Escolher o nome de um personagem principal é muito trabalhoso.
É como escolher o nome de um filho. No caso de um filho, os pais conversam
entre si, trocam idéias, consultam a família e os amigos. O nome do personagem,
em geral, é uma escolha solitária.
E uma escolha mais definitiva. Já vi muitos filhos insatisfeitos
que pedem para trocar de nome, depois da maioridade. E não me vem à memória
nenhum caso de personagem cujo nome o autor tenha resolvido trocar depois da
estréia. (Há o famoso caso do personagem de Jorge Luís Borges cujo nome foi trocado
na versão inglesa, mas aí são arteirices do tradutor.)
Reza a lenda que Sir Arthur Conan Doyle entreteve durante
algum tempo a idéia de batizar seu personagem mais famoso como “Sherringford
Holmes”. Felizmente não o fez.
Quando Ariano Suassuna escreveu o Romance da Pedra do Reino (1971), tinha como plano inicial contar a
história de Sinésio Garcia-Barreto, “O Alumioso”. Já pelo epíteto, Sinésio é
sugerido como um personagem iluminado, especial, uma espécie de herói de
romance de cavalaria (como Percival, ou como Galahad), “sem medo e sem mácula”.
O nome “Sinésio” indica provavelmente a sua origem de
predestinado (a sua “sina”), de alguém cuja missão foi profetizada e deve ser
cumprida. (Além de ser um nome marcado na poesia popular pelo poeta Sinésio
Pereira, de Olinda.) E esse nome faz um contraponto com o de seu irmão Arésio
Garcia-Barretto – o brutal e belicoso Arésio, cujo nome Ariano Suassuna admite
ter sido inspirado por Ares, o deus da guerra.
(Sinésio Pereira)
E Quaderna?
O Romance da Pedra
do Reino foi escrito em ondas sucessivas, entre 1958 e 1970. Ariano explica
que o livro não é uma autobiografia.
É mais uma caricatura do meu mundo interior, isto é, todas as vivências
aí estão. Tenho alguma coisa de padre desonesto, de poeta preguiçoso e
cangaceiro frustrado.
(cit. em Narrativas e Narradores em A Pedra do Reino, Maria-Odilia
Leal-McBride, ed. Peter Lang, 1989)
Ele explica também que foi ficando meio difícil ter
Sinésio como foco principal da narrativa e até como narrador. Foi quando
transferiu esta segunda função a Quaderna que Ariano “engatou” a escrita e não
parou mais.
Claro. O herói sem defeitos é um símbolo imóvel. Ou pelo
menos um símbolo meio manietado. “Não
pode isso, não pode aquilo...” Como ele
é puro e idealista, existe uma lista gigantesca de coisas que ele é proibido de
fazer.
Já o personagem picaresco desfruta de uma liberdade que o
herói não tem. Com ele, tudo é possível, tudo pode acontecer, porque ele é humano,
mercurial, escorregadio, pode ser leal num momento e desleal no outro, pode ser
sincero e depois hipócrita, pode ser honesto e ao mesmo tempo desonesto. É essa
ambiguidade, ou multiplicidade, que faz de Quaderna um herói tão tipicamente
brasileiro, tão característico de um povo de moral negociável, que dá um
jeitinho em tudo, desde que consiga o que quer.
O período da escrita do romance coincide, curiosamente,
com o período de preparação e escrita do livro de poemas Quaderna de João Cabral de Melo Neto, que na edição de sua Obra Completa pela Aguilar recebe a
referência cronológica de “1956–1959”.
No meu ABC de
Ariano Suassuna (José Olympio, 2007), comentei as possíveis inspirações
para o nome do livro de Cabral. Entre elas esta definição, do dicionário Lello:
QUADERNA, s. f. (lat. quaternus). A face do
dado que apresenta quatro pontos.
Heráld. Objecto composto de quatro peças em quadrado, de ordinário em
forma de crescentes. Pl. Os quatro pontos de uma face dos dados.
QUADERNO, s. m. (Forma desusada de caderno).
(Lello Universal)
E esta citação do Romance
da Pedra do Reino, quando o Dr. Pedro Gouveia confere a Samuel, Clemente e
Quaderna seus títulos de nobreza, e lhes explica os correspondentes brasões
heráldicos:
O escudo dos Quadernas é
esquartelado. No primeiro quartel, há,
em campo de ouro, um veado negro vilenado, inscrito numa quaderna de quatro
crescentes vermelhos. No segundo, em campo vermelho, cinco flores-de-lis de
ouro, postas em santor, ou aspa, e assim os contrários. O timbre, é um cavalo castanho, com asas, com
as patas dianteiras levantadas e as traseiras pousadas, entre chamas de fogo!
(Romance d’A Pedra do Reino, Folheto 80)
Uma “quaderna”, em termos heráldicos, são quatro imagens
de um “crescente”, simetricamente dispostas, como vemos na imagem abaixo, onde
quatro crescentes rodeiam tanto a figura da Onça quanto a do Veado:
Estas são fontes possíveis de inspiração para a escolha
de um sobrenome tão importante, além de outras que desconhecemos.
O lançamento recente do Caderno de Textos e Imagens (Nova Fronteira, 2021), organizado por
Carlos Newton Júnior, trouxe um novo dado para esta pesquisa. O volume inclui a
“Conclusão” escrita por Ariano para ajudar na adaptação do romance para a
minissérie da Rede Globo, dirigida por Luiz Fernando Carvalho.
Nessa conclusão, a ação é retomada após o tumultuado
final da narrativa de Quaderna, no Romance
da Pedra do Reino. É o dia em que a
cidade de Taperoá foi invadida pela “estranha cavalgada” que tinha à frente,
num cavalo branco, o jovem Sinésio, tido como morto. Com o tiroteio que se
estabelece na cidade, Quaderna e seus amigos se refugiam no “tabuleiro” onde
fica o cemitério, e dali iniciam sua fuga.
A certa altura, eles avistam à distância um acampamento
cheio de cavaleiros, e com tendas que parecem as de um Circo. Quaderna se
oferece para ir até lá e averiguar quem são essas pessoas. Vai com a intenção de permanecer incógnito,
para que ninguém saiba que ele é um dos fugitivos que estão sendo caçados pela
polícia de Taperoá.
Ele fica sabendo que se trata do grupo teatral
“Olinélson”, dirigido por D. Olindina e “Seu” Nélson, atores errantes, artistas
de estrada. Quaderna lhes propõe, então, que reúnam os dois grupos.
Nélson olhou para mim, como se me avaliasse de acordo com os vários
aspectos da questão. Depois falou:
– É uma proposta tentadora, mas que devo pesar juntamente com meus
companheiros de Direção, a quem vou apresentá-lo. Mas para isso preciso saber
seu nome. Como se chama?
– Antonio Quaresma, o Decifrador – respondi cautelosamente, pois ainda
não me sentia inteiramente seguro.
(Caderno de Textos e Imagens, p. 233-234)
Quando li esse trecho pela primeira vez, em 2006, duas
associações de idéias vieram se impor, no mesmo instante.
A primeira, o fato de que para Ariano Suassuna um dos
personagens centrais da Literatura Brasileira, é o Policarpo Quaresma, do
romance de Lima Barreto. Nacionalista radical e um pouco ingênuo, mas sincero e
obstinado, Quaresma é chamado de doido e de quixotesco pelos vizinhos e pelos
colegas de trabalho. São inúmeras as menções de simpatia de Ariano, em suas
entrevistas e em aulas-espetáculo, a esse personagem que, contra todos os
obstáculos, luta pelo que acredita ser a nação brasileira autêntica.
Por outro lado, Quaresma
o Decifrador, é um personagem de Fernando Pessoa em alguns contos policiais
pouco conhecidos, mas várias vezes republicados.
Há uma menção a ele nas Obras em Prosa da Nova Aguilar, mas uma edição brasileira trouxe
este personagem mais para perto do nosso leitor: A Alma do Assassino (segundo o Dr. Quaresma), São Paulo, Editora
Horizonte, 1988, com introdução de Luiz Roberto Benati.
Comentei estes contos em minha publicação mais recente
neste blog:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/02/4912-o-detetive-fernando-pessoa-1222023.html
O prefácio de Fernando Pessoa neste livro diz: “Fui
verdadeiramente amigo de Quaresma”. Os detetives lidos da época de Pessoa
tinham amigos que narravam suas aventuras: o Dupin de Edgar Allan Poe e o Lupin
de Maurice Leblanc têm narradores anônimos, Sherlock Holmes tem Watson, Martin Hewitt
(um dos detetives favoritos de Pessoa) tem o jornalista Brett.
Voltando a Ariano Suassuna e Quaderna: o nome falso usado
por este me parece prova suficiente de que Ariano, grande admirador de Fernando
Pessoa, conhecia, mesmo superficialmente, essas aventuras detetivescas do Dr.
Quaresma, e gostou do nome. Se influenciou na criação de “Quaderna” ou se só
lhe surgiu depois, não importa. Suassuna, como Pessoa, era basicamente um poeta
místico, e nenhum dos dois era imune à Sedução do Enigma.
Deve existir, portanto, um certo sopro de Fernando Pessoa
na criação de Quaderna e de seu “romance
heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e
tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalarias
épico-sertanejas!”.