segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

4917) O que existe por trás do Sol (27.2.2023)




(Sol Armorial) 
 
Quando mais jovem, em Campina Grande, trabalhei durante quase dois anos, como datilógrafo, na Reitoria da FURNe, a Fundação Universidade Regional do Nordeste (atual UEPB). Ficava em frente à Catedral, naquele prédio onde hoje funciona o Instituto Histórico.
 
Um dia eu estava indo à Faculdade de Filosofia (que ficava atrás da Catedral, a poucos metros dali) em companhia de Leopoldo, considerado o melhor datilógrafo da universidade. Era um cara mais velho do que eu, moreno, cabelo curto, não era de muita conversa mas tinha um senso de humor apurado.
 
Nesse dia a gente ia andando quando ele parou de repente.
 
– Espera um instante.
 
Voltou alguns passos e ficou examinando o chão de terra. Via-se ali um salto de sapato, salto preto, de sapato tipo Vulcabrás. O chão estava um pouco úmido e mole; Leopoldo escavou um pouco com a quina do pé, expôs o salto, deu um “bico” com um pouco de força e o salto de borracha saltou lá para a frente, deixando apenas o buraco na terra. 
 
– Tudo bem – disse Leopoldo, quando retomamos a caminhada. – É porque toda vez que eu passava aqui eu ficava pensando que tinha um cara enterrado de cabeça pra baixo, e só o salto do sapato aparecendo. 


(a antiga Reitoria da FURNe)
 
Essa imagem nunca saiu da minha cabeça (olha que já lá se vão 55 anos), porque nesse tempo eu vivia com o juízo cheio de surrealismo e de Luís Buñuel.  Fiquei fascinado com a possibilidade de você enxergar um pequeno objeto e ser capaz de visualizar, a partir dele, algo muito maior e totalmente absurdo. Como o galo de metal no campo nevado, onde o Barão de Münchausen amarra seu cavalo antes de dormir. Ao acordar, o Barão percebe que a neve derreteu e ele está numa pracinha, em frente à igreja, e o cavalo está esperneando lá no alto, preso ao galo do campanário. 
 
Corta para o Rio de Janeiro, éons depois.  Eu morava em Laranjeiras, e pegava com frequência o ônibus da linha 184 para ir ao Largo do Machado, onde tem metrô, comércio, lanchonetes, etc.  E um dia vejo pichado na parede de um prédio baixinho de apartamentos, já perto do Largo: 
 
O SOL É A BRASA DO BASEADO DE DEUS
 
Peço desculpas às pessoas religiosas que talvez se sintam ofendidas. Meu intuito aqui é apenas semiótico, porque essa frase, digna de um cartum de Moebius & Jodorowsky, tem uma construção muito semelhante à idéia de Leopoldo com o salto de sapato. É uma excelente fanopéia – na linguagem de Ezra Pound, a imagem visual vívida e instantânea, produzida por meras palavras.
 
Olhar para o sol, imaginá-lo como a brasa de um cigarro, visualizar um ser gigantesco por trás... A imagem era um tanto blasfema (Buñuel teria gostado). Mesmo assim, me lembrou outra imagem da infância, colhida talvez em Monteiro Lobato: a sugestão de que o céu da noite era uma vasta redoma de cristal escuro, e as estrelas eram buracos que os anjinhos faziam para espiar as travessuras das crianças da Terra. (Acho que isto está em Viagem ao Céu.)


O interessante dessa imagem não era nem mesmo a curiosidade dos anjinhos, mas o fato de que -- por trás dessa redoma escura e protetora existia o que? Existia uma luminosidade cegante, equivalente à do Sol, que se filtrava pelos buraquinhos. 
 
A materialidade da abóbada celeste é um tema antigo. Vivemos (dizia a imaginação medieval) no centro de uma esfera, que ora era transparente, ora opaca, ora azul, ora escura e pontilhada de brilharecos. 

Existe até a famosa gravura (que nem é medieval, é do século 19) em que um homem rompe o “vidro” dessa abóbada e enxerga por trás dela mecanismos gigantescos, engrenagens incompreensíveis.


(em L’Atmosphère: météorologie populaire, Camille Flammarion, 1888)

 
A curiosidade de saber o que existe por trás do céu vem dessa visão medieval que colocava a Terra como o centro do Universo, e este seria uma série de esferas sucessivamente maiores, como camadas-de-cebola superpostas. Um universo imóvel onde as esferas (onde estavam “pregados” o Sol a Lua, as estrelas) meramente giravam em torno do seu centro, a Terra, mas a estrutura básica era fixa.
 
Dá para imaginar o choque na cabeça dos cientistas quando tiveram que admitir por aproximações sucessivas (via Kepler, Galileu, Copérnico, Newton, Einstein) o atual formato do Universo.
 
Restou aos poetas imaginar outras alternativas, no plano simbólico. Guimarães Rosa, que era meio chegado a um cigarro convencional, projeta suas fantasias no inventivo Lalino Salãthiel de “A Volta do Marido Pródigo” (em Sagarana, 1946):
 
“Magina só: eu agora estava com vontade de cigarrar... Sem aluir daqui, sem nem abrir os olhos direito, eu esticava o braço, acendia o meu cigarro lá no sol... e depois ainda virava o sol de trás p’ra diante, p’ra fazer de-noite e a gente poder dormir...”
 
É o caso também de Ariano Suassuna e sua forma peculiar de tratar os temas religiosos e sertanejos.  Não por acaso, um dos seus personagens mais famosos, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, foi expulso do seminário da capital da Parahyba por causa de sua teoria do “Catolicismo Sertanejo”, no qual “a Santíssima Trindade tem cinco membros: o Pai, o Filho, o Espírito Santo, o Diabo e Nossa Senhora”.



(Irandhir Santos, como Quaderna)
 
A mitologia solar tem uma importância muito grande nessa visão-do-mundo que Quaderna expõe de maneira tão vigorosa e poética no Romance da Pedra do Reino (1971). Pudera. Todo esse romance é uma tentativa pessoal, por parte de Ariano, de equacionar o feixe de contradições e de confirmações em torno da tentativa de situar Deus e o Diabo na terra do sol. 
 
Em seu livro póstumo Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, que é uma espécie de coral de muitas vozes e muitas “personas”, Ariano atribui a Dom Pantero um longo monólogo em tom apocalíptico (passagens inteiras do Apocalipse são citadas no livro) e a certa altura ele exclama: 
 
– O Sol é o girassol do sol de Deus!
 
A imagem do girassol é frequente na literatura mística, para indicar a alma sempre voltada na direção da Divindade. Para onde Deus vai, a alma do crente gira de mansinho, para nunca perder Deus de vista, para estar sempre inundada de sua luz.



Não sei se a frase de Dom Pantero é uma formulação de Ariano ou se ele está citando alguém (o livro é repleto de citações disfarçadas – é o “Estilo Régio” de Quaderna falando no centro), mas em todo caso é uma imagem de grande beleza. Uma fanopéia notável.
 
A idéia é que assim como o girassol volta-se para o sol o tempo inteiro, para embeber-se de sua luz, assim o Sol, por sua vez, volta-se o tempo inteiro para se embeber do “sol de Deus”, que neste caso deve ser algo de brilho incomensurável, inconcebível.
 
Reencontrei há pouco essa mitologia solar na leitura do volume 3 da série “The Sandman”, de Neil Gaiman, Dream Country (1991). 
 
Na quarta história deste volume, “Façade”, aparece a super-heroína Element Girl, a mulher indestrutível, capaz de manipular à vontade qualquer elemento da matéria. Ela é Rainie Blackwell, uma agente secreta que foi transformada em Element Girl após entrar em contato com uma divindade egípcia. Agora, está decadente, infeliz, incapaz de viver uma vida normal, e tendo que criar máscaras orgânicas para esconder seu rosto verdadeiro, cuja visão é insuportável às outras pessoas.
 
No fim, ela deseja morrer, e é visitada pela Morte, que faz parte do grupo dos Perpétuos. A Morte lhe aconselha que peça ao deus egípcio para reverter o que havia feito. “Mas onde vou encontrar esse deus?”, pergunta Rainie. A Morte diz: “Deixa de ser boba, esse deus é Ra, o sol. Vai na janela e fala com ele.”


(Neil Gaiman + Colleen Doran, Malcolm Jones III, Steve Ollif, Todd Klein)
 
Ela o faz e diz:
 
-- O sol... eu não tinha percebido antes... O Sol, também, é apenas uma máscara... E o rosto por trás dele é tão belo... é...
 
Element Girl usava dezenas de máscaras para poder ser vista pelos humanos (sua casa é repleta delas), e desse modo não lhe é difícil entender que o Sol é apenas uma máscara cegante destinada a afastar a curiosidade daqueles que desejam ver “a verdadeira face de um Deus”.
 






sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

4916) A peleja do meme contra o PhD (24.2.2023)




Quando o professor universitário e semiólogo Umberto Eco surpreendeu o mundo inteiro com o sucesso de um romance fascinante e difícil como O Nome da Rosa (1980), muita gente se surpreendeu com o fato de ele ter ambientado sua história num mosteiro católico no ano de 1327. Eco precisou explicar que conhecia a Idade Média muito melhor do que a época contemporânea. 
 
Depois, num ensaio recolhido nas Viagens na Irrealidade Cotidiana (Ed. Record, 1984, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade), ele discutiu algumas idéias muito em voga nos anos 1980, em torno do conceito de “uma nova Idade Média”. E diz, a certa altura: 
 
Nada é mais semelhante a um mosteiro (perdido no campo, cercado e rodeado por hordas bárbaras e estranhas, habitado por monges que não têm nada a ver com o mundo e desenvolvem suas pesquisas particulares) do que um campus universitário norte-americano. (p. 98) 
 
As modas recentes do terraplanismo e do negacionismo médico trouxeram para o debate caótico das redes sociais o distanciamento entre os cientistas e as “pessoas comuns” (eu, por exemplo). Não sabemos nada de Ciência, ou melhor, sabemos o que lemos na imprensa (TV, revistas, a Web), misturado a noções que vimos quando éramos estudantes, e que já esquecemos quase por completo.
 
Nunca foram tão necessários os divulgadores da Ciência, as pessoas capazes de sintetizar conhecimentos científicos (mesmo com o risco da superficialidade), escrevendo para leitores medianamente instruídos, leitores com doses equilibradas de confiança e de ceticismo. O leitor que não lê “para acreditar” nem “para discordar”, mas lê pela necessidade de pensar mais aprofundadamente naquele assunto. Lê para se informar melhor. 




 
Minha geração teve a sorte de ler autores para quem eu acendo uma vela mental todas as noites, em meus oratórios agnósticos: Fritz Kahn, Paul Karlson, Hendrik Van Loon, Henry Thomas, George Gamow... Ninguém lembra deles hoje: eu lembro, porque foi deles a primeira porta para assuntos que vi retomados, alguns anos depois, por Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Carl Sagan, Stephen Hawking. 


A distância abissal entre cientistas e o grande público recebeu agora uma ótima sátira televisiva na série do Netflix O Mundo por Philomena Cunk, criado por Charlie Brooker, em que a atriz Diane Morgan faz o papel de uma “influêncer” com verba e sem noção, que viaja pelo mundo capitaneando um programa instrutivo onde ela conta (em 5 episódios de meia hora) a história da humanidade, enquanto entrevista historiadores, físicos, medievalistas, etc.
 
Os professores e professoras, europeus e norte-americanos, são todos verdadeiros, e tudo que eles dizem é dito a sério – com certa dificuldade, porque “Philomena” faz as perguntas mais abobalhadas e irritantes. Tiremos o chapéu aos professores e professoras que precisam responder questionamentos como: “Todo mundo sabe que o homem não foi à Lua; para começar, a Lua não existe, concorda?”.


“Philomena Cunk” representa aquela fauna de que o YouTube está cheio: pessoas jovens, cheias de energia e de ofuscante auto-estima, capazes de se comunicar instantaneamente com milhões de outros jovens em torno do fato de que todos ouviram o galo cantar e não sabem onde.  Ou melhor, todos ouviram o galo cantar, mas alguns creem que é um galo alienígena, outros questionam a existência de galos e de aves em geral, outros dizem que aquilo não foi o canto do galo e sim uma simulação cibernética, outros perguntam por que quem canta é sempre o galo, e à galinha cabe apenas o papel subalterno de atravessar a estrada...  
 
Enfim, é um caldo cultural de meias-informações, piadas, superstições, empirismo oitocentista, crendices, intuições interessantes, pensamento mágico, fabulações pessoais... O mesmo caldo cultural em que viviam as populações da Idade Média.  
 
Umberto Eco descreve com riqueza de detalhes esse caldo cultural em O Nome da Rosa, e descreve seu equivalente moderno em O Pêndulo de Foucault (1988). Só que esse caldo está hoje potencializado pelo aumento da população, a crise da educação (cada país tem a sua, mas todos têm uma) e agora o crescimento desordenado (e ferozmente manipulado por quem pode) das comunicações eletrônicas. 
 
“Philomena Cunk” viaja pelo mundo inteiro (principalmente graças à magia do chroma-key) e é muito divertido ver o olhar de terror de senhoras ponderosamente acadêmicas, cobertas de PhDs, diante do nonsense-mental absoluto da moça que as entrevista. É o século 21 descobrindo, horrorizado, o espelho.



É sátira, uma sátira feita com bons redatores – há muita piada boba, afinal o programa vem da pátria de Douglas Adams e do Monty Python, mas há muita piada engraçada e que vai na medula, idem ibidem. A apresentadora parece mesmo ser mentalmente avariada, conceitualmente descompensada, e tudo o mais; é uma ótima atriz. No programa sobre a Idade Média, ela entra na sala vazia de um castelo de paredes de pedras e ali, sozinha com a câmera, faz uma encenação verbal (com uma engraçada pós-sonoplastia fornecendo o fictício som ambiente) de uma festa da realeza. Um pequeno tour-de-force de texto e interpretação. 
 
Somos tentados a ver em O Mundo por Philomena Cunk apenas a sátira dos “influênceres” que têm a arrogância dos comunicadores-natos somada a uma formação cultural capenga. Porém, a presença de tantos cientistas respeitáveis, homens e mulheres que dedicaram a vida inteira ao estudo aprofundado da História, da Sociologia, da Física, etc., toca insistentemente um outro sino. Quem está mais por fora do mundo real – ela, que não sabe de nada, ou eles, que sabem de tudo e se aterrorizam com o tamanho do abismo que nos separa? 
 
Philomena representa o poder tecnológico do Presente, o de atingir instantaneamente milhões de pessoas; os professores representam o poder acumulado do Passado, um fóssil indestrutível mas que respira por aparelhos. Há uma briga permanente entre os dois, uma briga boa, uma briga inevitável desde o tempo das cavernas, e que a cada século muda de armas.



Como dizia Umberto Eco:
 
O outra Idade Média produziu no fim um Renascimento que se divertia em fazer arqueologia, mas de fato a Idade Média não fez obra de conservação sistemática, mas sim de destruição casual e conservação desordenada; perdeu manuscritos essenciais e salvou outros completamente irrisórios, raspou poemas maravilhosos para escrever em cima adivinhas ou preces, falsificou os textos sagrados interpolando passagens e assim procedendo escrevia os “seus livros”. (p. 98)
 
Estamos, aos trancos e barrancos, escrevendo os nossos.



terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

4915) A cordilheira sob o asfalto (21.2.2023)



Há um verso de uma canção tropicalista de Caetano Veloso (“Enquanto Seu Lobo Não Vem”, em Tropicália ou Panis et Circensis, 1968) que diz: “Há uma cordilheira sob o asfalto”.
 
Esse verso sempre teve alguma coisa de revelação para mim. Era uma imagem surrealista que lembrava Jorge de Lima – essa imagem de uma superfície aparentemente banal e domesticada ocultando uma realidade enorme e selvagem.
 
O asfalto a que Caetano se refere é o da Avenida Presidente Vargas, porque na mesma música ele canta:
 
A Estação Primeira de Mangueira passa em ruas largas...
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas...  
 
Como na época eu não conhecia o Rio de Janeiro muito bem, ficava com uma pintura ambígua na minha imaginação. A primeira era a escola da Mangueira desfilando por alguma rua ou túnel ou passarela que passasse por baixo da Avenida propriamente dita.
 
A segunda era a Mangueira desfilando no asfalto, mas na crista dessa cordilheira selvagem, uma serra de montanhas cobertas de florestas e rochedos. A Mata Atlântica virgem que havia antes do Rio de Janeiro, mas (como num filme de Glauber Rocha ou de Walter Lima Jr.) a Mangueira desfilasse, sem outra platéia a não ser os papagaios e os sagüins, nessa Mata Atlântica virgem.


(Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr.; a Avenida das Américas em 1968) 

 
Porque em outro momento, no primeiro verso da mesma canção, o poeta diz: “Vamos passear na floresta escondida, meu amor...”  Claro que há todo um contexto irônico de brincadeira infantil, numa citação óbvia da cantiga de roda:
 
Vamos passear na floresta,
enquanto seu Lobo não vem...
- Tá pronto, Seu Lobo?..
 
Você ouve a música 100 vezes e os versos vão se misturando, de tal forma que a floresta escondida passa a fazer parte também da cordilheira escondida sob o asfalto.
 
Ou então (isso já me veio décadas depois) como naqueles livros de ficção científica de J. G. Ballard e outros. A floresta foi escondida pela cidade. A cidade foi edificada no lugar onde antes havia uma floresta. A avenida de asfalto foi plantada em cima de uma cordilheira. As duas, floresta e cordilheira, não foram destruídas: estão apenas ocultas, mas retornarão um dia. Por que não?



Qualquer um de nós já viu essas imagens aterradoras do possível mundo do futuro, com megalópoles invadidas pela selva, galhos de árvores brotando das janelas dos arranha-céus, o lodo e o mato rasteiro cobrindo o chão, os shoppings parecendo estufas exuberantes que fugiram ao controle.
 
A floresta está apenas escondida, mas voltará.



(Sítio arqueológico na Turquia} 

Por baixo do asfalto existe não apenas a cordilheira, mas tudo que a cidade precisou enterrar e esconder no seu processo de afirmação: as ossadas, as valas comuns, os alicerces dos embarcadouros, dos mercados de escravos, ossos de bichos, restos de comida petrificada, cacos de louça e cerâmica, armas enferrujadas. Um gigantesco sambaqui de passado que foi varrido para baixo do tapete do asfalto. 
 
Esse tapete de asfalto é apenas uma película muito fina. Se a cidade fosse vista lateralmente, num corte vertical, veríamos o quanto o chão civilizado em que pisamos é fino, é quase nada, separando o presente frenético desta bolha-de-sabão civilizatória e essa cordilheira de passado, pronta para emergir de novo e tomar conta desse espaço por mais um milhão de anos. 

“Que século, meu Deus! exclamaram os ratos,
e começaram a roer o edifício.
(Carlos Drummond, “Edifício Esplendor“)
 
Drummond tinha essa mesma noção de que os edifícios duram menos tempo do que os ratos.
 
Se “tudo que é sólido se desmancha no ar”, tudo que parece luminoso contém dentro de si uma bolha de escuridão, e essa escuridão não está vazia.
 
A máscara de asfalto com que a civilização finge esconder a cordilheira é enganosa.



(Rook Island, by Ubisoft)
 
 
É a película camufladora do próprio mar, que o protagonista de Sartre em A Náusea consegue enxergar de verdade, e perceber o quanto é uma ilusão:
 
Viro as costas às outras pessoas, e apoio as duas mãos sobre a balaustrada. O verdadeiro mar é negro e frio, cheio de animais; ele se agita por baixo dessa fina película verde feita para enganar as pessoas. As sílfides que me rodeiam deixaram-se iludir: não veem senão essa película estreita, e ela lhes demonstra a existência de Deus. Mas eu vi o que há por baixo!
(J.-P. Sartre, La Nausée, trad. BT)
 
Por baixo há o sambaqui, a cordilheira, o Passado que nunca se poderá cancelar; só podemos mesmo é cobri-lo com películas de diferentes texturas, “skins”, como na computação gráfica. O Passado é sempre dez vezes maior, cem vezes mais pesado, e mil vezes mais presente.
 
 
 






sábado, 18 de fevereiro de 2023

4914) Seis frases marcantes (18.2.2023)




1
Barão Henrich von Brokenstein, 58 anos, cientista gótico, em pleno tumulto de uma experiência laboratorial na torre do seu castelo expressionista, onde pretende utilizar um algoritmo viral para multiplicar em tempo recorde as células de um embrião de leão-da-montanha, no que é atrapalhado o tempo inteiro pelo seu prestimoso mas confuso ajudante Ygor Bitcovic, 48 anos, corcunda, neurótico, caolho, que tenta fazer seis coisas ao mesmo tempo e desorganiza sete, até que o Barão Brokenstein, ao empurrá-lo num gesto impaciente, agarra-o de novo pelos ombros, olha com atenção seu rosto magro, nariz adunco, queixo comprido... e o tapa-olho negro que está cobrindo o olho direito, em vez do esquerdo. Desorientado com essa imagem incongruente, o Barão tartamudeia: “Ygor! Tem algo de  diferente em teu rosto. Fizeste a barba, por acaso?...” E ele responde: “A minha barba nunca cresceu.”
 
2
Beto Miolo, 19 anos, primeiro volante do time juvenil do Rodoviários Esporte Clube, de Cabiúna (Alagoas), terminou eufórico seu primeiro treino na equipe principal; após o chuveiro abordou na saída do vestiário o técnico Joãozinho de Berto, e indagou como se saíra, ganhando um tapinha no ombro e o veredito: “Bom demais! Nota dez!”, o que o levou a fantasias de profissionalização, que foram incrementadas quando os colegas o chamaram para o almoço habitual no Bar do Haroldão, na esquina do campo, onde se sentaram em grupo, contando piadas, trocando provocações, enquanto Haroldão fazia aterrissar na mesa duas terrinas respeitáveis de uma macarronada à bolonhesa oleosa e descorada, que todos atacaram com o estoicismo dos famintos, até que Haroldão parou junto do técnico, botou o pano de prato no ombro, perguntou como estava o almoço, e Joãozinho de Berto respondeu com entusiasmo: “Bom demais! Nota dez!”.
 
3
Lucinha Mamede, 15 anos, aluna do Colégio Samaritano, bonitinha mas meio azougada, ao reagir de forma inesperadamente grosseira às tímidas investidas paqueratórias de seu colega de classe Mateus Rodrigues Lemos, 16 anos, e tentando justificar-se diante das colegas que a cercaram com os argumentos previsíveis  de “você não é essas brastemps” e “caiu na rede é peixe”, o que a fez explicar cheia de angústia: “Esse menino me passa uma energia muito negativa, eu acho que ele é feito somente de elétrons”.
 
4
Indaiara Ferreira de Sousa, 26 anos, dançarina da boate e pensão “Love To Love”, no km 136 da Rio-Bahia, ao ser convidada a dar um breve depoimento para uma equipe da TV Agreste que realizava um documentário sobre o cotidiano dos motoristas de caminhão, fregueses tradicionais daquele estabelecimento; ela concordou em gravar, pediu licença, foi lá dentro, voltou de banho tomado, roupa trocada, maquiagem feita, sentou junto à janela que lhe indicaram, ajeitou a longa cabeleira de índia, e à primeira pergunta do jornalista cruzou a perna num gesto aristocrático, ergueu as sobrancelhas e declarou: “Olha, meu bem, nós aqui temos uma vida... uma vida... uma vida favoravelmente maravilhada.”
 
5
Apolônio Romão Gadelha, 92 anos, coronel da Guarda Nacional, fazendeiro, ex-deputado, faleceu à 01:32 de uma madrugada fria na região do Teixeira, depois de uma noite inteira de aflição em que a respiração lhe vinha como que através de tubulações de esgoto; teve tempo, portanto, para se despedir espiritualmente de seus hectares e sesmarias, de seus celeiros e currais, de suas alfaias, seus dobrões, e de seus oito filhos e filhas que assistiram o desenlace de pé e de cabeça baixa, todos mansos e caladinhos. Quando seu rosto se imobilizou, a agora viúva, Dona Quitéria, 63 anos, abaixou-lhe as pálpebras, desprendeu da mão ainda morna do defunto os dedos entanguidos que a seguravam desde o final da tarde, ergueu-se, suspirou bem fundo, encarou aquele grupo de rostos náufragos e anunciou: “Vou fazer um café.”
 
6
Sandra Natália Girão, 52 anos, professora, chegou como todos os dias à Faculdade de Ciências Sociais Tobias Barreto, entrou na sala de aula às 7 em ponto, jogou na mesa a bolsa, os livros, e o material impresso, deu bom dia, e disparou um desabafo contido há anos, no sentido de que um país não prospera e uma nação não convive em paz se não huver um mínimo de contrato social entre as partes; se não se encurtar a distância entre o estrato mais rico e o mais pobre; se não forem usados todos os mecanismos jurídico-institucionais para extirpar a mentalidade colonialista, extrativista e escravocrata que ainda contamina nosso arremedo de República; se cada pessoa não se convencer de que ação política e cidadania são exercidas em casa e na rua nos sete dias da semana, e não apenas nas urnas de dois em dois anos; se não acabarmos com a cupidez insolente dos investidores, a cumplicidade servil dos cooptados, a retórica cínica e desonesta da pseudo-imprensa, e a passividade cega dos magarefes que se julgam donos do matadouro; e quando fez pausa para tomar respiração o rapaz de boné e óculos da segunda fila ergueu o braço e perguntou: “Cai na prova?...” 


 
 
 
 
 





quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

4913) O nome de Quaderna (16.2.2023)


Escolher o nome de um personagem principal é muito trabalhoso. É como escolher o nome de um filho. No caso de um filho, os pais conversam entre si, trocam idéias, consultam a família e os amigos. O nome do personagem, em geral, é uma escolha solitária. 

 

E uma escolha mais definitiva. Já vi muitos filhos insatisfeitos que pedem para trocar de nome, depois da maioridade. E não me vem à memória nenhum caso de personagem cujo nome o autor tenha resolvido trocar depois da estréia. (Há o famoso caso do personagem de Jorge Luís Borges cujo nome foi trocado na versão inglesa, mas aí são arteirices do tradutor.) 

 

Reza a lenda que Sir Arthur Conan Doyle entreteve durante algum tempo a idéia de batizar seu personagem mais famoso como “Sherringford Holmes”. Felizmente não o fez. 




Quando Ariano Suassuna escreveu o Romance da Pedra do Reino (1971), tinha como plano inicial contar a história de Sinésio Garcia-Barreto, “O Alumioso”. Já pelo epíteto, Sinésio é sugerido como um personagem iluminado, especial, uma espécie de herói de romance de cavalaria (como Percival, ou como Galahad), “sem medo e sem mácula”. 

 

O nome “Sinésio” indica provavelmente a sua origem de predestinado (a sua “sina”), de alguém cuja missão foi profetizada e deve ser cumprida. (Além de ser um nome marcado na poesia popular pelo poeta Sinésio Pereira, de Olinda.) E esse nome faz um contraponto com o de seu irmão Arésio Garcia-Barretto – o brutal e belicoso Arésio, cujo nome Ariano Suassuna admite ter sido inspirado por Ares, o deus da guerra. 


(Sinésio Pereira)


E Quaderna?

 

O Romance da Pedra do Reino foi escrito em ondas sucessivas, entre 1958 e 1970. Ariano explica que o livro não é uma autobiografia. 

 

É mais uma caricatura do meu mundo interior, isto é, todas as vivências aí estão. Tenho alguma coisa de padre desonesto, de poeta preguiçoso e cangaceiro frustrado.

(cit. em Narrativas e Narradores em A Pedra do Reino, Maria-Odilia Leal-McBride, ed. Peter Lang, 1989) 

 

Ele explica também que foi ficando meio difícil ter Sinésio como foco principal da narrativa e até como narrador. Foi quando transferiu esta segunda função a Quaderna que Ariano “engatou” a escrita e não parou mais. 

 

Claro. O herói sem defeitos é um símbolo imóvel. Ou pelo menos um símbolo meio manietado.  “Não pode isso, não pode aquilo...”  Como ele é puro e idealista, existe uma lista gigantesca de coisas que ele é proibido de fazer. 

 

Já o personagem picaresco desfruta de uma liberdade que o herói não tem. Com ele, tudo é possível, tudo pode acontecer, porque ele é humano, mercurial, escorregadio, pode ser leal num momento e desleal no outro, pode ser sincero e depois hipócrita, pode ser honesto e ao mesmo tempo desonesto. É essa ambiguidade, ou multiplicidade, que faz de Quaderna um herói tão tipicamente brasileiro, tão característico de um povo de moral negociável, que dá um jeitinho em tudo, desde que consiga o que quer. 



O período da escrita do romance coincide, curiosamente, com o período de preparação e escrita do livro de poemas Quaderna de João Cabral de Melo Neto, que na edição de sua Obra Completa pela Aguilar recebe a referência cronológica de “1956–1959”. 

 

No meu ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007), comentei as possíveis inspirações para o nome do livro de Cabral. Entre elas esta definição, do dicionário Lello

 

QUADERNA, s. f. (lat. quaternus). A face do dado que apresenta quatro pontos.  Heráld. Objecto composto de quatro peças em quadrado, de ordinário em forma de crescentes. Pl. Os quatro pontos de uma face dos dados.

QUADERNO, s. m. (Forma desusada de caderno).

(Lello Universal)

 

E esta citação do Romance da Pedra do Reino, quando o Dr. Pedro Gouveia confere a Samuel, Clemente e Quaderna seus títulos de nobreza, e lhes explica os correspondentes brasões heráldicos:

 

O escudo dos Quadernas é esquartelado.  No primeiro quartel, há, em campo de ouro, um veado negro vilenado, inscrito numa quaderna de quatro crescentes vermelhos. No segundo, em campo vermelho, cinco flores-de-lis de ouro, postas em santor, ou aspa, e assim os contrários.  O timbre, é um cavalo castanho, com asas, com as patas dianteiras levantadas e as traseiras pousadas, entre chamas de fogo!
(Romance d’A Pedra do Reino, Folheto 80)

 

Uma “quaderna”, em termos heráldicos, são quatro imagens de um “crescente”, simetricamente dispostas, como vemos na imagem abaixo, onde quatro crescentes rodeiam tanto a figura da Onça quanto a do Veado: 


Estas são fontes possíveis de inspiração para a escolha de um sobrenome tão importante, além de outras que desconhecemos. 

 

O lançamento recente do Caderno de Textos e Imagens (Nova Fronteira, 2021), organizado por Carlos Newton Júnior, trouxe um novo dado para esta pesquisa. O volume inclui a “Conclusão” escrita por Ariano para ajudar na adaptação do romance para a minissérie da Rede Globo, dirigida por Luiz Fernando Carvalho. 

 

Nessa conclusão, a ação é retomada após o tumultuado final da narrativa de Quaderna, no Romance da Pedra do Reino.  É o dia em que a cidade de Taperoá foi invadida pela “estranha cavalgada” que tinha à frente, num cavalo branco, o jovem Sinésio, tido como morto. Com o tiroteio que se estabelece na cidade, Quaderna e seus amigos se refugiam no “tabuleiro” onde fica o cemitério, e dali iniciam sua fuga. 

 

A certa altura, eles avistam à distância um acampamento cheio de cavaleiros, e com tendas que parecem as de um Circo. Quaderna se oferece para ir até lá e averiguar quem são essas pessoas.  Vai com a intenção de permanecer incógnito, para que ninguém saiba que ele é um dos fugitivos que estão sendo caçados pela polícia de Taperoá. 

 

Ele fica sabendo que se trata do grupo teatral “Olinélson”, dirigido por D. Olindina e “Seu” Nélson, atores errantes, artistas de estrada. Quaderna lhes propõe, então, que reúnam os dois grupos. 

 

Nélson olhou para mim, como se me avaliasse de acordo com os vários aspectos da questão. Depois falou:

– É uma proposta tentadora, mas que devo pesar juntamente com meus companheiros de Direção, a quem vou apresentá-lo. Mas para isso preciso saber seu nome. Como se chama?

– Antonio Quaresma, o Decifrador – respondi cautelosamente, pois ainda não me sentia inteiramente seguro.

(Caderno de Textos e Imagens, p. 233-234) 

 

Quando li esse trecho pela primeira vez, em 2006, duas associações de idéias vieram se impor, no mesmo instante. 


A primeira, o fato de que para Ariano Suassuna um dos personagens centrais da Literatura Brasileira, é o Policarpo Quaresma, do romance de Lima Barreto. Nacionalista radical e um pouco ingênuo, mas sincero e obstinado, Quaresma é chamado de doido e de quixotesco pelos vizinhos e pelos colegas de trabalho. São inúmeras as menções de simpatia de Ariano, em suas entrevistas e em aulas-espetáculo, a esse personagem que, contra todos os obstáculos, luta pelo que acredita ser a nação brasileira autêntica. 

 

Por outro lado, Quaresma o Decifrador, é um personagem de Fernando Pessoa em alguns contos policiais pouco conhecidos, mas várias vezes republicados. 

 

Há uma menção a ele nas Obras em Prosa da Nova Aguilar, mas uma edição brasileira trouxe este personagem mais para perto do nosso leitor: A Alma do Assassino (segundo o Dr. Quaresma), São Paulo, Editora Horizonte, 1988, com introdução de Luiz Roberto Benati. 




Comentei estes contos em minha publicação mais recente neste blog:

https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/02/4912-o-detetive-fernando-pessoa-1222023.html

 

O prefácio de Fernando Pessoa neste livro diz: “Fui verdadeiramente amigo de Quaresma”. Os detetives lidos da época de Pessoa tinham amigos que narravam suas aventuras: o Dupin de Edgar Allan Poe e o Lupin de Maurice Leblanc têm narradores anônimos, Sherlock Holmes tem Watson, Martin Hewitt (um dos detetives favoritos de Pessoa) tem o jornalista Brett. 

 

Voltando a Ariano Suassuna e Quaderna: o nome falso usado por este me parece prova suficiente de que Ariano, grande admirador de Fernando Pessoa, conhecia, mesmo superficialmente, essas aventuras detetivescas do Dr. Quaresma, e gostou do nome. Se influenciou na criação de “Quaderna” ou se só lhe surgiu depois, não importa. Suassuna, como Pessoa, era basicamente um poeta místico, e nenhum dos dois era imune à Sedução do Enigma.

 

Deve existir, portanto, um certo sopro de Fernando Pessoa na criação de Quaderna e de seu “romance heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalarias épico-sertanejas!”. 





domingo, 12 de fevereiro de 2023

4912) O detetive Fernando Pessoa (12.2.2023)

 

("Fernando Pessoa", por Almada Negreiros)


Fernando Pessoa era um grafomaníaco, pessoa com a mania de escrever compulsivamente. Alguns o fazem de forma caótica, e não produzem senão coisas sem criatividade, sem propósito e sem método. Não era o caso do poeta português. Dele, pode-se dizer que qualquer rabisco rende alguma idéia. 
 
Conta-se que à sua morte, em 1935, descobriu-se em sua residência o famoso “baú” que teria mais de 25 mil páginas com todos os tipos de texto: poemas, peças teatrais, correspondência, anotações, ficção... 
 
Nesta última categoria pode-se incluir talvez o famoso e notável Livro do Desassossego, compilado postumamente e atribuído ao heterônimo “Bernardo Soares”. É uma espécie de diário ficcional cheio de reflexões curiosas e melancólicas sobre a vida, a literatura e tudo o mais. 
 
Fernando Pessoa é um caso à parte na literatura, pelo talento exuberante, pelo rigor do pensamento, pelas idiossincrasias psicológicas que dão a tudo que escreve uma posição única na observação e análise dos fatos. Muitos o consideram, com razão, um dos maiores poetas da nossa língua, e um dos maiores poetas do século 20 em qualquer idioma. Mas me atrevo a dizer que não se tem a medida exata de seu talento se não se der atenção igual à sua obra em prosa, que é mais de reflexão e análise do que de ficção.
 
Do meio dessa jângal de manuscritos, os pesquisadores separaram uma boa quantidade de contos (completos ou em fragmento), dos mais diversos tipos. Alguns são contos policiais deixados incompletos. 
 
Nos seus depoimentos Pessoa reafirma o seu gosto pela literatura policial, citando nominalmente autores como Conan Doyle, Arthur Morrison (o criador do detetive Martin Hewitt) e Edgar Wallace.
 
Há diferentes edições dos textos considerados policiais de Pessoa, mas vou me limitar a duas, que tenho há anos.



As Obras em Prosa (Ed. Nova Aguilar, Petrópolis, 1986, 734 págs., “Biblioteca Luso-Brasileira”), se dividem nas seguintes partes: “O Eu Profundo”, “Os Outros Eus”, “Idéias Estéticas”, “Idéias Filosóficas”, “Idéias Políticas”, “Teoria e Prática do Comércio” e “Ficção”.
 
Esta última, a que ora nos interessa, está assim composta:
 
CONTOS DE RACIOCÍNIO:
“O banqueiro anarquista”, “A janela estreita” (fragmento), “O roubo da Quinta das Vinhas”, “A carta mágica”, “A arte de raciocinar”, “Um paranóico com juízo”.
 
CONTO FILOSÓFICO DE PERO BOTELHO:
“O vencedor do tempo”
 
Note-se que termos como “conto policial” ou “detetve” não aparecem. Nesta mesma compilação, vê-se uma lista de títulos (contos completos e fragmentos) sob esta última rubrica, assim:
 
CONTOS DE PERO BOTELHO:
O Vencedor do Tempo (Prof. Serzedas)
A Morte do Dr. Cerdeira (Dr. Cerdeira)
A Experiência do Dr. Lacroix (Dr. Lacroix)
O Prior de Buarcos (Pe. João (José) Maria)
Quaresma, Decifrador (Dr. Abílio Quaresma), (Vários)
O Eremita da Serra Negra (O Eremita)
?No Hotel Cecil, em dia de chuva (O pessimista)
?Uma Tarde Cristã (O jesuíta Eusébio Vareiro)
?O Profeta da Rua da Glória (O judeu Salomão, Barjara)
 
Copio do jeito que está no livro. Como a obra de Pessoa (me parece) está toda em domínio público, talvez uma busca paciente por esses títulos e nomes resulte em alguma coisa. Boa sorte!
 
Para mim, o mais importante de tudo é a menção ao “Dr. Abílio Quaresma”, ou “Quaresma, Decifrador”, nome que influenciou Ariano Suassuna na criação de seu personagem “Quaderna, o Decifrador”, o protagonista do Romance da Pedra do Reino


O Dr. Quaresma aparece com maior destaque no outro título que possuo: A Alma do Assassino – segundo o Dr. Quaresma, Horizonte Editora, São Paulo, 1988(?).
 
O livro tem uma ótima introdução, “A Novela Policial”, de Luiz Roberto Benati. E inclui quatro contos, visivelmente fragmentários, em que Quaresma aparece. São estes que irei comentar a seguir. 
 
A Alma do Assassino reúne quatro fragmentos de contos. É interessante notar que Fernando Pessoa se interessava mais pelo processo de raciocínio do que pela narração das história em si. Suas anotações para contos constam principalmente das explicações de alguém sobre um crime, e das explicações de Quaresma de como o crime foi cometido e quem é o culpado. 
 
Não se vê muita coisa da trama, a não ser o que é comentado na mecânica dedutiva. Pessoa escrevia isso e talvez se desse por satisfeito. 



“A Janela Estreita” narra somente uma reunião, entre o Dr. Abílio Quaresma, o chefe de polícia Guedes e o Tio Porco, discutindo processos dedutivos e fazendo menções muito superficiais ao crime que estão investigando, e que envolve um ourives e o seu filho desonesto. 
 
“O Roubo na Quinta das Vinhas” é mais detalhado, tem algumas cenas, descrições de ambientes, diálogos. Um cofre foi arrombado à meia-noite, numa casa onde várias pessoas estavam hospedadas. As suspeitas recaem sobre o jardineiro. Conversando com o engenheiro Augusto Claro, para quem o homem é inocente, Quaresma explica como deve ter se dado a mecânica do crime, e quem é o verdadeiro ladrão. 
 
“A Carta Mágica” é um enigma de “quarto fechado” ou de “crime impossível”. No caso, o desaparecimento de uma carta comprometedora, num aposento hermeticamente fechado. Ouvindo o relato do chefe de polícia Guedes, Quaresma rapidamente indica como o roubo deve ter se produzido, e quem provavelmente o executou. 
 
“O Caso Vargas” não dá indicação do enredo. Consta de várias páginas de monólogo explicativo do Dr. Quaresma, onde ele, com o raciocínio analítico bem característico de Fernando Pessoa, discorre sobre os “três tipos de raciocínio abstrato”, as “três espécies de crimes”, os “quatro tipos mórbidos do homem”, e assim por diante. 
 
Todos estes fragmentos recebem notas e comentários dos editores da obra de Pessoa, explicando o contexto de cada um, sem o quê não seria possível acompanhar as narrativas. 
 
Num texto de 1914 (Obras em Prosa, pág. 69) ele afirma:
 
Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo. 
 
Um volume de um desses autores, um cigarro de 45 ao pacote, a idéia de uma chávena de café – trindade cujo ser-uma é o conjugar a felicidade para mim – resume-se nisto a minha felicidade. Seria pouco para muitos, a verdade é que não pode aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e estéticos no meio europeu atual. 
 
Talvez seja para os senhores como que causa de pasmo, não o eu ter estes por meus autores prediletos – e de quarto de cama, mas o eu confessar que nesta conta pessoal assim os tenho. 


("Fernando Pessoa", por João Beja)
 












quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

4911) A resposta do ChatGPT (9.2.2023)




(INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL): 
 
Você me pede para escrever “uma crônica sobre literatura, ao estilo do escritor Braulio Tavares”. 

Não é difícil responder a esse desafio, uma vez que os escritos desse amanuense, nascido em meados do século passado, circulam pelo mundo virtual e abordam insistentemente os temas recorrentes do “fazer literário”, da “magia das palavras”, da “recriação de histórias” e outros lugares-comuns de nossa época. 
 
Seria preciso lembrar, de início, que o nosso bravo cronista (observe-se que a expressão “nosso bravo [qualquercoisa]” é uma forma clichê de expressão, mas no vocabulário estilístico de redatores daquela geração, intermediária entre o beletrismo e a patafísica, o clichê traz consigo uma certa carga de auto-ironia, pois o uso inesperado de uma tal fórmula denota a plena consciência, por parte do autor, de estar manipulando um clichê, mas com a consciência de o estar fazendo) o nosso bravo cronista, dizíamos (e aqui mais uma vez vale a observação de que este uso do plural autoral, se não chega a ser propriamente um clichê, é resultado de uma operação mental semelhante à do exemplo anterior, pois se distingue do chamado “plural majestático” usado pelos reis, bem como do “plural tribunalício” com que os juízes minimizam sua presença pessoal numa sentença proferida; poderia, sem prejuízo da clareza, exprimir uma certa vertente da literatura atual, mediante a qual um texto não passa de uma colaboração mental entre o Autor e o Leitor, de tal sorte que, no momento em que lê as palavras escritas pelo primeiro, o segundo as recria e as enuncia como que pela primeira vez, revestindo-se este ato, portanto, de foros de co-autoria), o nosso bravo cronista tem o vêzo (cabe aqui outra observação, porque cabe aqui um acento circunflexo; o cronista defende a teoria de que ao usarmos palavras pouco comuns e que o leitor talvez não saiba pronunciar corretamente, devemos acentuá-las em benefício da clareza, mesmo quando a gramática desaconselha o emprego de tais sinais diacríticos) o nosso bravo cronista tem o vêzo das longas digressões. 
 
Concomitantemente (dizem as más línguas que nós, os inteligentes-artificiais, somos faltos de originalidade e surpresa; ora, digam-me se não é um desmentido cabal dessa calúnia o emprego deste advérbio centípede, que o autor em pauta jamais redigiu em sua longa carreira, advérbio que contudo guarda em si o tom levemente pincenezco, e tongue-in-cheekemente pomposo, com que ele se diverte empregando pequenas jóias lexicográficas do glossário de autores que na adolescência o deixavam com o verbalizador zunindo, como Guerra Junqueiro, Humberto de Campos ou Coelho Neto), sabe-se que esse sujeito (preciso ficar aqui repetindo de quem se trata?) tem no ouvido o seu calcanhar-de-aquiles, valha a comparação, e é pelos tímpanos-complacentes que ele emprenha diante de metáforas ou sinédoques ou catacreses ou metaplasmos que o arrebatam como os corcéis albinos do Valhala, precipitando-o num mundo onde o não-chão é cúbico, onde as panacéias escasseiam, onde os morcegos relincham preces peludas ao ouvido das abantêsmas, onde as lesmas sem assento foram condenadas a fazer a pé a volta ao mundo sem GPS, onde cardumes de candirus organizam guerrilhas subfluviais para atrapalhar a lua-de-mel do síndico aligátor, onde delinquentes dimenor empinam com fio de cobre arraias voadoras e seu aguilhão envenenado disfarçado de caneta Parker 51, onde os colecionadores de aquedutos arrematam grosas de tratores Caterpillar nos leilões à socapa onde tudo é pré-arrematado pelos atravessadores-laranja de uma Banana Republic de bandeira cortada horizontalmente pelo Trópico de Capricórnio; onde a Era de Aquário desembocou no Porão das Jaulas-Fortes, cujo alçapão inferior derramou o transeunte incauto no Corredor do Coma Induzido, de onde ele saiu apenas quando a Revolta do Espartilho de Couro esmigalhou as caixas torácicas dos carcereiros e ele (não o cronista alvo destas linhas; o “transeunte incauto”, caso você esteja me acompanhando), diante da Távola Plana do reino dos desinformados, viu-se nomeado Ouvidor-Falante semipotenciário da Casa da Moeda e da Mansão da Nota, com estipêndio de cento e dez dracmas por dia-bissexto e catorze rupias esporádicas, emitidas pelo Tesouro Nacional, moeda que é denominada de “rúpia” quando falsificada por elementos sem formação moral como o locutor que vos fala.
 
Tirante este aspecto, resta-nos registrar que o indigitado, o referido, o meu-prezado, o nossa-amizade (ver em que caixa da mudança ficou o Vocabulário Prático de Apodos e Doestos, Soscígenes Frazão, Editora Lello, 1902) cultiva, como quem cultiva um bigode com pontas, um amplo panteão de deuses-pequeninos, a quem ele atribui poderes mágicos de inspiração literária e criativa, bastando-lhe às vezes salmodiar a meia-voz o nome do nauta-arremessado em questão para que seu cérebro inaugure tantas sinapses que fique parecendo uma árvore de Natal politeísta.
 
No capítulo “Principais Influências”, ele rasga sedas e desdobra salamaleques diante de influênceres como Harry Stephen Keeler (brilhante concebedor de non-sequiturs dramatúrgicos, candidato ao Prêmio Nobel de Títulos Olharregalativos), José Agrippino de Paula (o introdutor do Autismo Narratológico no romance da Boca do Lixo paulistana), Maura Lopes Cançado (intelectual brasileira que sabia passar troco e atravessar rua, e nunca jogou pedra em ninguém), Abdón Ubidia (equatoriano eqüestre no Pégaso dos inutensílios tecno-ilógicos), Monique Wittig (xena heavy-metálica baixadora de chibata nos titubeantes), Gisela Elsner (deformadora boschiana do pesadelo barriga-burguês nas águas-furtadas dos germanocratas ponta-de-ramo), Carlos Emílio Corrêa Lima (sarcasta-mor da confraria dos Logomagos, atualmente em versão digitalizada nos quettabytes da galáxia Transpunk)... e outros que tais.
 
Como a minha condição de mero programa recombinatório de informações acessíveis no metaspaço me impede de emitir opiniões que possam sugerir uma visão desnecessariamente crítica ou inconvenientemente laudatória, posso apenas dizer que quem quiser ter uma idéia real das habilidades do dégas, do de-cujus, do famisgeraldo... basta se-coçar, puxar carteira e cartão, e comprar um livro de sua autoria, porque os há e muitos, expostos à cupidez pública nas boas casas do ramo.  (É sempre aconselhável terminar com um clichê, para não deixar o leitor pendurado num ponto de interrogação.)