na época era um escândalo em copo dágua.
“Sociedade” é um dos poemas de Alguma Poesia em que esse veio aparece de forma mais divertida. Um
poema de cortes rápidos, falas curtas, descrição minimalista, que de certo modo
faz um contraponto às famigeradas colunas sociais onde se redigem, séculos
afora, notas tipo: “O Sr. e a Sra. Fulano
receberam nesta sexta-feira, para jantar, a visita do casal Sr. e Sra. Sicrano,
personalidades de destaque de nossa sociedade...”
“Me aguarde ...” (deve ter pensado o tímido Carlos
Drummond).
Sociedade
O
homem disse para o amigo:
– Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.
O
amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.
O
homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.
Quando
foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
– Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.
No
caminho o homem resmunga:
– Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: – Que idiota.
–
A casa é um ninho de pulgas.
– Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.
E
todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
O poeta generaliza os tipos (“o homem”, “a mulher”, “o
amigo”). Deixa implícita a hierarquia social entre os dois, porque não é o
amigo que convida: o homem anuncia, sem papas na língua, que irá à casa do
outro. A dúzia de foguetes soltados pelo amigo reforça o sentido de que aquela
visita é um evento notável. O amigo sente-se, a partir daí com crédito a um
convite semelhante, mas nada disso acontece. É o casal visitante quem repete a
visita conforme lhe dá na vontade. Na vida social, manda quem pode, obedece
quem tem juízo.
O amigo, anfitrião desta primeira visita, anuncia
timidamente que irá à casa do “homem”, mas este não corresponde. Sai falando
mal do jantar – e quem, com toda sinceridade, nunca foi à casa de alguém para
depois sair botando defeito na decoração, na discoteca, no comportamento das
crianças, no menu, nos modos à mesa?...
A vida social, neste retrato drummondiano (mordaz e sincero),
é uma relação verticalizada, entre pessoas de diferente status social, em que
os De Cima se aproveitam dos De Baixo, cobram favores que não retribuem, exigem
atenções, desfrutam o que lhes agrada, e no fim de tudo saem falando mal como
modo de reafirmar a própria superioridade: “Eles não estão à nossa altura”.
Manuel Bandeira se queixava de que grande parte da má
fama dos modernistas se devia ao temperamento galhofeiro do grupo, e seus
poemas-piada. Carlos Drummond já observou que no seu famoso poema da pedra no
meio do caminho o que irritava os críticos nem era o abstracionismo do
conteúdo, mas o fato de que ele escrevia “tinha uma pedra”, em vez de “havia
uma pedra”, como teria escrito um “poeta culto” de 1930.
Uma boa parte desta má fama, no entanto, pode ser
atribuída a essa disposição para zombar das frivolidades sociais, das
hipocrisias de classe, das amizades interesseiras, do alpinismo social baseado
no sorriso fácil e no tapinha nas costas.
Sábios comentários Mestre.
ResponderExcluirTudo isso que vc escreve é muito verdadeiro, mas pode acontecer diferente disso também. Tenho primos muitos ricos que, nas datas religiosas, oferecem jantares fabulosos e anárquicos para todos da família, a maioria pobre. Desde que não se fale de política, a conversa é ainda mais deliciosa do que a farta comida e bebidas dos deuses. E que eu saiba, ninguém fala mal de ninguém depois da festa. Os primos ricos nunca são convidados pelos primos pobres nas demais festas que ocorrem o ano todo (aniversários). Acho que eles não iriam. Uma das primas faz todos os anos, por décadas, sua festa de aniversário em que se canta "De pé, ó vítimas da fome De pé, famélicos da terra". São jantares riquíssimos em cada um traz um prato, formando uma mesa de metros e metros de iguarias e um festival de solidariedade comunista. Obrigada Braúlio.
ResponderExcluirMarta, a literatura não define regras, ela fornece exemplos. Claro que não são 100% das pessoas que se comportam como os personagens do poema de Drummond. Todos conhecemos exemplos contrários a isto. Mas todos conhecemos exemplos que se encaixam. A literatura (=a poesia) não generaliza, não diz: "É sempre assim". Ela ilustra casos específicos, como quem diz: "Isto acontece". Grato pelo comentário!
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