terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

4915) A cordilheira sob o asfalto (21.2.2023)



Há um verso de uma canção tropicalista de Caetano Veloso (“Enquanto Seu Lobo Não Vem”, em Tropicália ou Panis et Circensis, 1968) que diz: “Há uma cordilheira sob o asfalto”.
 
Esse verso sempre teve alguma coisa de revelação para mim. Era uma imagem surrealista que lembrava Jorge de Lima – essa imagem de uma superfície aparentemente banal e domesticada ocultando uma realidade enorme e selvagem.
 
O asfalto a que Caetano se refere é o da Avenida Presidente Vargas, porque na mesma música ele canta:
 
A Estação Primeira de Mangueira passa em ruas largas...
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas...  
 
Como na época eu não conhecia o Rio de Janeiro muito bem, ficava com uma pintura ambígua na minha imaginação. A primeira era a escola da Mangueira desfilando por alguma rua ou túnel ou passarela que passasse por baixo da Avenida propriamente dita.
 
A segunda era a Mangueira desfilando no asfalto, mas na crista dessa cordilheira selvagem, uma serra de montanhas cobertas de florestas e rochedos. A Mata Atlântica virgem que havia antes do Rio de Janeiro, mas (como num filme de Glauber Rocha ou de Walter Lima Jr.) a Mangueira desfilasse, sem outra platéia a não ser os papagaios e os sagüins, nessa Mata Atlântica virgem.


(Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr.; a Avenida das Américas em 1968) 

 
Porque em outro momento, no primeiro verso da mesma canção, o poeta diz: “Vamos passear na floresta escondida, meu amor...”  Claro que há todo um contexto irônico de brincadeira infantil, numa citação óbvia da cantiga de roda:
 
Vamos passear na floresta,
enquanto seu Lobo não vem...
- Tá pronto, Seu Lobo?..
 
Você ouve a música 100 vezes e os versos vão se misturando, de tal forma que a floresta escondida passa a fazer parte também da cordilheira escondida sob o asfalto.
 
Ou então (isso já me veio décadas depois) como naqueles livros de ficção científica de J. G. Ballard e outros. A floresta foi escondida pela cidade. A cidade foi edificada no lugar onde antes havia uma floresta. A avenida de asfalto foi plantada em cima de uma cordilheira. As duas, floresta e cordilheira, não foram destruídas: estão apenas ocultas, mas retornarão um dia. Por que não?



Qualquer um de nós já viu essas imagens aterradoras do possível mundo do futuro, com megalópoles invadidas pela selva, galhos de árvores brotando das janelas dos arranha-céus, o lodo e o mato rasteiro cobrindo o chão, os shoppings parecendo estufas exuberantes que fugiram ao controle.
 
A floresta está apenas escondida, mas voltará.



(Sítio arqueológico na Turquia} 

Por baixo do asfalto existe não apenas a cordilheira, mas tudo que a cidade precisou enterrar e esconder no seu processo de afirmação: as ossadas, as valas comuns, os alicerces dos embarcadouros, dos mercados de escravos, ossos de bichos, restos de comida petrificada, cacos de louça e cerâmica, armas enferrujadas. Um gigantesco sambaqui de passado que foi varrido para baixo do tapete do asfalto. 
 
Esse tapete de asfalto é apenas uma película muito fina. Se a cidade fosse vista lateralmente, num corte vertical, veríamos o quanto o chão civilizado em que pisamos é fino, é quase nada, separando o presente frenético desta bolha-de-sabão civilizatória e essa cordilheira de passado, pronta para emergir de novo e tomar conta desse espaço por mais um milhão de anos. 

“Que século, meu Deus! exclamaram os ratos,
e começaram a roer o edifício.
(Carlos Drummond, “Edifício Esplendor“)
 
Drummond tinha essa mesma noção de que os edifícios duram menos tempo do que os ratos.
 
Se “tudo que é sólido se desmancha no ar”, tudo que parece luminoso contém dentro de si uma bolha de escuridão, e essa escuridão não está vazia.
 
A máscara de asfalto com que a civilização finge esconder a cordilheira é enganosa.



(Rook Island, by Ubisoft)
 
 
É a película camufladora do próprio mar, que o protagonista de Sartre em A Náusea consegue enxergar de verdade, e perceber o quanto é uma ilusão:
 
Viro as costas às outras pessoas, e apoio as duas mãos sobre a balaustrada. O verdadeiro mar é negro e frio, cheio de animais; ele se agita por baixo dessa fina película verde feita para enganar as pessoas. As sílfides que me rodeiam deixaram-se iludir: não veem senão essa película estreita, e ela lhes demonstra a existência de Deus. Mas eu vi o que há por baixo!
(J.-P. Sartre, La Nausée, trad. BT)
 
Por baixo há o sambaqui, a cordilheira, o Passado que nunca se poderá cancelar; só podemos mesmo é cobri-lo com películas de diferentes texturas, “skins”, como na computação gráfica. O Passado é sempre dez vezes maior, cem vezes mais pesado, e mil vezes mais presente.
 
 
 






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