(Amedeo Modigliani, "Auto Retrato")
Uma coisa muito enganosa que a gente vê nos livros de
auto-ajuda literária (os famosos manuais de “Como Escrever Bem”, “Como Ser Um
Escritor De Sucesso”, “Dicas Para um Aspirante a Escritor”, etc.) é o famoso
conselho de “Nunca Desistir!”.
Eu já fiz várias oficinas literárias, como aluno e como
instrutor, e vejo esse conselho ser repisado de forma quase hipnótica. É bonito,
mas é enganoso.
Tem horas em que a pessoa deve desistir, sim. É quando
ela própria percebe que o que está fazendo não é bem o que ela achava que era
capaz de fazer, o que valia a pena se esfalfar de trabalho para conseguir fazer.
Nem todo mundo tem qualidades para ser escritor. Isto não
é uma lei elitista, é uma questão de bom senso. Nem todo mundo tem qualidades
para ser médico, ou piloto de avião, ou comerciante, ou cantor, ou
administrador de fazenda... A gente pode achar aquilo bonito, e ter vontade de ser
assim. Mas a vontade não basta.
Teoricamente, idealmente, todo mundo deveria ser capaz de
tudo, ao nascer. Deveria ter um potencial aberto a todas as possibilidades. Mas
a cada ano de vida essas possibilidades vão se afunilando, porque umas
habilidades se desenvolvem mais, e outras menos.
Escrever não é fácil. Também não é uma coisa
astronomicamente difícil, e uma de suas belezas é sua acessibilidade.
Alfabetização, estudo, muita leitura, muita discussão, muita prática... e a
pessoa vai desenvolvendo sua escrita. Até que ponto? Ninguém sabe.
Sempre digo, a quem me pede orientação: escreva coisas
pessoais, e mostre. Escreva cartas, blogs, diários. Não pense em se
profissionalizar tão cedo. A profissionalização é possível – mas não para
todos. Cabem 7 bilhões de escritores no mundo? Cabem 7 bilhões de pintores, de
maestros, de filósofos?
Ser escritor é como ser músico (instrumentista). Todo
mundo pode ser músico? Em princípio (no instante do nascimento), sim, todos
somos iguais. No entanto, uns irão desenvolver mais capacidade do que outros.
O engano mais grave não é o de inculcar na cabeça de uma
pessoa que ela pode se tornar escritora, pianista, poeta, ator, atriz,
artista... Cada uma que vá à luta e descubra do que é capaz. Engano é tentar convencê-la de que basta se
esforçar para conseguir fazer profissionalmente qualquer uma dessas coisas.
Os manuais de auto-ajuda estão cheios daqueles exemplos
clássicos da obra literária genial que foi recusada por 20 editores e tornou
milionário o vigésimo-primeiro. Na cabeça de um jovem ansioso, isso deixa de
ser um fator de desalento para se transformar magicamente numa garantia de que
quanto mais recusado for um manuscrito mais genial ele deve ser. Não é.
Nem sempre temos talento para o que sonhamos. Uma garota
pode sonhar em ser atriz, quando o seu talento é para escrever – mas ela não
quer escrever, porque no meio social onde convive isso não tem valor, e ser
atriz de cinema tem. Um rapaz pode sonhar em se tornar escritor, porque isso
pode lhe dar dinheiro e respeito intelectual, mas não escreve tão bem assim, ou
não sabe o que escrever; talvez pudesse se tornar um ótimo editor, ou tradutor,
alguém ligado à criação literária.
Às vezes o próprio indivíduo tem uma noção meio vaga de
suas qualidades e fica anos insistindo em explorar uma qualidade que não
possui, em vez de investir em talentos paralelos que são igualmente
importantes.
Saber desistir e optar por outra carreira é tão
importante quanto saber persistir diante das dificuldades.
O argentino Manuel Puig queria ser diretor de cinema, mas
logo percebeu que, sendo tímido e introspectivo, jamais poderia comandar de
megafone em punho uma equipe de cem pessoas. Dedicou-se a escrever: O Beijo da Mulher Aranha, A Traição de Rita Rayworth, Boquinhas Pintadas... Valeu a pena? Para
mim, valeu.
Dizem que Amedeo Modigliani queria ser escultor, sonhava
com isso, mas nada dava certo, e ele resignou-se, meio frustrado, a ser um dos
maiores pintores de sua geração. Menos mal. Modigliani era o protótipo do
artista faminto, meio drogado, dependendo de vender uma tela para comer por uma
semana. Podemos ter perdido o maior escultor do mundo? Talvez. Mas ganhamos
Modigliani.
Quando o artista tem dinheiro, contudo, ele pode
alimentar indefinidamente sua fantasia. Era o caso de Robert Coates (1772-1848),
que recebeu o apelido de “O Pior Ator do Mundo”. Filho de um comerciante rico
das Índias Ocidentais, ele patrocinava a montagem das suas peças preferidas
(inclusive Shakespeare), onde ele mandava em tudo: cenários, figurinos, elenco,
além de mexer no texto para favorecer a si próprio. Era uma figura folclórica
da cena teatral londrina, enchendo os teatros de gente disposta a se divertir. Era
péssimo. Era rico. Nunca desistiu.
Em geral, a gente só toma conhecimento das carreiras
artísticas quando elas dão certo. As que naufragam no anonimato não chegam aos
nossos ouvidos, por motivos óbvios.
Se olharmos com cuidado as carreiras vitoriosas, no
entanto, vamos encontrar muitos casos de pessoas que tinham um sonho diferente
a respeito de si mesmas, mas era um sonho de quem não tinha talento real, vocação,
ou, como diz o pessoal por aí, “o cacoete da coisa”.
Rapazes que queriam ser jogadores de futebol, jogavam
mal, tornaram-se técnicos vitoriosos. Narradores que tentaram em vão ser
romancistas, e viraram autores de telenovela na hora certa. Compositores sem
brilho que acabaram se tornando excelentes arranjadores. Isto é fracasso? Não
acho.
A maldição do NUNCA DESISTA já destruiu muitos talentos
que podiam perfeitamente ser direcionados rumo a outros trabalhos, se o
indivíduo fosse capaz de avaliar com mais clareza e menos emoção suas próprias
habilidades. Se não estivesse mergulhado, como todos sempre estamos, no
“espírito do tempo” para quem o Desejo é soberano, a Vontade resolve tudo. Não
é assim que o mundo funciona.
Muito dessa discussão decorre de um conceito inventado no século XX chamado "carreira artística". As pessoas sempre foram artistas, tocavam, esculpiam, pintavam, cantavam, contavam histórias. Quando arte virou mercado, surgiu a necessidade de se "profissionalizar" e ter "sucesso", o que acabou dividindo as pessoas, de forma artificial, entre artistas e não artistas. Aí perdemos a organicidade da criação, pois tudo tinha que ter propósito e objetivo, mercantil ou não. Pra onde foram os autores de um livro só? Gente que pintou quadros por 3 anos e parou é menos artista do que pintores medíocres que souberam se vender? Fazer ou não arte é, na minha opinião, uma questão se sentir livre pra fazer o que está a fim enquanto isso lhe interessar. A arte, instrumento de expressão e libertação, acabou virando uma profissão e fonte de angústia para os criadores, enquanto o que realmente importa é a criação. Valeu pela reflexão. Um livro que talvez te interesse que trata disso é o Greve da Arte do Stewart Home.
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