O elevador é
espaçoso, sem ruído, e meus sapatos se afundam num carpete fofo. No final do
largo corredor, uma secretária ergue-se da mesinha e me conduz a uma sala
interna, ampla, com teto altíssimo. As paredes são cobertas de cartazes e fotos
emolduradas. Há uma estante envidraçada a um canto, dois sofás, três poltronas,
uma mesa baixa de madeira, sem nada em cima a não ser três cinzeiros de vidro.
Ela me pede que espere e sai, pé ante pé. Fico olhando a janela envidraçada e
enorme por onde entra a luz da manhã californiana, onde arde um sol de ouro.
Um minuto depois
abre-se outra porta ao fundo e ele se aproxima, com passo tranquilo e miúdo, um
sorriso formal, a mão estendida, senhor de si. Sentamos, trocamos amabilidades,
ele se interessa em saber se fiz boa viagem, se estou bem instalado, se fui bem
atendido. Por fim, explico-lhe o conceito por trás da minha visita.
HITCHCOCK - Dizem que tenho
uma relação difícil com a imprensa. Por quê? Poucos diretores receberam tanta
cobertura de imprensa quanto eu, o que prova que sei como os jornalistas pensam.
Se gosto das críticas? Incomoda-me a injustiça de me atribuírem, mesmo de boa
fé, intenções que nunca tive, ou de exibirem má-vontade para com certos
aspectos do meu sucesso.
BT – Há diretores que se fecham em si, se distanciam do
público. Com o senhor, parece ter sido o contrário. O senhor se preocupa em
saber o que as pessoas pensam de cada filme, de cada plano em cada filme.
HITCHCOCK – Concordo, com uma
correção: não o que as pessoas pensam,
mas o que elas sentem. O que procuro
é um cinema de comunicação instantânea, onde o ato de ver e a descarga de
emoção sejam quase simultâneos. Deixar o público num estado de interrogação;
depois, de surpresa; depois, de medo, de riso, de indignação, de simpatia...
BT – Talvez também um estado de juízo crítico, de
distanciamento?...
HITCHCOCK – Menos! Muito
menos. Somos educados para pensar criticamente o tempo todo. O cinema quebra
essa barreira racionalista e vai no ponto mais fundo de cada pessoa. Muitos dos
roteiros que filmei tinham que ter trechos expositivos, com diálogos falando da
política, da psicanálise, da investigação policial... O cinema sonoro produziu
este pesadelo: o blá-blá-blá filmado. Sou de um tempo em que apenas víamos os
lábios se movendo e deduzíamos sem erro o que estava sendo dito.
BT – Muitas vezes o senhor se vinga do diálogo
irrelevante de forma até óbvia.
HITCHCOCK – Sim, acho que consigo,
com certa frequência, fazer com que as ações na tela sirvam de desmentido às falas.
Os diálogos, em geral, são irrelevantes,
estão ali apenas para que a cena pareça realista. As pessoas falam demais na
vida real, não acha? Palavras, palavras...
BT – Eu tenho uma curiosidade especial em saber a forma
como o senhor escolhe os títulos dos filmes. Alguns são óbvios ou banais, mas
outros parecem cuidadosamente pensados.
HITCHCOCK – Isto varia de caso para caso. No cinema
empregamos muito os títulos provisórios; North
by Northwest se chamou durante algum tempo A Mulher no Nariz de Lincoln. Creio que O Homem Que Sabia Demais é um bom despiste, porque esse personagem
é claramente o agente que morre apunhalado no mercado ao ar livre, na sequência
inicial do filme, no Marrocos. O protagonista (James Stewart) é, como sempre,
alguém que só conhece a verdade aos pedaços, nunca sabe o suficiente.
BT – O senhor fala frequentemente no contraste entre o
suspense e a surpresa.
HITCHCOCK – São dois
instrumentos úteis, e a sabedoria está em usá-los da forma adequada. Prefiro
defini-los como: “A Ignorância do Espectador” e “A Onisciência do Espectador”. No
primeiro caso, acontece algo que ele não entende por completo, e por isso o
desfecho é surpreendente: um simples susto, digamos. A ignorância do espectador,
porém, deve ser explorada para gerar mais que o mero susto. Gerar a estranheza:
a cena da estrada e do avião em North by
Northwest, da loja do taxidermista em O
Homem Que Sabia Demais... A estranheza é tudo.
E há as situações em que o
espectador é onisciente, ou seja, ele sabe coisas que os personagens não sabem.
Muitos efeitos de suspense brotam desse tipo de situação. Veja a cena de Rear Window em que Grace Kelly penetra
no apartamento do assassino em busca de provas, e nós vemos à distância que o
assassino está voltando pelo beco. Somos oniscientes, vemos tudo, e não podemos
fazer nada para avisá-la – nesse momento, “somos” James Stewart, que está nessa
mesma situação.
BT – Muitos cineastas afirmam que pensam só no filme, e
quase nunca no espectador. Certamente não é o seu caso. O senhor pensa o tempo
todo nas reações do público.
HITCHCOCK – Mas é claro! O
cinema existe para isto! Alguns colegas meus têm uma visão interiorizada,
voltada para seus dramas íntimos, e eu os respeito. Mas também é legítimo pensar
nos dramas íntimos do público e tentar contar histórias que tragam esses dramas
para a superfície. O suspense é catártico. Tem sua função.
BT – Quando estudei sua carreira, tive até a impressão de
que o senhor era um leitor voraz de romances policiais, e que teria estudado
psicologia. Mas logo vi que me enganava.
HITCHCOCK – Minha abordagem
reflete minha formação. Estudei engenharia, mecânica, eletricidade, desenho
técnico. O cinema veio para mim como consequência do trabalho técnico no
estúdio. Um filme é como uma máquina: uma
sucessão de diferentes funções (suspense, riso, susto, romance, etc.) que devem
ser cumpridas de maneira consciente, deliberada. O trabalho do roteirista
depende do trabalho do ator, que depende do trabalho do fotógrafo, que depende do
trabalho do diretor de arte... e por ai vai.
BT – Com esta sua formação técnica, o que acha dos atuais
efeitos especiais? Gostaria de tê-los
tido à sua disposição?
HITCHCOCK – Há momentos em meus filmes que exigiram um
esforço técnico prodigioso, mas o resultado compensava: o mundo coberto de aves
no final de The Birds, o crime na
escada em Psicose, a subida da torre
em Vertigo... Dezenas de pessoas
suando a camisa durante dias para produzir alguns minutos de imagem na tela. E
creia-me, todo trabalhavam exultantes. A computação gráfica permite transformar
uma pessoa em outra em segundos, apenas apertando meia dúzia de teclas? Ora,
ora... Isso é bem típico da época do capital financeiro, em que fortunas
fictícias são construídas através de transferências eletrônicas. Nada disso é
real.
BT – Salvador Dalí à parte, eu creio que o senhor tem uma
fascinação pelo Surrealismo, pelas imagens improváveis, incongruentes. Algo mais
sutil do que uma girafa em chamas, ou um relógio derretido. Penso, por exemplo,
nos cigarros que seus personagens apagam num ovo frito (Ladrão de Casaca), num pote de creme facial (Rebecca); no copo que Cary Grant pousa no pescoço da mulher bêbada
em Notorious; na freira de saltos
altos em The Lady Vanishes; no garoto
que exibe um rato morto à mesa do jantar, em Young and Innocent...
HITCHCOCK – O mundo tem uma
faceta absurda, que tanto pode virar comédia como tragédia. Meus filmes
refletem isso, porque é algo que aprendi na vida. Há uma área limítrofe entre a
imitação e a realidade, entre a encenação e a “coisa real”. Muito do que vemos
na tela nos parece invenção, mas a vida real é mais rica de surpresas do que
imaginamos.
BT – O que nos leva, de certa forma, à questão de suas
breves aparições nos filmes. Há uma certa injustiça nos críticos que atribuem
esse gimmick à simples vaidade.
HITCHCOCK – Essas aparições começaram
por acaso, e se tornaram uma espécie de assinatura. Eu sempre fui um admirador das artes
plásticas. E garoto, indo aos museus ou folheando álbuns, eu me assustava às
vezes ao olhar um quadro famoso, geralmente no canto inferior direito, e ver
que nas folhas de um jardim ou na água do mar estava escrito o nome do pintor! Ora,
aquelas imagens me pareciam reais. Quando um vaso de girassóis mostrava o nome
“Vincent” ou o véu de uma freira taitiana trazia o nome “PGauguin”
aparentemente bordado, não me passava na mente, de início, que aquele nome
fosse um elemento estranho ao quadro. O nome fazia parte daquele objeto!
Somente depois, com um pouco mais de idade, vim a entender o que era uma
assinatura, e que ela estava numa “camada” externa ao quadro em si.
Quando apareço em meus filmes
sentado num ônibus, ou conduzindo terriers
pela coleira, ou pondo uma carta no correio, é como se dissesse ao meu
público que aquela história aconteceu no mesmo mundo em que eu existo. As
pessoas que aparecem naquele filme são tão reais quanto eu – ou então, sou eu
que sou tão irreal quanto o mundo delas. O público é livre para
escolher!... (risos)
BT – O senhor já afirmou que depois de certa época,
procurou incluir esse “cameo” nos
primeiros minutos do filme, para não distrair o público da história...
HITCHCOCK – É preciso usar
essas coisas com sensatez. Mesmo assim, confesso que já tive vontade de deixar
de fazê-lo em algum filme, e depois afirmar vigorosamente, na imprensa, que
estou ali, sim, o público é que não prestou atenção. Algumas pessoas talvez
comprassem um novo ingresso, só para conferir. (risos)
BT – O senhor é visto como o mestre do suspense e dos
crimes violentos, mas não são coisas equivalentes.
HITCHCOCK – Por certo que não.
O suspense não precisa da existência do crime, a não ser para ganhar mais
dramaticidade. Estar atrasado rumo à estação de trem ou ao aeroporto é uma
situação de enorme suspense pela qual todos nós passamos algumas vezes na vida.
O suspense é a incerteza entre vários desfechos possíveis. Já a violência faz
parte de nossa sociedade, infelizmente. Precisamos descarregar esses impulsos,
projetando-os numa atividade inofensiva, simbólica, imaterial como o cinema.
BT – É engraçado que o senhor qualifique o cinema como
algo imaterial, porque problemas materiais, físicos, são a essência dos seus
filmes. Livrar-se de um cadáver, por exemplo.
HITCHCOCK – Isso me fascina,
porque depois que cometemos o mais horrível dos pecados – matar um ser humano –
ficamos com a mais prosaica das tarefas: dar fim àquele trambolho que é um
cadáver. Por isso os ingleses geralmente enterram suas vítimas, prosaicamente,
no porão ou no jardim. É a solução mais prática, e somos um povo prático.
Levá-lo para longe é sempre arriscado, principalmente quando o jogamos num
caminhão de batatas e depois precisamos reaver um objeto que foi junto por
engano, como fiz em Frenesi. Em O Terceiro Tiro pude usar a chave do
humor sinistro para me divertir um pouco com isso.
BT – Em The Rope
o cadáver fica praticamente ao alcance da mão de todas as possíveis
testemunhas, durante o filme inteiro.
HITCHCOCK – Uma das vantagens
da tomada em ação contínua, que usei nesse filme, é reproduzir a sensação material que temos numa peça de teatro,
de sabermos que não houve nenhum intervalo de tempo, por menor que fosse, que
lhes possibilitasse dar um fim do cadáver. Ele é uma presença obsessiva,
material mas invisível, pesando sobre o filme inteiro.
BT – Podemos dizer que o senhor leva a sério este
problema.
HITCHCOCK – Faz parte da vida.
É como no sexo, não acha? Depois que o indivíduo comete um crime ele está
psicologicamente exausto, como se tivesse acabado de concluir um ato sexual.
Tudo que ele quer é descansar. Mas... ele vê aquele corpo ali, ao lado, e
precisa tomar uma providência a respeito.
BT – O senhor tem de fato um humor muito peculiar.
HITCHCOCK – Sim, tenho
consciência de que ao longo da vida fui um homem temido e admirado. Amado...
raramente.
(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.)
Augusto dos Anjos:
Philip K. Dick:
Agatha Christie:
Julio Cortázar:
Brilhante!
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