(Sol Armorial)
Quando mais jovem, em Campina Grande, trabalhei durante
quase dois anos, como datilógrafo, na Reitoria da FURNe, a Fundação
Universidade Regional do Nordeste (atual UEPB). Ficava em frente à Catedral,
naquele prédio onde hoje funciona o Instituto Histórico.
Um dia eu estava indo à Faculdade de Filosofia (que ficava
atrás da Catedral, a poucos metros dali) em companhia de Leopoldo, considerado
o melhor datilógrafo da universidade. Era um cara mais velho do que eu, moreno,
cabelo curto, não era de muita conversa mas tinha um senso de humor apurado.
Nesse dia a gente ia andando quando ele parou de repente.
– Espera um instante.
Voltou alguns passos e ficou examinando o chão de terra.
Via-se ali um salto de sapato, salto preto, de sapato tipo Vulcabrás. O chão
estava um pouco úmido e mole; Leopoldo escavou um pouco com a quina do pé,
expôs o salto, deu um “bico” com um pouco de força e o salto de borracha saltou
lá para a frente, deixando apenas o buraco na terra.
– Tudo bem – disse Leopoldo, quando retomamos a
caminhada. – É porque toda vez que eu passava aqui eu ficava pensando que tinha
um cara enterrado de cabeça pra baixo, e só o salto do sapato aparecendo.
(a antiga Reitoria da FURNe)
Essa imagem nunca saiu da minha cabeça (olha que já lá se
vão 55 anos), porque nesse tempo eu vivia com o juízo cheio de surrealismo e de
Luís Buñuel. Fiquei fascinado com a
possibilidade de você enxergar um pequeno objeto e ser capaz de visualizar, a
partir dele, algo muito maior e totalmente absurdo. Como o galo de metal no
campo nevado, onde o Barão de Münchausen amarra seu cavalo antes de dormir. Ao acordar,
o Barão percebe que a neve derreteu e ele está numa pracinha, em frente à
igreja, e o cavalo está esperneando lá no alto, preso ao galo do campanário.
Corta para o Rio de Janeiro, éons depois. Eu morava em Laranjeiras, e pegava com
frequência o ônibus da linha 184 para ir ao Largo do Machado, onde tem metrô,
comércio, lanchonetes, etc. E um dia
vejo pichado na parede de um prédio baixinho de apartamentos, já perto do
Largo:
O SOL É A BRASA DO BASEADO DE DEUS
Peço desculpas às pessoas religiosas que talvez se sintam
ofendidas. Meu intuito aqui é apenas semiótico, porque essa frase, digna de um
cartum de Moebius & Jodorowsky, tem uma construção muito semelhante à idéia
de Leopoldo com o salto de sapato. É uma excelente fanopéia – na linguagem de Ezra Pound, a imagem visual vívida e
instantânea, produzida por meras palavras.
Olhar para o sol, imaginá-lo como a brasa de um cigarro,
visualizar um ser gigantesco por trás... A imagem era um tanto blasfema (Buñuel
teria gostado). Mesmo assim, me lembrou outra imagem da infância, colhida
talvez em Monteiro Lobato: a sugestão de que o céu da noite era uma vasta
redoma de cristal escuro, e as estrelas eram buracos que os anjinhos faziam
para espiar as travessuras das crianças da Terra. (Acho que isto está em Viagem ao Céu.)
O interessante dessa imagem não era nem mesmo a
curiosidade dos anjinhos, mas o fato de que -- por trás dessa redoma escura e
protetora existia o que? Existia uma luminosidade cegante, equivalente à do
Sol, que se filtrava pelos buraquinhos.
A materialidade da abóbada celeste é um tema antigo.
Vivemos (dizia a imaginação medieval) no centro de uma esfera, que ora era
transparente, ora opaca, ora azul, ora escura e pontilhada de brilharecos.
Existe
até a famosa gravura (que nem é medieval, é do século 19) em que um homem rompe
o “vidro” dessa abóbada e enxerga por trás dela mecanismos gigantescos,
engrenagens incompreensíveis.
(em L’Atmosphère:
météorologie populaire, Camille Flammarion, 1888)
A curiosidade de saber o que existe por trás do céu vem
dessa visão medieval que colocava a Terra como o centro do Universo, e este
seria uma série de esferas sucessivamente maiores, como camadas-de-cebola
superpostas. Um universo imóvel onde as esferas (onde estavam “pregados” o Sol
a Lua, as estrelas) meramente giravam em torno do seu centro, a Terra, mas a
estrutura básica era fixa.
Dá para imaginar o choque na cabeça dos cientistas quando
tiveram que admitir por aproximações sucessivas (via Kepler, Galileu,
Copérnico, Newton, Einstein) o atual formato do Universo.
Restou aos poetas imaginar outras alternativas, no plano
simbólico. Guimarães Rosa, que era meio chegado a um cigarro convencional,
projeta suas fantasias no inventivo Lalino Salãthiel de “A Volta do Marido
Pródigo” (em Sagarana, 1946):
“Magina só: eu agora estava com vontade de cigarrar... Sem aluir daqui,
sem nem abrir os olhos direito, eu esticava o braço, acendia o meu cigarro lá
no sol... e depois ainda virava o sol de trás p’ra diante, p’ra fazer de-noite
e a gente poder dormir...”
É o caso também de Ariano Suassuna e sua forma peculiar
de tratar os temas religiosos e sertanejos.
Não por acaso, um dos seus personagens mais famosos, Dom Pedro Dinis
Ferreira-Quaderna, foi expulso do seminário da capital da Parahyba por causa de
sua teoria do “Catolicismo Sertanejo”, no qual “a Santíssima Trindade tem cinco membros: o Pai, o Filho, o Espírito Santo,
o Diabo e Nossa Senhora”.
(Irandhir Santos, como Quaderna)
A mitologia solar tem uma importância muito grande nessa
visão-do-mundo que Quaderna expõe de maneira tão vigorosa e poética no Romance da Pedra do Reino (1971).
Pudera. Todo esse romance é uma tentativa pessoal, por parte de Ariano, de
equacionar o feixe de contradições e de confirmações em torno da tentativa de
situar Deus e o Diabo na terra do sol.
Em seu livro póstumo Romance
de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, que é uma espécie de coral de muitas
vozes e muitas “personas”, Ariano atribui a Dom Pantero um longo monólogo em
tom apocalíptico (passagens inteiras do Apocalipse são citadas no livro) e a
certa altura ele exclama:
– O Sol é o
girassol do sol de Deus!
A imagem do girassol é frequente na literatura mística,
para indicar a alma sempre voltada na direção da Divindade. Para onde Deus vai,
a alma do crente gira de mansinho, para nunca perder Deus de vista, para estar
sempre inundada de sua luz.
Não sei se a frase de Dom Pantero é uma formulação de
Ariano ou se ele está citando alguém (o livro é repleto de citações disfarçadas
– é o “Estilo Régio” de Quaderna falando no centro), mas em todo caso é uma
imagem de grande beleza. Uma fanopéia notável.
A idéia é que assim como o girassol volta-se para o sol o
tempo inteiro, para embeber-se de sua luz, assim o Sol, por sua vez, volta-se o
tempo inteiro para se embeber do “sol de Deus”, que neste caso deve ser algo de
brilho incomensurável, inconcebível.
Reencontrei há pouco essa mitologia solar na leitura do
volume 3 da série “The Sandman”, de Neil Gaiman, Dream Country (1991).
Na quarta história deste volume, “Façade”, aparece a
super-heroína Element Girl, a mulher indestrutível, capaz de manipular à vontade
qualquer elemento da matéria. Ela é Rainie Blackwell, uma agente secreta que
foi transformada em Element Girl após entrar em contato com uma divindade
egípcia. Agora, está decadente, infeliz, incapaz de viver uma vida normal, e
tendo que criar máscaras orgânicas para esconder seu rosto verdadeiro, cuja
visão é insuportável às outras pessoas.
No fim, ela deseja morrer, e é visitada pela Morte, que
faz parte do grupo dos Perpétuos. A Morte lhe aconselha que peça ao deus
egípcio para reverter o que havia feito. “Mas onde vou encontrar esse deus?”,
pergunta Rainie. A Morte diz: “Deixa de ser boba, esse deus é Ra, o sol. Vai na
janela e fala com ele.”
(Neil Gaiman + Colleen Doran, Malcolm Jones
III, Steve Ollif, Todd Klein)
Ela o faz e diz:
-- O sol... eu não
tinha percebido antes... O Sol, também, é apenas uma máscara... E o rosto por
trás dele é tão belo... é...
Element Girl usava dezenas de máscaras para poder ser
vista pelos humanos (sua casa é repleta delas), e desse modo não lhe é difícil
entender que o Sol é apenas uma máscara cegante destinada a afastar a
curiosidade daqueles que desejam ver “a verdadeira face de um Deus”.
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